sábado, 23 de enero de 2021

RONY


"yo aprendí filosofía... dados... timba...

y la poesía cruel

de no pensar más en mí."

 

NAQUELE TEMPO eu estava preso numa pequena cidade, sem ter como nem para onde correr, mas ouvia falar sobre os conterrâneos mais velhos que tinham se mandado. Eu queria me juntar a alguma célula de combate à ditadura, bobagem de menino mal saído da infância, não tinha idade nem para viajar sem autorização dos velhos, que eram pobres - classe média baixa - mas não tão burros para deixar o menino sair ao Deus dará. Só aos 18 adquiriria a maioridade legal e com esta a sonhada autodeterminação. Aos 18 estávamos no final de 1970, a ditadura ainda torturando e matando desenfreadamente, com a cúmplice Globo estuprando o cérebro do povo: "90 milhões em ação, pra frente Brasil, do meu coração...". Sem dinheiro eu seguia sem ter como nem para onde ir. Aos 20 não aguentei mais: fugi na raça para Porto Alegre, dormir em praça se preciso, cedo ou tarde tudo se ajeitaria, conseguiria um empreguinho que naquela cidade não me davam, era mal visto, pelos donos da cidade, jamais pelo povo, e o velho pai tinha razão: futebol não dá camisa para ninguém, lá não dava mesmo.

Não deu outra, até o primeiro emprego aparecer: de dia a Biblioteca Pública, de noite a praça. Não demorou muito achei uns caras e as coisas melhoraram um pouco, acabei me acomodando numa república com maioria de conterrâneos, vieram empreguinhos, hotel-pensão, até que um dia me vi de terno e gravata morando sozinho num apartamento JK. Foi por essa época que conheci um intelectual de quem ouvia falar na adolescência, irmão de um antigo colega de aula. Filósofo e outros bichos, uns 14 anos mais velho do que eu, cada bate-boca que tínhamos... Antes veio o Gilberto (Pato) Martins, meu querido amigo de infância que andava perdido por Curitiba, vieram amigos deles, a maioria da ala humanista dos funcionários do Banco do Brasil, de repente estávamos todos em mesas juntas no Pampulha e em outros bares, noites e noites de conversas sobre o Brasil, a maldita ditadura e o que veio depois. Ele no uísque e a maioria de nós no chope.

Ontem me fechei em copas, hoje despertei lembrando de cada conversa, de cada passagem que tivemos, de cada rosto dos demais amigos, das passeatas, dos protestos. Lembro que certa vez falei de alguns livros do Nietzsche e o Rony me presenteou com um livro do Immanuel Kant, o Crítica da Razão Pura ou Crítica da Razão Prática, um dos dois, depois comprei o outro. Acho que foi o Pura, pra mim "crescer" quase me rachou a cabeça. Com dedicatória: "Ao Salazar, com amor". Teria muito a dizer, mais uns dez ou vinte parágrafos, o tema dá um livro, mas entendo que aqui o espaço não é apropriado para textos muito longos, mormente quando o assunto neste momento interessa a poucos. Outro dia vai para livro.

Só soube ontem à noite pelo Ivoran Piazzetta que disse ter ouvido notícia de que RONY SILVEIRA teria falecido. Corri atrás. De fato, morreu anteontem, 20, de morte natural. Seu corpo foi cremado no início da tarde de ontem. Pelos desencontros desta vida não o via há muitos anos, a última vez que falamos foi ali por 2018 ou 19, por telefone, uma alegria imensa, me chamava de louco (quando queria detinha o poder de uma ironia cortante, finíssima, aí que o bobo aqui se irritava mais) por uma pequena decepção que lhe causei quando estava em marcha a luta pela construção do PT no RS (eu recém tinha me filiado ao antigo PCB lá em Niterói, RJ, não poderia me filiar para ajudar a atingir o número mínimo exigido pela lei). Estou meio longe e ainda bem que não tem uísque aqui, de outro modo teria brindado ao velho companheiro com uma garrafa inteira do seu trago então predileto.

É como me disse de lá da região das Missões outro seu grande amigo, o ex-governador Olívio de Oliveira Dutra: “São os sogaços que a vida nos dá: a morte - mesmo que previsível - de um amigo”.

Forte abraço a todos os familiares e amigos do Rony, fica o seu exemplo de dedicação e amor.

In memoriam vai um dos tangos que ele gostava (Marianito Mores - Enrique Santos Discépolo). 



jueves, 14 de enero de 2021

A EGIPCÍACA E EU - SOBREVIVENTES DA GUERRA

 .(...)

Disse-me uma mulher, muito tempo atrás, ela uma desconhecida, ninguém sabia de onde veio, mas como nós era sobrevivente num cabaré de quinta classe da Av. João Pessoa: "A tua tristeza decorre da tua falta de iniciativa, homem. Na verdade tu cansou de ser Abel, deveria ser Caim e não se assume, mesmo vendo os horrores que eles cometem! Nesse caso seja Caim, que um dia serás um Abel de verdade. Eu cansei de ser Madalena, que não era puta como dizem. Vem de alma, eu queria ser a Egipcíaca". 

A mulher estava me chamando de covarde, segundo entendi. Foi quando começamos a incendiar aquele quarto, logo botando fogo na cidade, eu assaltando bancos e matando Cains, ela com navalha castrando os canalhas ricaços que iam ao cabaré em busca de sexo, anormais que queriam coisas que em casa não tinham, depois do talho na jugular. A Egipcíaca fez a cabeça das outras, cada uma com graves problemas na vida, sofridas, aconselhava. Então as outras cortavam, serravam e enterravam os corpos nos fundos, bem felizes. Eu me cuidando dela e ela se cuidando de mim.

(...)


miércoles, 6 de enero de 2021

ISOLADO



MADRUGADA ALTA em Porto Alegre, 4 da matina. Sem a Dolores Sierra de Barcelona, sem a Bugra de Paquetá, sem a Ana de São Borja, sem a Catarina de Lisboa, sem a Michelle de Taquari, sem a Cristina Carioca, sem a Patrícia de Boca de Uva, sem a Mariana do Rio... a Teresona de Gravataí dormiu há pouco, daqui ouço o seu ressonar. Conversar com quem? A Ju Gemidinha dá umas roncadinhas lá no quarto 11 das noviças, onde dorme com suas amiguinhas de pouco mais de 35. Ouço murmúrios vindos do locutório, são as fanáticas ajoelhadas, deixo assim.
Sozinho e sem sono, que droga, no isolamento sem querer a gente troca a noite pelo dia. E sem dinheiro, fodido e mal pago. Mesmo que tivesse dinheiro, ir aonde com os bichos 17 e 19 soltos lá fora? Com ou sem dinheiro, sem os vírus eu saberia para onde ir, mas agora...
Vou fazer o quê? Eureka! Abri uma cerveja, até tirei uma foto no salão principal do Convento.