lunes, 27 de julio de 2020

A VIDA NÃO É MOLE, MAS PODE SER CROCANTE

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Na situação em que ando, sem dinheiro para o gás, fazendo fogo no pátio com a lenha das paredes da casa, que arranquei na mão, agora estou comendo os chinelos das religiosas do Convento, assados de improviso. Pão Tufa, que aprendi por aí em dificuldades outras.
Li nos seus olhos temerosos aquele pensamentinho ruim: daqui a pouco o louco de fome comerá a nós.
Jamais. Se bem que bem fritas, aquelas que teimam com os mais velhos...



viernes, 10 de julio de 2020

ONDE TEM HOMEM NÃO MORRE HOMEM


(...)
Eu morava no nº 685 da Rua da Varginha, no Centro de Porto Alegre. Há tempos já não morava na rua nem de favor em cabaré. Depois de pular por pensões, repúblicas e JK's comprei um fiador e aluguei um de quarto e sala, cozinha, banheiro, e tanque na diminuta sacada dos fundos. Tinha me casado com uma moça muito prendada, e tinha emprego, agora ganhando três salários mínimos, que de tão mínimos o aluguel me levava a metade. O horror havia passado em parte. Mês de julho, um inverno desgraçado. A gente, no novo apartamento, tinha uma linda filha ainda nenê, fogão a gás, alguns móveis, cama de casal, o berço cheio de paninhos quentes, uns brinquedos e quatro cobertores adultos, um nem tanto, burrinho que um dia me salvou. Por medo da rua de onde vinha tinha um 38 em cima do guarda-roupa. Duas da madrugada, uns 3 graus a temperatura. Algo não me deixava dormir. Levantei-me, me vesti, peguei o 38 lá em cima e quando puxei um dos cobertores a moça acordou. 'Onde tu vai a esta hora?". "Vou ali e já volto." Ela ficou nervosa. Repeti: vou ali e já volto, durma. Hoje sei que devo ter falado com os olhos magoados, pois ela se encolheu. Saí. Na esquina dobrei à esquerda e subi a Travessa do Poço com o cobertor dobrado na mão. Lá em cima, embaixo do viaduto, não tinha mais onde a gente se meter, os buracos eram todos lojinhas alugadas, eu sabia que sem ter para onde correr a turma morava na calçada. Temia que um velho esfarrapado que me aqueceu na calçada anos antes, um encostado no outro, em andrajos se agarrando de frio, ainda estivesse lá.
(...)


(Fragmento de "Os Perturbados de Porto Alegre". Na imagem a antiga Travessa do Poço, foto de Leandro Selister, disponível na rede mundial.)