domingo, 28 de marzo de 2021

LUCHO GATICO

 (Fragmento de rascunhos do livro O CONVENTO)


É uma luta, mas a gente luta, eu lutei e luto. Vida que segue: fecha-se uma porta, abre-se outra. 
Enquanto as freiras dormem, vejam quem me acompanha nesta madrugada, quase seis da manhã, eu tomando um pote de trago, escrevendo um textinho para o NY Times a respeito do inominável alcaide de Porto Alegre e ouvindo um bolero com o Lucho Gatica?
O próprio, o novo morador do Convento, que emocionado ouve La Puerta na voz de Lucho, um dos reis dos boleros de antigamente. Pelo jeito ele também é abolerado, então vou sugerir que a freiras, na Assembleia Geral onde escolherão o nome do nenê, coloquem em votação o nome que indico: Lucho Gatico. Luchito, para os de casa. Sete da manhã e a noviça Ju Gemidinha me aparece à porta da sala do som, seminua. Pensei "Lá vem incomodação", com ela é sempre assim. O verão foi um inferno de desfiles das donas para lá e para cá com no máximo soutien e calcinha, em geral só de calcinha, a Ju e outras calorentas abusadas sempre peladas. Antes que dissesse algo eu lhe falei:

- Anda botar uma roupa, mulher, vai pegar uma gripe!

- Acordei pra fazer xixi e no banheiro vi a tua postagem dizendo que quer que o gatinho se chame Luchito. Eu quero "Abusado".

E se mandou dormir de novo., a abusada Deu-me o que pensar: se a maioria escolher outro nome vão sifu comigo. Ora, sou o "pai", eu que passei um trabalhão para trazer o neném. Se decidirem algo diferente saio às escondidas, vou lá no Cartório de Registro de Nascimentos de Gatos e boto o nome que eu quiser!

Mudando de saco para mala, conto outra. Eu era bem novinho, mui malito de vida. Mas esta foi boa, hoje todos riem da estória em que certa vez fui registrar uma filha, a sua mamãe queria o nome de Sofia, pois tinha visto um filme da história de Sofia, mas não me impôs, sugestão de moça como eu meio virgem no assunto. Sofia? Lindo nome. A nascitura tinha me dado um trabalhão, meninos e meninas, quase morri mas a salvei, nasceu viva e saudável. Fui lá, entrei na fila, peguei testemunhas ao acaso, negada que como eu com a boca nas orelhas ia registrar os seus, também assinei de testemunha de alguns que nunca tinha visto na vida, e voltei. Na certidão do cartório a minha filha se chamava Natividad, que em uma das acepções significa nascida viva.



martes, 9 de marzo de 2021

CAPRICHO CIGANO

 

Do projeto de livro com título provisório de "Meninos e meninas, eu vi.” Fragmentos de rascunhos em tempos de horror.

Ficciones, cualquier similitud con la realidad es pura casualidad.

 

CAPRICHO CIGANO

Já fiz tudo pra te dar / Vida mais feliz, até já quis te dar um lar / Teus carinhos não são meus / És volúvel, anda, parte, adeus.

 (...)

Um dia na cidade o seu Evódio tocou “Só para Você” para uns velhos boêmios excomungados pela sanguinária ditadura. Um menino enfiado entre os velhos se animou e cantou uma parte do dobrado, ao final o rapazinho com lágrimas nos olhos: "E eu fiz esta canção / Quando digo ninguém crê / Não importa, meu amor / Ela é só para você". "Dobrado" é o que diziam de canções assim, uma mistura de bolero, rancheiritas, caboclos sertanejos, paraguaios e não sei mais não o que. Que tempos aqueles. Lembro de muitas coisas. Na terrinha de onde fugi alguns rapazes mais velhos, hoje encanecidos fascistas, diziam que em tempos idos frequentavam a zona do meretrício, situada num morro afastado, uma subida que começava lá embaixo perto da matança de bois, no tempo em que o gado era enfiado no brete, levado a vara ou levando choques em fila indiana e morto a marretadas na cabeça do matador num patamar acima ao final do corredor. Antigamente, hoje é igual ou pior. Isso antes de a zona se mudar, pois depois soube-se que desceu, misturando-se à cidade que sempre foi sua, pois era na Vila Brasília que despejavam os seus verdadeiros eus. Grave erro dos habitantes da zona, que mal ou bem lá viviam, era um bairro imenso, mortes só para eliminar gente podre, intoleráveis na comunidade. Desceram e o bairro mudou de nome, devem ter sido forçados por alguma prefeitura, pois a Cidade lá embaixo, ela sim era zona de perigoso meretrício, traições muito piores que punhaladas ou garrafadas de ciúmes, garrafa cheia é quase como uma martelada vinda de cima para matar boi.

Bom, eles, os mais velhos, dizem que frequentavam a velha zona mas não lembram do boteco do Zé Careca, do bar do Titio, dos cabarés das senhoras D. Stanislava – a Polaca e de D. Bastiana, entre muitos famosos. Dos cabarezinhos menores nem sonham. Muito menos sonham de aos 14 anos dançarem com uma dama de vermelho, ela com vestido com corte de um lado, na penumbra da pista sem mais ninguém, madrugada alta, o cabaré quase vazio, os quartos nos fundos só com dois, um deles era o gigolô de uma das mulheres, dormiria lá. Os de boa família ladra, rica, fazendeiros e muitos outros, mentem, metem, pagam e vão embora. Perversão, dependendo dobra, triplica, até quintuplica o preço, se alguma topar, algumas eles pagando bem ensinaram, começando aos poucos, uma coisa de cada vez até que ficavam pervertidas, gostavam de agressão, de sentir dor, mais dor, gemiam pedindo mais com velas pingando nos seios já cheios de queimaduras, de cigarros apagados nas costas, nas nádegas e coisa pior. Logo tinham aquelas calcinhas de couro com um enorme pênis de borracha e plástico, e metiam neles dizendo o que eles queriam ouvir: “Abre bem a bundinha, cadelinha, vou meter tudo, diz que quer, diz putinha, meu viadinho...”. Os donos de tudo das famílias de bem da ditadura lá na cidade berravam “Quero, mete tudo!”. Como dizia um político asqueroso deles: “Mulher tem que pagar para não deixar rabo, se não pagar a infeliz vai querer amorzinho; pagando é uma troca, comércio”.

A moça de vermelho que antes olhava para o menino, este meio escondido numa mesinha escura do canto, ao voltar lá dos fundos olhou de novo e o rapazinho num ímpeto levantou-se e com um gesto a convidou para dançar. Ela foi para a mesinha com ar de dó, como quem diz tu nem deveria estar aqui, o que ainda está fazendo aqui? Sentou-se à frente, educada, pagando a cerveja, estava com grana, cobrou em dobro de um fascista pregador de moral que tinha idade para ser seu avô. Diálogos, silêncios, lágrimas, um brinde.

Logo a mulher de 27 e o jovem de 14 anos dançariam, quando as luzes multicolores da pista foram apagadas, o cabaré logo fecharia, restou uma luzinha azul por alguma consideração, era o aviso da dona lá dentro. O seu Evódio da Gaita, último dos músicos no pequenino palco, que ultimava o trabalho de se mandar, homem que já conhecia de vista o menino, abriu o acordeão: Capricho Cigano. A mulher levou o moço para a pista, ele muito sério. Ela bailou sorridente, gentil e amorosa, no fundo também uma pobre menina. Nada aconteceria, mas quem sabe um dia. Um dia que não tardaria tanto.

(...)

https://www.youtube.com/watch?v=4egGgVGUn34

https://youtu.be/WnBjAID7EFs