(...)
Eu morava no
nº 685 da Rua da Varginha, no Centro de Porto Alegre. Há tempos já não morava
na rua nem de favor em cabaré. Depois de pular por pensões, repúblicas e JK's
comprei um fiador e aluguei um de quarto e sala, cozinha, banheiro, e tanque na
diminuta sacada dos fundos. Tinha me casado com uma moça muito prendada, e
tinha emprego, agora ganhando três salários mínimos, que de tão mínimos o
aluguel me levava a metade. O horror havia passado em parte. Mês de julho, um
inverno desgraçado. A gente, no novo apartamento, tinha uma linda filha ainda
nenê, fogão a gás, alguns móveis, cama de casal, o berço cheio de paninhos
quentes, uns brinquedos e quatro cobertores adultos, um nem tanto, burrinho que
um dia me salvou. Por medo da rua de onde vinha tinha um 38 em cima do
guarda-roupa. Duas da madrugada, uns 3 graus a temperatura. Algo não me deixava
dormir. Levantei-me, me vesti, peguei o 38 lá em cima e quando puxei um dos
cobertores a moça acordou. 'Onde tu vai a esta hora?". "Vou ali e já
volto." Ela ficou nervosa. Repeti: vou ali e já volto, durma. Hoje sei que
devo ter falado com os olhos magoados, pois ela se encolheu. Saí. Na esquina
dobrei à esquerda e subi a Travessa do Poço com o cobertor dobrado na mão. Lá
em cima, embaixo do viaduto, não tinha mais onde a gente se meter, os buracos
eram todos lojinhas alugadas, eu sabia que sem ter para onde correr a turma
morava na calçada. Temia que um velho esfarrapado que me aqueceu na calçada
anos antes, um encostado no outro, em andrajos se agarrando de frio, ainda
estivesse lá.
(...)
(Fragmento
de "Os Perturbados de Porto Alegre". Na imagem a antiga Travessa do Poço, foto de Leandro Selister, disponível na rede mundial.)