viernes, 23 de junio de 2017

PODE RINCHAR

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Até a semana passada, eu sozinho na casa da mãe, o maldito telefone não parava. Atende e é um (011) que cai sem dizer nada.

Pior ainda as instituições ditas de caridade querendo morder a velha. Ela pagava uma mensalidade para uma, e os malandros repassavam seu nome e telefone para outras, estas para outras, no fim umas mil: "Lá tem uma velhinha fácil de tirar os trocos".

Para estas, como são caridosas, me limitei a mandá-los tomar no cu: vai trabalhar, vagabundo.

Não tenho telefone celular de há muito, os malditos credores não me deixavam em paz. Cansei de atender e responder: vou descobrir onde tu mora, advogadinho de crédito podre, e tu vai morrer junto com o dono desse banco-agiota.

Pararam aqui na mãe, pois desliguei da parede, não dava conta de tanto "Vai tomar no cu". Comecei a perder a paciência e a falar em "Tu vai morrer".

Hoje recordei de um colega auditor e religuei, resolvi tentar manter a calma e fazer como ele.

Em pleno carnaval em Belém, madrugada alta, eu tinha segurado três andares de funcionários de um poderoso banco estatal lá da Amazônia. Precisava emitir o Parecer dos Auditores até a Terça Gorda, devido a uma liminar concedida por um juiz federal comprado pelos caras, que na quarta-feira seria derrubada, mas já então com tudo publicado, os espaços no Diário Oficial e outro de grande circulação já reservados, tudo pronto, só faltava o Parecer, o que não vem ao caso.

Um dos meus colegas, que estava trabalhando numa das subsidiárias do bancão, soube e me disse: "Vou aí ficar contigo em solidariedade, não vou para o hotel ficar lá sem nada para fazer, aí pelo menos posso te ajudar fazendo cafezinho, se mais não puder". Um figuraço, o Marcos Adolfo.

Dois diretores deles de plantão, com seu bando de advogados, também lá, apertando o ânus pelo que poderia sair no Parecer. Um dos advogados, metido a luminar em legislação societária, tentou um lero estranho comigo e o expulsei do prédio sem levantar a voz; aquele, que não queria ir, deve ter ido para o carnaval. 

O Marcão frio, com aquele bigodão, muito sério, quieto ao meu lado, olhando feio para eles.

Recém era uma da madrugada e juntou uma centena de pessoas na frente do prédio: era maridos, esposas, namorados, namoradas, etc., todos esperando os seus que estavam trabalhando lá dentro, só da informática eram uns trinta funcionários, para caírem no carnaval.

Os telefones começaram a tocar, ele atendeu um, um cara o xingou. Atendeu outro, idem. Mais um, nova xingada, mais grossa. Ele me disse, rindo: "Fagundes, em três ligações virei corno, sem vergonha e filho da puta".

Parou de atender. Os telefones tocavam, o Marcão sorria e exclamava:

"Pode rinchar que eu não te atendo!"

Liberei o pessoal só às seis da manhã, quando o céu de Belém explodia em fogos, uma tradição deles ao amanhecer de noite de carnaval. Os amigos podem imaginar o número de pragas que nos rogaram.
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miércoles, 14 de junio de 2017

NO CAFEZAL (1)

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Chapéu na cabeça, sem amigos, novo na área, eu tava tomando pinga encostado no balcão de um boteco-mercearia do bairro-favela Cafezal, em Belo Horizonte, lá por 1999, quando a mulher entrou, uns 29 ou 30 anos. Pediu ao alarife, que além de ladrão era dono do boteco, duzentos gramas de couro de porco salgado. Ele pesou os duzentos, se tirasse o sal daria cem, e olha lá.

Até ali, pelo pouco que eu sabia, mineiro gostava mesmo era de pé: pé de galinha, pé de porco, pé de diabo, pé de tudo, exceto pé de boi, mas arrisquei:

- Desculpe a curiosidade, mas vai fazer feijão, moça? - Adoro couro no feijão.

- Vou sim, moço - e abriu um sorriso.

Gostei. Ela comprou mais umas coisinhas e saiu. Da porta, já do lado de fora, se voltou rapidamente, sem insistência, e me sorriu de novo. Nada de frescuras, ela tinha um olhar um tanto triste. Olhos grandes, verdes-água, como certas espanholas.

Larguei o liso de pinga, disse já volto ao bandido detrás do balcão e saí batido. Alcancei-a no meio da quadra.

- Oi, tu aqui de novo, desculpe ter perguntado antes, mas é a primeira vez que vejo mineiro fazer feijão com courinho.

- Aqui é normal, uai, tu que não viu - e tornou a sorrir, agora um sorriso alegre.

- Tu bota uma folha de louro?

- Boto, mas não tinha na mercearia.

Tirei a carteira, abri e peguei:

- Esta é uma folha seca de louro, era fresquinha quando a ganhei há muitos anos de uma irmã, para mim é talismã, guardo com carinho na carteira, me protege, peço que aceites.

- Ai, tão importante pra ti, não precisa...

- Insisto, por favor.

- Muito obrigada, nunca vou esquecer o teu gesto.

- Me dá aqui essa sacola, eu levo pra ti, vou pro mesmo lado - falei sem saber para que lado ela iria.

Subimos seis ruas, desviando pra lá e para cá.

Fomos conversando trivialidades, até que a confiança se estabeleceu, nos entendemos. Ela tinha uma machucadura feia numa das orelhas, outra no ombro, perguntei e me contou que o marido havia lhe dado com um martelo, ele tinha uma fabriqueta de móveis. Tinha serras, lixas, martelos... Sempre chegava às onze da noite irritado, carregando numa caixa de mão alguns instrumentos de trabalho.

- Tu tem filhos, pequena?

- Dois pequenos, 3 e 4 anos, Bruno e Júlio.

- Também me chamo Bruno.

- Ai que amor. Eu sou Lucília.

A cem metros da sua casinha parou, apontou onde morava lá adiante e se despediu de mim, não convinha os vizinhos vê-la chegar acompanhada. Beijou-me na face, mas com respiração de desejar beijo na boca. Saiu com o rosto rubro, afogueado, sem olhar para trás.

Era oito da noite. Voltei para o boteco. Tomei só mais dois lisos, concentrado. Gostei da moça, uma coisa que nunca tinha me acontecido, talvez pelo seu jeito de sorrir, sorriso que mesmo quando triste era lindo. Voz doce, amorosa, jamais briguenta ou teimosa, e era bonita de corpo.

Às dez e meia eu estava de volta àquela rua, no escuro, em espera ao marido irritado. O instinto me disse que ele viria pelo outro lado.

Às dez e quarenta e cinco ele levou três tiros, ficou estatelado no meio da rua escura. A caixa se abriu com a queda, vi o martelo grande. Puxei o chapéu até o nariz e fui saindo de costas, enquanto a vizinhança acendia as luzes de casa. Fuguei-me, ninguém me viu.

No dia seguinte eu estava no mesmo bolicho, como estaria lá ao anoitecer de muitos dias, sabia que não demoraria, um dia ela voltaria comprar courinho de porco ou outra coisa, muito mais alegre, e olharia para mim feliz, cúmplice.

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