domingo, 29 de noviembre de 2020

VIAGEM

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Só recordo que era sábado naquela noite de primavera, e chovia, chovia, chovia... Eu amargurado da vida bebia uísque quase louco de solidão num apartamento lá embaixo do Alto da Bronze. No toca-discos o Tim Maia cantava uma canção feliz que me entristecia ainda mais: "É primavera, te amo...". A campainha tocou. Não me mexi, pensei em engano, há meses ninguém me procurava. Tornou a tocar, e tocar, e tocar, até que levantei do sofá e fui ver o que era. Abri a porta e tinha uma mulher ensopada de chuva. Pois não, moça... Foi então que ela levantou a cabeça, afastou os cabelos molhados que lhe tomavam o rosto, e a reconheci. Uma atriz da Escandinávia que conhecia por fotos. O primeiro pensamento foi “Como veio parar aqui?”. Fiquei em silêncio. Um minuto de silêncio. Até que ela disse: “Dove sono?”. Segui silente, ela me olhando com esperança contida. Tornou a perguntar num fio de voz: "Où suis-je?". Não entendi e ela seguiu: “Var är jag?“,”Where am I?", ¿Donde estoy?”, aí entendi antes que dissesse a mesma coisa em português: “Onde estou?”. Respondi: “Está em Porto Alegre, moça, entre, por favor, venha tomar uma ducha quente”, e a levei pelo braço para o chuveiro. Uma linda mulher, que pelo jeito andava viajando no tempo. Tirou a roupa e entrou no banho, logo mal a via pelo vapor no box. Deixei-lhe toalha limpa e roupas secas - camiseta e um calção improvisados. Voltei para a sala com o sentimento de que a minha vida iria mudar, eu não seria mais infeliz.

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martes, 17 de noviembre de 2020

VIAJANTE

Morei anos no Rio de Janeiro, em temporadas a trabalho. Houve tempo em que somando ficava lá metade do ano, anos a fio, vivi a Tijuca, Estácio, Leblon, Botafogo, no Cosme Velho quase me enrosquei com risco de morte, e a "Cidade", meu Deus, tudo, vindo de lá dos outros lados até Santa Cruz, ao lado de Itaguaí, para não falar em Caxias e São João de Meriti, etc., sempre de táxi para ir e vir de terno e gravata. O único pedido que eu fazia para a firma era que me botassem num hotel da Barata Ribeiro, pertinho da Santa Clara, onde eu já era de casa. Sempre cumpriram. Uma festa quando eu chegava de viagem naquele hotel, um pequeno Othon, era um familiar chegando: vinham atendentes, cozinheiras e todo mundo me abraçar.

Mais um tempo de cada ano em Maceió, Sampa, Belém, Curitiba, Fortaleza, Manaus, Floripa, Salvador, João Pessoa..., em tudo. Detestava Brasília, mas ia. Em Porto Alegre vinha em alguns fins de semana, antes que as meninas esquecessem de mim. Trabalho duro, o chefão dono da empresa para as boas não me escalava. No caso do Rio quando chegava a sexta-feira e não tinha que avançar noite adentro trabalhando, ah, coisa mais boa, ia furar onda e logo tomar chopes no La Maison em Copa, depois caía na noite, até sábado à meia-noite me liberava. Domingo não, neste à base de água mineral, no dia seguinte a coisa não iria prestar, o domingo era para rever a semana anterior, mexer em papéis perigosos no hotel, em como me defender e tal. A passeio ao Rio fui somente uma vez, saído de Belo Horizonte, uma semana em apartamento de aluguel.

Todas as cantoras do Rio de Janeiro que gosto são sortudas, bem casadas, muitas amigas em rede social, maravilhosas... não tiveram o azar de topar de frente comigo. Numa dessas sextas-feiras, ou sábado, vi a moça cantando, eu lá no fundo escuro do bar musical. Em pensamento depois lhe escrevi umas cem cartas de amor. Mundo que gira: Rosana Sabença hoje me honra com a sua amizade. Grato, Rosana!


ÀS URNAS!

ÀS URNAS! (Parte 1 de 10)


De cerveja em cerveja, fumando e batendo máquina a noite inteira em arrumações de uns contos para o livro Os Perturbados de Porto Alegre, tomei um fogo daqueles. Amanheceu. Às 7 da manhã a sóror Mariana de Rosário, a índia da Serra do Caverá, abriu a porta do quarto do som onde me escondo e disse: - Tu tem que ir votar, o horário de votação dos velhos é das 7 às 10. Quase perdi a concentração do texto.

- Velho é o teu pai. - Respondi rindo.

- Tava brincando, tu é um guri que aparenta 35, imagine, é que é bom votar logo para ter o resto do domingo tranquilo, daqui a pouco vai te bater o sono.

- Mentirosa, aparento 90, mas tu tem razão, vou lá.

A sóror tem um fusca 1972, com ele me levou à Cidade Baixa de Porto Alegre, a apenas 12km de distância do Convento. De fogo fui só de calção e pés descalços. Ao chegarmos na Rua da Olaria, nº 400, uma escola onde voto, ela abriu uma sacola e disse: - Aqui está a tua carteira com os documentos, e aqui estão as roupas, tire o calção, vista a calça, a camisa e calce os sapatos.

Obedeci. Fui lá bem vestido com cara de homem sério. Não foi difícil achar a minha seção. Tinha uma velhinha na minha frente na fila de poucas pessoas. Atrás de mim uma gringa coxuda que sai da frente, tonteei. A velhinha da frente não parava de se voltar e me olhar, até que não se aguentou.

- Eu te conheço, meu fio, tu era menino de uns 20 anos, lembra de mim? - Desculpe, minha senhora, mas não recordo. - Eu era a cafetina de um cabaré da Rua Ernesto Alves, e tenho uma foto contigo no colo, eu sentada numa cadeira da calçada e tu atravessado por cima me abraçando e me dando beijos no rosto, agradecido porque te livrei o pouso num catre lá dos fundos.

Toda a fila ouvindo, até os mesários lá dentro, ela falava alto, sem agressividade, carinhosa, mas em alto e bom som. - A senhora me confundiu com outra pessoa. - Não, era tu, não sou louca, tu tava mal de vida, na miséria, ou era teu irmão gêmeo. - Bom, tive um irmão gêmeo, aquele era bom, morreu, infelizmente. - Morreu, meu fio? Lamento muito, era um rico rapazinho, sincero e honesto, bonito como tu. - Pois é, D. Lucrécia, é a vida, Deus só leva os bons, bonito pelos seus olhos bondosos.

Silêncio, um tempinho, tremi pelo ato falho, o que faz a bebida, mas ela estava muito velha, não iria perceber. Virei-me para a gringa, ui, que peitões, que com a mão tapava a boca mascarada para abafar o riso. Veio a voz da velhinha atrás: - Eu sou a Lúcia. Como é que tu sabe que o meu nome de guerra era Lucrécia, meu fio?

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(Ilustração: Lucrezia Borgia, tela de Dante Gabriel Rossetti, de 1871)

sábado, 14 de noviembre de 2020

CARAVANA

 


"Tem coisas que a gente nunca deve esquecer, do tipo: 'Enquanto os cães ladram a caravana passa'. No deserto de maldades desta vida não vale a pena. Se parar para brigar com um cachorro louco, obtuso, é atraso, meu chapa, o cara perde tempo, deixa de avançar quilômetros em direção a um horizonte de sonhos, lindo, que está lá adiante, não se sabe exatamente onde, mas está lá. Com a carga que não é leve desde menino tento ser caravana, só paro se me fizerem sangue, ou se ferirem algum amor da minha vida. Assim também não. Então não me façam parar, criminosos, pois se me pararem vem tempestade, alguém morre, os cães dos palacetes ou eu. Tentem."

viernes, 6 de noviembre de 2020

GATOLINO NÃO PERDOA

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O Gatolino desta vez me botou numa sinuca de bico, ao som de Perfídia que tocava no toca-discos. Sei falar gatês, pardalês, cachorrês, sábianês, cavalês, mussunês e peixês em geral, tico-ticonês, coelhês, galês - ora se não iria entender galos e galinhas, criei-me com galos de briga nos braços. Bom, e macaquês, gafanhotês e todas as línguas de bichos e passarinhos, volta e meia falo e interrogo em porquês. Falo piranhês, pobres onças daquele cabaré, ah, e oncês. Exceto urubunês e sua variante corvês, tubaronês e jacarês, estas línguas não falo mas entendo os horrores que dizem. Gadês e jumentês sei mas ando evitando. De cobrês apenas alguns dialetos, pois algumas cobras andaram me mordendo por pura maldade. O segredo com os bons é o sentimento expresso no tom de voz. Já o Gatolino agora só fala espanhol, na verdade portunhol. Antes postei de brincadeira: Qual a diferença entre "picar a mula" e "capar o gato"? Ele leu e levou pro lado pessoal, sem metáfora, literalmente, esse negócio de capar o gato. Disse-me com rancor na voz:
- Hermano Salassar, por favor, mate a ese hijo de puta veterinario nazista del barrio Menino Diós de Puerto Alêgre. Limpie, desinfecte el mundo de los mengeles de perros y gatitos. Y asessino de los pobres de tu especie.
Ai vó Marica, me ajude numa hora destas. Y ahora, che, que hago? Pensei um pouquinho: hora de contemporizar, deixar a raiva passar, e respondi na variante Miadês:
- Por enquanto não posso, hermano Gatolino, me dá um tempo, o nazifascista castrador virou ministro da Bozália, se eu matar o canalha em poucas horas na perfídia a Polícia Federal ou os milicianos deles invadem aqui e nos matam a todos, os bandidos pisotearão e matarão as freiras, o Antúrio, a Comigo Ninguém Pode. as Rosas e as Violetas que dei a ti.
- No quiero saber, me debes eso, mata al asesino. Prefiero morir, pero primero mátalos a todos.
E agora, faço o quê? Vontade tenho de fazer como o Gatolino diz, mas peraí, não somos como eles que falam inglês, russês, português e muitas outras.



domingo, 1 de noviembre de 2020

São Paulo

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Av. Paulista, orelhão, 11 da manhã de uma quarta-feira. Disc, disc, disc. A cobrar.
- Alô, bom dia... (a telefonista)
- Me passe rápido para o chefão, Marisa, sou eu.
- Fala, Cabelinho! (o chefão)
- Doutor, estou há mais de uma semana neste bancão aqui da Avenida Paulista onde o senhor me meteu, não liguei de lá porque estão monitorando os telefones, é uma quadrilha, tudo criminoso, doutor, temo que atentem contra a minha vida, pois peguei um monte de transferências ilegais para o exterior, políticos, grandões aqui... tem gente do Banco Central no meio, o senhor sabe, tenho crianças pra criar...
- Te ameaçaram?
- Não claramente, mas leio pensamento de bandido, doutor, o senhor sabe da minha vida, me meteu aqui porque desconfiava que era uma máfia, para as boas nunca me escala, então acredite em mim.
- Hummm, deixa eu pensar... Vou falar com uns caras. Tu está com medo, a ameaça é iminente?
- Medo eu não tenho de nada, doutor, já passei por coisa semelhante, mas estou em terra estranha e eles são muito perigosos, traiçoeiros, preciso de proteção armada, de quem cuide as minhas costas, pois agora é que eu vou para cima deles.
- Não vai para cima coisa nenhuma, hoje não. Vá para o hotel e não saia de lá, me ligue à tarde, vou conversar com o diretor presidente do banco e com algumas pessoas, tenho amigos na Polícia Federal, mantenha a calma, Cabelinho.
Pelo sim, pelo não, desliguei o telefone e fui lá no bairro Armênia comprar um 38 frio. Conversando sobre presídios fiquei amigo dos caras, tudo gente boa.
(...)

(Fragmento do livro "Eu, auditor")