sábado, 12 de junio de 2021

QUANTA INJUSTIÇA NESTE MUNDO!

 NA RODOVIÁRIA lá dos matos uma imensa fila no guichê nº 2 para comprar passagem para Tramandaí, véspera de feriadão, três da madruga, já no feriado. Vi uma placa como essas de trânsito: "Reclamações: guichê nº 8". Saí da fila, vou reclamar, os caras da frente saíram no braço e não apareceu nenhum fiscal ou polícia. Lá no final da fila um bate-boca, o vendedor de passagens estava caindo de bêbado, e eu desarmado. Andei, estranho naquele lugar, era mais adiante, os guichês não eram em linha reta, procurei, até que achei, tinha que descer uma escada, vi mais gente procurando. Surpresa: só tinha até o guichê nº 7. Depois alguém pichou em letras miúdas nuns garranchos embaixo da placa lá atrás: "Vá reclamar para o finado Pompeu", sem dar o endereço do cemitério. Pelo que supus que naquelas alturas os bispos estavam desmoralizados. Eu não entro em igreja nem morto, bando de punheteiros, mas antigamente mandavam reclamar para o bispo.

Outro dia com estranheza na alma postei um quadro de alguém que dizia que lidar com mulher é fácil: basta você entender que metade das vezes ela tem razão, e na outra metade você está errado. Todo mundo como eu se arrepiou da inverdade que maldosamente sugeria que as damas sempre tem razão, tenham ou não. Agora esta. Não sou eu, nada tenho a ver com isso, acho que é tudo mentira só porque as donas tem razão mesmo. A rapaziada da boemia se diverte de provocação, só pode, ingratos. Posso ser horrível em outras coisas, mas nisso não: se algo corre mal chamo para mim a culpa, de algum modo errei, fui eu que, por burro ou distraído, medi mal com quem andava, por andar com quem andava. A outra pessoa é ela, eu sou eu que morri na guerra, água com cachaça não dá certo.



jueves, 3 de junio de 2021

TRIBUNAL DE SENTENÇAS IRRECORRÍVEIS

 

DEPOIS de ter sido ajudante de Sócrates, quase 500 anos antes de Cristo, aquele que um dia decepcionado com o mundo tomou veneno e morreu, sumi. Desapareci e voltei muitas vezes. Fui um rebelde que chamavam de Barrabás, mataram outro mas saí livre. Depois dei uma de cozinheiro do Nero, que mandou me pregar numa cruz, era moda naquele tempo, só porque me avancei nas putas do seu harém; ora, o sujeito não transava com elas, só ficava assassinando uma lira e pensando em fogaréu. Demorou, mas renasci numa casinha em Óstia, nas proximidades da foz do rio Tibre, aprendi a nadar naquela foz, é a mais clara lembrança que tenho. Das outras reaparições é uma névoa, tudo tão difuso, Voltaire que via os seus livros queimando, só coisa ruim, contra a evolução da humanidade, aos poucos irei lembrando. 

Logo que pude, menino ainda em Óstia, fui para Roma tentar a sorte, passei trabalho, sofri. Dedicado, lá por 1.590 aos 21 anos consegui um emprego do meu gosto, virei auxiliar nos escritos do filósofo Giordano Bruno. Eu revisava o seu latim escrito às pressas à luz de velas, às vezes ele até me pedia opinião, pedido que vindo do grande pensador me deixava emocionado. O cara sabia tudo, até de astrologia árabe. Um dia uma rede social da época, a Inquisição, levou o mestre Bruno à força, arrastado, um horror, chorei, onde já se viu, eu tinha me apegado fortemente ao grande homem. No dia seguinte me levaram e me atiraram num calabouço escuro e gelado. Logo o tribunal da Inquisição, composto por pessoas sem nome, o condenou a horrores de suplícios. No caso dele, único, tinha segunda instância, talvez por ser ele já famoso, que era amigo do Papa, já ex-amigo, foi-lhe dado o direito de se defender no TSI – Tribunal de Sentenças Irrecorríveis. Manteve tudo o que afirmava. O Papa mandou que o levassem até o seu palácio. “Se você se retratar, Giordano, sai daqui livre. Você tem razão, mas a política, o dinheiro, tu falou que somos miau... Então: se você se retratar eu faço uma bula te perdoando; a Globo, a Band e a CNN divulgarão o decreto, só cale a boca depois”. Bruno respondeu: “Quer me fazer um favor, camarada Papa? Antes de me matarem mande soltar o rapaz, ele nada fez, nada escreveu”. E seguiu reafirmando tudo o que havia dito, que o universo era infinito, que os planetas tinham suas estrelas, morria de rir da terra plana que eles afirmavam, rolava de rir daquilo de trans, que o pão e o vinho eram o corpo e o sangue de um cara, inclusive de que aquele papo de Maria Virgem era para boi dormir.

Soltaram-me, o Papa atendeu ao seu pedido. Ele foi queimado vivo no Campo de Fiori, “... o condenamos a morrer da forma mais misericordiosamente possível, sem derrame de sangue”. Morreu gritando sobre fogo que queimou seu sangue, sem se desdizer. Desde então não gosto de certos tribunais irrecorríveis de pessoas sem nome declarado, de censura, de diabos. Estou chegando de não sei onde, mas hoje sou outro, vingativo. Onde estou, em 1964? Espero que não, e que não haja um Grande Irmão eletrônico de que falava Orwell. Enquanto houver almas pestilentas assim serei punido sempre.