ÀS URNAS! (Parte 1 de 10)
De cerveja em cerveja, fumando e batendo máquina a noite
inteira em arrumações de uns contos para o livro Os Perturbados de Porto
Alegre, tomei um fogo daqueles. Amanheceu. Às 7 da manhã a sóror Mariana de
Rosário, a índia da Serra do Caverá, abriu a porta do quarto do som onde me
escondo e disse: - Tu tem que ir votar, o horário de votação dos velhos é das 7
às 10. Quase perdi a concentração do texto.
- Velho é o teu pai. - Respondi rindo.
- Tava brincando, tu é um guri que aparenta 35, imagine, é
que é bom votar logo para ter o resto do domingo tranquilo, daqui a pouco vai
te bater o sono.
- Mentirosa, aparento 90, mas tu tem razão, vou lá.
A sóror tem um fusca 1972, com ele me levou à Cidade Baixa de
Porto Alegre, a apenas 12km de distância do Convento. De fogo fui só de calção
e pés descalços. Ao chegarmos na Rua da Olaria, nº 400, uma escola onde voto,
ela abriu uma sacola e disse: - Aqui está a tua carteira com os documentos, e
aqui estão as roupas, tire o calção, vista a calça, a camisa e calce os
sapatos.
Obedeci. Fui lá bem vestido com cara de homem sério. Não foi
difícil achar a minha seção. Tinha uma velhinha na minha frente na fila de
poucas pessoas. Atrás de mim uma gringa coxuda que sai da frente, tonteei. A
velhinha da frente não parava de se voltar e me olhar, até que não se aguentou.
- Eu te conheço, meu fio, tu era menino de uns 20 anos,
lembra de mim? - Desculpe, minha senhora, mas não recordo. - Eu era a cafetina
de um cabaré da Rua Ernesto Alves, e tenho uma foto contigo no colo, eu sentada
numa cadeira da calçada e tu atravessado por cima me abraçando e me dando
beijos no rosto, agradecido porque te livrei o pouso num catre lá dos fundos.
Toda a fila ouvindo, até os mesários lá dentro, ela falava alto, sem agressividade,
carinhosa, mas em alto e bom som. - A senhora me confundiu com outra pessoa. -
Não, era tu, não sou louca, tu tava mal de vida, na miséria, ou era teu irmão
gêmeo. - Bom, tive um irmão gêmeo, aquele era bom, morreu, infelizmente. -
Morreu, meu fio? Lamento muito, era um rico rapazinho, sincero e honesto,
bonito como tu. - Pois é, D. Lucrécia, é a vida, Deus só leva os bons, bonito
pelos seus olhos bondosos.
Silêncio, um tempinho, tremi pelo ato falho, o que faz a
bebida, mas ela estava muito velha, não iria perceber. Virei-me para a gringa,
ui, que peitões, que com a mão tapava a boca mascarada para abafar o riso. Veio
a voz da velhinha atrás: - Eu sou a Lúcia. Como é que tu sabe que o meu nome de
guerra era Lucrécia, meu fio?
(...)
(Ilustração: Lucrezia Borgia, tela de Dante Gabriel Rossetti,
de 1871)