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PASSEANDO NO MENINO DEUS
,
Li que segundo o IBGE o trabalho
informal bateu novo recorde no Brasil. Trabalho informal todo mundo sabe o que
é: é desemprego, é bico, é qualquer coisa que a pessoa possa fazer pra levar
comida pra casa. De certo modo é o que os palacetes chamam de “empreendedorismo”,
essa insultuosa ironia. Lembrei das minhas andanças há uma semana, naquele dia das
sete da manhã às cinco da tarde pelas ruas do Menino Deus e bairros adjacentes.
Em outras oportunidades andava com outra roupa em outro horário. Ia devagar sob
um sol de rachar. Tênis, bermuda e camiseta regata, e o chapéu de malandro do
bem, tudo novinho, parecia magnata. Morro de saudades dos tempos em que morei na
Barão, na Marcílio, Caldwel, André Belo... na Dezessete, lá adiante na
Botafogo, Barbedo... tantas, morei em quase todas as ruas do bairro. Quando algo
corria mal me mudava novamente, voltava a morar na Praça Garibaldi, pelo lado
de cá a divisória da Cidade Baixa. Passei a José de Alencar e fui até lá em
cima da Oscar Bittencourt, morei lá na pinha. Desci pela Silveiro e entrei
novamente no lado que dá para a Praia de Belas, pela Baronesa do Gravataí. À direita
caí na Rua Costa, que não tem saída direta para a Getúlio, para lá e para cá. Parei
na esquina da Grão Pará, andei e resolvi entrar na Itororó. Na metade da
Itororó vi a moça, linda, loirinha sorridente que conheci há alguns anos quando
casadinha no Morro Santana, um amor de guria. Ia passando na maior calma e a vi
de branco, calça e jaquetinha tipo roupa de médica à minha frente, mexendo na
traseira de uma pequenina camionete também branca estacionada ao lado da
calçada. Abriu: dentro frascos de plástico coloridos, de diferentes desenhos, bonitos,
de litro ou litros, marcas famosas de produtos de limpeza, sabões, amaciantes,
etc. Estendeu uma rampa de plástico com uma cadeira na outra ponta e começou a
colocar os produtos em exposição, estava vendendo. Virou-se quando passei e
disse: “Olá”, com um lindo sorriso. Eu já a tinha reconhecido, ela me
reconheceu só quando me viu, depois do Olá dirigido a um possível cliente
morador das adjacências. Abracitos, palavras de praxe, me disse que tinha se
separado e estava se virando com trabalho informal. O seu atual companheiro
estava fazendo a mesma coisa em outro bairro. A caminhonetinha era alugada, sem
origem. Não pergunto, dependo disto, disse ela. Os frascos eram reaproveitados
do lixo seco, bem lavados e tal. Os líquidos eles faziam num galpão atrás da
sua moradia. Mas o nosso produto é melhor do que o original, e a gente vende
pela metade do preço, disse muito séria. Acreditei e acredito, ela é uma boa
moça. Felizmente naquele dia não apareceu fiscalização da prefeitura para
barrar a atividade de sobrevivência do que nem cócegas faz nas múltis. E tu, agora
mora por aqui? Não, só estou passeando, olhando as casas bonitas, aqui no
bairro ainda tem casas finas, não apenas espigões frios. Pretende comprar uma? Ah,
se eu pudesse, menina... mas não, meu anjo: olho para assaltar. Rimos ambos.
Despedidas de promessas de vamos nos ver novamente, apareça, a gente gosta
muito de ti e tal. Segui feliz a minha procura, o passeio em que ela acreditou.
Certa vez perseguimos um brutamontes nazista lá do Parcão que matou um morador de
rua das nossas relações afetivas por pura maldade, o bandido sumiu por estas
imediações, rondamos a noite inteira e simplesmente tinha evaporado, sair não
saiu. Mora por aqui ou tem alguém, então se não mora um dia vai voltar. E eu, que
vi o seu rosto, e que entre nós sou o único que conhece cada pedra do Menino
Deus, vou pegá-lo. Agora no rastreamento. Uma vez identificado, endereço,
amigos, depois de pegar domínio do terreno, é que vou mandá-lo para o inferno,
no dia e hora em que eu quiser. Está demorando, o pessoal da Praça nem me
pergunta mais para não me desconcentrar. Sinto que será neste verão.
(Fragmento do conto, in "Os perturbados de Porto Alegre")
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