sábado, 28 de diciembre de 2019

PASSEANDO NO MENINO DEUS

,

Resultado de imagem para furgão branco pequenoLi que segundo o IBGE o trabalho informal bateu novo recorde no Brasil. Trabalho informal todo mundo sabe o que é: é desemprego, é bico, é qualquer coisa que a pessoa possa fazer pra levar comida pra casa. De certo modo é o que os palacetes chamam de “empreendedorismo”, essa insultuosa ironia. Lembrei das minhas andanças há uma semana, naquele dia das sete da manhã às cinco da tarde pelas ruas do Menino Deus e bairros adjacentes. Em outras oportunidades andava com outra roupa em outro horário. Ia devagar sob um sol de rachar. Tênis, bermuda e camiseta regata, e o chapéu de malandro do bem, tudo novinho, parecia magnata. Morro de saudades dos tempos em que morei na Barão, na Marcílio, Caldwel, André Belo... na Dezessete, lá adiante na Botafogo, Barbedo... tantas, morei em quase todas as ruas do bairro. Quando algo corria mal me mudava novamente, voltava a morar na Praça Garibaldi, pelo lado de cá a divisória da Cidade Baixa. Passei a José de Alencar e fui até lá em cima da Oscar Bittencourt, morei lá na pinha. Desci pela Silveiro e entrei novamente no lado que dá para a Praia de Belas, pela Baronesa do Gravataí. À direita caí na Rua Costa, que não tem saída direta para a Getúlio, para lá e para cá. Parei na esquina da Grão Pará, andei e resolvi entrar na Itororó. Na metade da Itororó vi a moça, linda, loirinha sorridente que conheci há alguns anos quando casadinha no Morro Santana, um amor de guria. Ia passando na maior calma e a vi de branco, calça e jaquetinha tipo roupa de médica à minha frente, mexendo na traseira de uma pequenina camionete também branca estacionada ao lado da calçada. Abriu: dentro frascos de plástico coloridos, de diferentes desenhos, bonitos, de litro ou litros, marcas famosas de produtos de limpeza, sabões, amaciantes, etc. Estendeu uma rampa de plástico com uma cadeira na outra ponta e começou a colocar os produtos em exposição, estava vendendo. Virou-se quando passei e disse: “Olá”, com um lindo sorriso. Eu já a tinha reconhecido, ela me reconheceu só quando me viu, depois do Olá dirigido a um possível cliente morador das adjacências. Abracitos, palavras de praxe, me disse que tinha se separado e estava se virando com trabalho informal. O seu atual companheiro estava fazendo a mesma coisa em outro bairro. A caminhonetinha era alugada, sem origem. Não pergunto, dependo disto, disse ela. Os frascos eram reaproveitados do lixo seco, bem lavados e tal. Os líquidos eles faziam num galpão atrás da sua moradia. Mas o nosso produto é melhor do que o original, e a gente vende pela metade do preço, disse muito séria. Acreditei e acredito, ela é uma boa moça. Felizmente naquele dia não apareceu fiscalização da prefeitura para barrar a atividade de sobrevivência do que nem cócegas faz nas múltis. E tu, agora mora por aqui? Não, só estou passeando, olhando as casas bonitas, aqui no bairro ainda tem casas finas, não apenas espigões frios. Pretende comprar uma? Ah, se eu pudesse, menina... mas não, meu anjo: olho para assaltar. Rimos ambos. Despedidas de promessas de vamos nos ver novamente, apareça, a gente gosta muito de ti e tal. Segui feliz a minha procura, o passeio em que ela acreditou. Certa vez perseguimos um brutamontes nazista lá do Parcão que matou um morador de rua das nossas relações afetivas por pura maldade, o bandido sumiu por estas imediações, rondamos a noite inteira e simplesmente tinha evaporado, sair não saiu. Mora por aqui ou tem alguém, então se não mora um dia vai voltar. E eu, que vi o seu rosto, e que entre nós sou o único que conhece cada pedra do Menino Deus, vou pegá-lo. Agora no rastreamento. Uma vez identificado, endereço, amigos, depois de pegar domínio do terreno, é que vou mandá-lo para o inferno, no dia e hora em que eu quiser. Está demorando, o pessoal da Praça nem me pergunta mais para não me desconcentrar. Sinto que será neste verão.

(Fragmento do conto, in "Os perturbados de Porto Alegre")
.

No hay comentarios.:

Publicar un comentario