martes, 16 de junio de 2015

Lanceiros

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D. Julieta saiu fazer compras, fiquei sozinho com as suas vinte hóspedes do cabaré, digo, da pensão. Ui, só muié e eu. Todo fresco ofereci música, com seu Paulo Vanzolini na cabeça. Já paguei mais de vinte e cinco pra me livrar de erros feios que cometi.

Tela cheia, por favor.

Esse lance do "lanceiro" me faz lembrar dos meus queridos punguistas de Porto Alegre. Eu lá, de terno e gravata no Mercado Público, quem vejo? A turma da cadeia, de Charqueadas e do Presídio Central, se fazendo de sonsos. Olhava-os com ar de repreensão, em silêncio: "Tirei-os da cadeia, seus putos, e estão doidos pra voltar", mas sabendo que a tigradinha não tinha muita escolha, analfas de pai e mãe que eram. Aí eu saía do Mercado, tomar um chope longe, pros lados do Gasômetro, quanto mais longe melhor. 

Sabia que ao menos seguiriam algo que lhes ensinei: "Não batam de pobre, se um dia forem obrigados, no desespero, peguem cola-fina hijo de pápi, quem rouba de ladrão tem cem anos de perdão". Sei que errei ao dizer isto, mas fiz, assumo.

Sabia que logo um iria trombar (comigo por perto não fariam, não eram doidos de desrespeitar quem os visitava no Natal, Dia dos Pais, Ano Novo, etc, naquelas pocilgas chamadas presídios), desequilibrando o sujeito, outro bateria a carteira e a entregaria a um terceiro num gesto sorrateiro e rápido, este que se sumiria na multidão. Se alguém se flagrasse da manobra e fosse atrás levaria uma punhalada de um quarto. Que vida.

Claro que eu tinha que me pelar pra entrar na prisão, revista. Mas dizia, rancoroso, pro carcereiro da portaria: "Gostaria que fosse a tua mãe a me ver pelado, moleque". Dizia baixinho, só pra ele ouvir. Reaja que te pego na rua outro dia. Fingiam que não ouviam. Ora me revistar. Depois pararam com isso, se quisesse entraria com metralhadora sob o bruxo, um sobretudão preto que uma mulher me deu.

Querido Dr. Marino De Castro Outeiro: tu sabe como comecei a entrar em Presídio, lembra? Foi no Central, quando o amigo me aconselhou e me ajudou a tentar tirar um neguinho lá de dentro. Aí conheci o resto da meninada lá trancafiada, eles se revezavam no convite pra ir lá, palestrar em dias tristes, Parodiando Jaime Caetano Braun, começava assim: "Meus irmãos de território, sou o Sala das Missões, vim aqui neste Dia da Criança para me acalmar, e se puder acalmar os corações dos amigos, pois não tememos a vida e muito menos os ratos...", e lá ia conversaiada pra moçada, invocando espíritos.

Hoje já meio longe daqueles tempos, quase rio de uma bobagem que falei. Pedi pra desligarem as poucas luzes que tinha, vamos ficar no escuro, quero um minuto de silêncio, vamos fechar os olhos, que todos pensemos em nossos pais, mulheres, namoradas, irmãos, filhos, enfim em todos que amamos, pedindo a Jesus que olhe por eles, pois Jesus passou coisa pior do que hoje vocês passam aqui neste lugar horrível. O Coió correu a desligar. Na penumbra fez-se um silêncio comovente. Passado o minuto retomei a palavra: "Não devemos nunca esquecer de respeitar nossos pais, respeitar os mais velhos...". Aí um moleque do mezanino falou lá de cima: "Mas, Sala, bandido também fica velho, e bandido sem-vergonha a gente não respeita". Dizer o quê? Respondi: "Tu tem razão, meu fiinho, eu quis dizer aqueles que merecem respeito", mas ele me pegou, sorri pro lado dos mais velhos, que já estavam sorrindo para o meu lado também.

O salão sujo, caindo aos pedaços, superlotado de moços com os olhos arregalados, muitos se apertando ao alto no mezanino, eu sentado no chão no meio do salão daquele horror, pernas cruzadas. Eles deixavam um parente de lado para me levar, pois jamais entrei no inferno por mãos oficiais. Quando inverno entrava de sobretudo, terno azul, camisa branca, gravata vermelha, mesmo na ala que os guardas não entravam, não eram loucos, quem tem cu tem medo. Em novembros das Crianças, sem sobretudo. Andei escrevendo isso em algum lugar. Dia destes crio coragem e publico, a conversa é muito longa, as lágrimas são muitas, de ensopar o pátio de tomar sol, ou chuva e frio em tristes invernos.

E tem pessoas (?) querendo enfiar meninos de dezesseis lá dentro. Não, senhores demos, não estou me achando. Como dizia o outro (salve, seu Martinho da Vila), burgueses são vocês, eu não passo de um pobre coitado. Alguém aí, dos meus adversários, lembra da cabecinha que tinha aos dezesseis? Dezesseis nada: dos abobados que eram aos vinte e cinco anos? Alguns abobados até hoje, aos sessenta.
Olhando pra trás pela névoa do tempo vejo que fiz muito pouco, porque mais não podia.


Na praça Clóvis
Minha carteira foi batida
Tinha vinte e cinco cruzeiros
E o teu retrato
vinte e cinco
Eu, francamente, achei barato
Pra me livrarem
Do meu atraso de vida
Eu já devia ter rasgado
E não podia
Esse retrato cujo olhar
Me maltratava e perseguia
Um dia veio o lanceiro
Naquele aperto da praça
vinte e cinco
Francamente foi de graça