viernes, 23 de octubre de 2020

CONVERSANDO COM O GATOLINO

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Tomei um fogo enquanto lubrificava a artilharia, desmontei e montei de novo as armas, depois dormi. O Gatolino me tirou da cama antes do tempo, tinha um assunto sério a tratar. Reagi sai fora, me deixa dormir, não adiantou: "Venga, ahora, estoy preocupado". Lá fui eu meio dormindo atrás dele pro sofá. Começou: "No te pongas triste, 'Salassar', los hijos de puta no merecen ni siquiera una puñalada, y las mujeres...". E cantou com gestos teatrais: "Dicen que los hombres no deben llorar / por una mujer que ha pagado mal / Pero yo no pude contener mi llanto / Cerrando los ojos me puse a llorar...". Fechei os olhos e chorei feito criança.
Não reparem, ando abatido mesmo, ingratidões, mas olhem o Gatolino, além de gatês já fala guarani jopará, espanhol, russês, mineirês, paulistês, cearês, carioquês e alemão, inglês sabe mas não gosta. Português quando fala é o da Portugália, ó pá. É em espanhol que me pede uma gata baiana, pois está aprendendo baianês: "Hermano Salito, por Diós, una que hable mérraaaauu...", aqui aportuguesou o "Méjaaaauu...".
Ama boleros, sambas, tudo de MPB, choros com regional, tangos, milongas, baladas, salsas, mambos... todos os gêneros musicais, é apaixonado por algumas árias, chora copiosamente. Quer dizer: todos os gêneros exceto sertanojos, coisa muito diferente dos nossos sertanejos, aí solta um shhhhh e um fuuuuu raivoso. Adora holandecas, russecas, pretecas, gringuecas, poláquias, arábicas, alemânicas e tudo, sendo fêmea é com ele mesmo.
Boto umas cachaças na sua água, para se acalmar, antes que o louco saia armado levando tudo por diante.




miércoles, 21 de octubre de 2020

QUE O MUNDO CAIA SOBRE MIM (Fragmento)

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Madrugada alta em Porto Alegre, trovões roncando ao longe, aviso e promessa, sabia que não iria demorar. Tirei o terno e botei um calção do Peñarol de Montevideo que ganhei de um amigo. Saí só de calção amarelo e preto, pés descalços. Azar, tormenta e chuva não perco por nada, até para provocar os supostos deuses. Luísa da Cruz gritou vou junto e me alcançou correndo só de calcinha. Quando chegamos lá na rua o mundo já descia em água. Rindo ensopados na esquina da Rua Olavo Bilac com a Rua da Olaria, abraçados, vi que a sua calcinha branca estava preta pelos seus pelos molhados. Azar, a rua estava deserta. Ela viu que eu olhava, veio e me beijou a boca com força, como eu estava tonta ao som do ribombar dos trovões e relâmpagos no céu, este que finalmente se decidiu, rugiu feio e explodiu de modo assustador: os raios. Ela se agarrou mais em mim e a abracei forte, Luísa não tenha medo, e mentalmente pedi ao suposto diabo que se ali caísse um raio que fosse em cima de mim, dela não. Vieram três queimando tudo, um destruiu uma árvore mais adiante e os outros foram absorvidos pelos para-raios das proximidades. Então o céu se derramou de maneira anormal, pressenti que a cidade ficaria submersa, era um dilúvio que iria encher o rio e a água subiria até os morros. Eu sabia que os céus e os subterrâneos queriam me matar, mas não seria naquele dia, eu mal estava começando, tinha uns serviços por terminar.
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lunes, 19 de octubre de 2020

ATÉ PODE ENTRAR VIVO NA MINHA ÁREA, MAS...

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Não existia cartão amarelo, e sim a regra "do pescoço pra baixo é canela". Expulso o cara seria se saísse em briga de mão, isso não pode, ou se numa voadora ferisse gravemente um adversário em falta feia, do sujeito ser levado para a Emergência do Hospital de Caridade. Na expulsão nada de cartãozinho, era o braço do juiz esticado para fora do campo, indicador em riste: rua! Fui expulso somente uma vez, o juiz era deles, ladrão, pois nem matei o alemão provocador, só saiu choramingando com a perna quebrada.

Esse time NUNCA perdeu uma partida. Todos na catega, mas quando o negócio complicava eu, 14 ou 15 anos e capitão do time - nem sempre fui, que era o zagueiro central, dizia pro Tasico, quarto zagueiro (penúltimo em pé, da esquerda para a direita): vamos abrir o açougue, negão, e subir para a área deles. Ele, que a bola morria ao cair em seu corpo, elegante, saía batendo pra matar. Pro Jardo e pro Rui, ao meu lado, nem precisava dizer. Lá na frente o Sérgio, o Gilba e o Lumumba, todos os nossos cobras - de alguns não lembro os nomes, se sentiam melhor na foto, agora é nóis, e iam velozes para cima deles. Coisa mais boa ao final da peleja, saindo de campo, receber um abraço feliz do nosso técnico José Machado, este benfeitor da comunidade - tempo, dinheiro, dedicação - por apoiar a meninada.

jueves, 15 de octubre de 2020

DURA DE MATAR

.Medo de viajar e as plantas morrerem sem água? Eu tenho.

Era separado, morava sozinho. Tinha somente uma plantinha. Certa vez fiquei três meses no RJ, direto, era caso sério. Isso lá por 1987 ou 88. Em Porto Alegre ficou a minha planta no apartamentinho lá embaixo do Alto da Bronze. Eu no Rio preocupado, logo no verão... Quando finalmente consegui voltar, o táxi do aeroporto mal parou, paguei e não quis o troco, voei pegar as malas. Subi as escadas e sôfrego abri a porta, deixando as malas no corredor, corri para vê-la. Estava ressequida, sem folhas. Morta, pensei. Molhei-a de transbordar, e ela milagrosamente reviveu. Está viva até hoje, minha eterna companheira. Aí entendi porque ela se chama Comigo Ninguém Pode. Ensinou-me muitas coisas. Ainda me ensina. Dizem que é venenosa, acho graça, não me conhecem.



domingo, 11 de octubre de 2020

BOLINHO DE CHUVA

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Outro dia, naquela de nunca mais dar ração com T - todas são à base de T - para o Gatolino e o LF, fiz uma panelada de arroz com cenoura raspada. O raspada não é com aparelho de barbear nem com aqueles grudes nas pernas e em outros lugares, prezadas senhoras. É aquele utensílio de cozinha onde a gente esfrega o legume duro, arriscando ir um dedo junto, e este - o legume duro, não o dedo - sai em pedacinhos ou raspas por baixo, se bem que outro dia me levou a polpa do polegar com um pepinão. Qual o quê, só o LF comeu um pouquinho. Também, sem sal nem nada, nem gato comeria aquilo. Só se os deixasse a morrer de fome, aí o nego come até casca de árvore, guanxuma, lagartixa de parede e o que pintar, mas não sou tão ruim assim. Bom, hoje achei que as freiras ficariam em casa, afinal estou de aniversário, mas lá se foram trabalhar na boate. Sabem, né, boate com quartos nos fundos na verdade tem outro nome. Decidiram que o melhor presente que poderiam me dar seria dez mil reais, o que pretendem faturar hoje, por baixo, em cima de políticos direitosos. Meio a contragosto aceitei, afinal dez mil é dez mil, ainda mais sabendo que eles roubaram para gastar um pouquinho na boate, o grosso tiram do País. Acompanhei-as à porta e falei que hoje iria fazer bolinho de chuva, vez que uma chuvarada imensa está prometida para Porto Alegre nas próximas horas, conheço o céu. É bolinho de arroz, com a panelada que os gatos recusaram, mas passa por de chuva, gosto de chuva, vou botar sal, pimenta e salsa. Mariana de Rosário riu: "Ahahah, tu não sabe fazer bolinho, vai é fazer bagunça". Ora, se sei fazer até bacalhoada...

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lunes, 5 de octubre de 2020

LOUCO PARA FAZER 69, MAS NÃO SERÁ DESTA VEZ (Ficciones)

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Num dia como hoje há muitos anos houve uma explosão miau num banco da Av. Paulista, em São Paulo, propriedade de um bando de miaus da máfia da Febraban (reclamem que abro os nomes e dossiês), onde mais tarde me ameaçariam de morte e precisei telefonar para alguns presídios. Mais um banco falcatrua, como todos. Claro que a imprensa fascista de Sampa se manteve caladinha, ladrão aqui não mexe com o ladrão de lá. E queriam "Parecer" limpo, atestado de honestidade para a Bolsa de Valores, só rindo.
- Vamos chamar o Antônio Fagundes, está na... (cervejaria do Rio de Janeiro, que era na Marquês de Sapucaí), hoje à noite ele voa pra lá, já reservei passagens e hotel, disse o gerentalha de programação ao dono da empresa de auditoria, então a melhor do País. Eu era gerentalha de operações especiais. O "velho" chefão olhou pra ele e respondeu: "O Fagundes Cabelinho já está em Porto Alegre, veio por conta própria, passar o seu aniversário com as suas meninas, vou reembolsar o que gastou. E não quer papo com ninguém, pode cancelar tudo: hoje, amanhã e depois de amanhã ele não vai trabalhar, o rapaz nunca tira férias, vende, ora, atravessa noites trabalhando, se ele me pedisse mais de três dias, uma semana, levava tudo e mais um pouco. Vai ficar bebendo e lembrando o que passou de ruim e de bom. Mande os colegas na frente para preparar o terreno. O dono da empresa me conhecia há uns seis anos, sabia que eu estaria de fogo, e que não iria trabalhar, de jeito nenhum, implícito um "pode me demitir se quiser, estou cheio de ofertas de emprego dos concorrentes."
Neste 5 de outubro de 2020 não fui trabalhar, nem irei amanhã nem depois de amanhã. Penso em assaltar um banco, não com explosão de sonegação de engravatados: com explosivos mesmo, arma na mão. Até quarta-feira passa a vontade.


 


jueves, 1 de octubre de 2020

A PRAÇA

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A praça não era apenas violência, penúria e tristeza. Hoje olhando para trás só me afloram à mente os bons momentos. Poucos, porém inesquecíveis. Os ruins o cérebro evita, preciso me concentrar para lembrá-los. Rio dos barbeiros. Os companheiros de desventura cortavam os cabelos uns dos outros com uma minúscula tesourinha, para ao menos reduzir a cabeleira. O meu eu mesmo cortava à faca pelo tato, mantinha o rudimentar punhal afiadíssimo, o mesmo punhal com que fazia a barba, esta era macia, rala, fácil de tirar no verão. Os cabelos no começo era complicado, pois só com o tato, sem espelho, não era tão simples evitar desproporção, uma parte mais volumosa que outra. Depois conferia o resultado me olhando em alguma vitrine de loja, não ficava legal. Um dia um dos moradores afanou uma tesoura boa em algum lugar, aí foi um abraço. Tocava nas regiões da cabeça, media, com os dedos indicador e médio estendia, prendia a parte excedente e lá ia a tesoura, trocando de mão a depender se do lado direito ou esquerdo da cabeça. Era destro, mas isso ajudou nos esforços para me tornar ambidestro no uso do punhal para outros fins: o inimigo o via numa das mãos, armava a defesa ou o ataque baseado nisso, e no último momento, já voando para cima dele, trocava de mão o jogando para a outra. Um dia consegui um pente, mas o usava somente para pentear os cabelos, para o corte estava habituado com os dedos. Nunca entrei numa barbearia, pois desde menino até ficar mocinho a mãe cortava em casa. Muitos anos depois, certa vez em que fui falar com um intrujão da Travessa Acylino de Carvalho, já bem vestido, morando num apartamento da Marechal, na saída do acerto com o receptador entrei numa das barbearias para ver se havia outros instrumentos que eles usavam, e os tipos de pente e tesoura. Assisti o que eles faziam e me retirei sem que ninguém perguntasse nada, nessas alturas todos na Travessa sabiam quem eu era, não tinha apenas o punhal por dentro do paletó de passeio.

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(Fragmento do livro “Os Perturbados de Porto Alegre”)