jueves, 31 de julio de 2014

Amores (1)

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Estou feliz que vieste, moça...
Não sou moça, sou mulher, tenho 41 anos.
Sim, me desculpe, prezada senhora.
Não sou senhora, sou mulher.
Sim... então, prezada mulher...
Não sei isso de prezada, mas pode dizer.
Como foram esses 41 anos? Espere, deixe eu encher a tua taça.
Não quero falar sobre isso, o cara era um pau no cu.
O cara?
Um não, uns quantos, só coisas negativas, eu fora, comigo não.
Sim... Ahn, pois bem, mulher, eu gostei do teu jeito de caminhar, desengonçada, uma ave lin...
O quê, desengonçada? Não sou isso, não gostei, acho que vou embora.
Quis dizer que me deu uma coisa boa o teu jeito, estou feliz que tenhas aceitado vir tomar vinho comigo neste bar, estou contente, andava muito só.
Está feliz mesmo, não minta?...
Sim, estou feliz, ora mentir, para quê? Veja no meu rosto, e ao ver agora o teu breve sorriso, que vi outro dia – raramente sorris, a noite ficou mais linda.
Não te notei, quando tu viu?
Ah, meses atrás, quando esbarraste numa idosa ao subir no ônibus aqui na Rua da Olaria.
Ah, me lembro da velhinha, caiu feio, não olha por onde anda, juntei ela.
Tintim?
Tintim, não, assim não, pelo outro lado, João, é João, né? Não viste que uso a mão esquerda? Assim, tintim. E tu, faz o quê, não me diga que é advogado, esses caras só enrolam.
A gente é que se deixa enrolar. Apenas ando por aí, procurando um amor, uma mulher desengonçada, com jeito de ave...
Não sou daquelas que tu pensa, se aceitei não pense que...
Tua taça está vazia, mulher, espera, assim, este branco é excelente...
Meu nome é Clorilda, mas não gosto, pode me chamar de Clora.
Sim, Clora, eu já sabia, gostei de ti, sabe, a ave...
Gostou porque não me conhece.
Pode me dar um beijo?
Não.
Por que repetir tanto essa palavra?
Não entendi, que palavra?

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miércoles, 23 de julio de 2014

O meu amor por Elizeth

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Ontem amigos de bar e eu conversávamos sobre o aniversário de 84 anos de Élton Medeiros. Eles são amigos recentes, antes nunca os tive, os dois que tive morreram sem ver. Não pude deixar passar a ocasião, tonteei, pedi outra bebida e com a voz meio que embargada em certa altura, contei-lhes.

Tinha uns 15 anos quando ouvi pela primeira vez o samba Pressentimento, do seu Élton em parceria com Hermínio Bello de Carvalho. Elizeth Cardoso cantava. Meu Deus, guri introvertido, me apaixonei por Elizeth. Prometi a mim mesmo, segredo que nunca contei a ninguém, que um dia fugiria de Palmeira das Missões, iria ao Rio de Janeiro e casaria com Elizeth. Coisa de criança? Não mesmo. 

Ela solitária, triste, linda, ouviria os meus passos, caminhando alta madrugada, amanhecendo numa senda verde, e diria: "Vem, que o sol raiou, os jardins estão florindo, tudo faz pressentimento, que este é o tempo ansiado, de se ter felicidade. Vem, meu grande amor...". Eu sairia do inferno para o paraíso, me aninharia em seus braços.

Ir ao Rio fui, muitos anos depois que saí dos meus infernos, tive muitos outros infernos pela frente até conseguir, e ao conseguir fui demais até, de ficar quatro meses por ano, quase virei carioca, porém a segunda parte não deu, ela era um pouco mais velha que eu, 32 anos de diferença, pouco me importava, até dava, mas era casada, avó, e eu tinha uma querida guria de companheira em Porto Alegre. Nunca sequer a vi pessoalmente.

Se fosse procurá-la em sua casa, bem vestido, ainda que modestamente, de terno escuro, gravata, chapéu que já então ninguém usava, rosas amarelas nas mãos, sei que ela e sua família me atenderiam bem, sou um cara decente, e me tirariam para amigo quando contasse sinceramente o motivo que me levava. Estranhariam inicialmente, depois ela riria, aquele riso solto de alegria, me abraçaria, me daria até algum conselho, uma bebida, um café, no fim, na hora de ir embora, me beijaria com carinho e pediria para voltar quando quisesse. Voltaria, passando a visitá-la regularmente, a cada ida ao Rio. Tímido deste jeito, claro que não fui. Vai que me saísse tudo ao contrário.

O máximo que pude fazer foi levar-lhe flores, rosas vermelhas, dois meses depois que morreu. Sozinho, numa manhã de domingo carioca de um julho em que chovia, chovia... eu lá parado no Cemitério do Caju, as lágrimas quentes que me queimavam o rosto se confundiram com a chuva, ninguém notou, não tinha ninguém mesmo, e naquele silêncio de abandono um surdo da Portela ecoava nos meus ouvidos, em terrível marcação de tristeza. Ainda hoje, agora, neste julho chuvoso de Porto Alegre, o ouço: BUM... e um tempo interminável enquanto ressoa, anos, até a mão do portelense abafar já miudinho, bó. E vem de novo, BUM... a marcha fúnebre dos sambistas. Meu coração, uma turbulência que contrastava com o rosto molhado, de teimoso nunca se demonstra, foi se adaptando ao surdo, acalmando, esfriando, mas um frio ruim. Por instinto temi que parasse, então ajeitei as flores, beijei a pedra com seu nome e saí.

Entrei naquele cemitério com 37 anos físicos, 80 de lambadas nas costas, apanhado da vida, e saí com 80 físicos e não sei quantos de mundo. Enfiei-me num inferninho na Cidade, para beber, as mulheres faziam barro e eu só dizia me deixa, dona, isso ao meio-dia. 

À tarde fui procurar minha mana carioca, que morava em Copa, ela surpreendeu-se, não sabia que eu estava no Rio, perguntou e respondi que vim por motivos de saudades, e para encerrar o assunto indesejável menti que foi pela baiana da Tonelero. E fomos tomar uns chopes lá na areia, a chuva tinha passado. A mana reclamou que eu chorava por qualquer coisa. Resisti por bobo, dizendo que quando furei a onda foi de olhos abertos, ardeu. Ela riu. Mana conhece a gente. Retribuí com uma loucura: hoje vai chover muito mais, trovões e relâmpagos. Ao anoitecer ela arregalou os olhos, trovejou antes, relampejou depois, e foi água que Deus mandava, caiu um raio na praia, bem em nossa frente à beira d'água. Ela correu e se abrigou num bar do outro lado da Atlântica. Eu lá na praia, água pelos joelhos, gritava aos céus: me leve também, atire em mim se for bem homem! Onde está a felicidade, cadê a Elizeth, depois de tanto tempo ansiado, onde está?

Caiu outro raio ali adiante. A mana me buscou, ralhando com raiva, fui junto para protegê-la, perigava um cair nela, em mim sei que não cairia, Ele era meu devedor.

No fundo do meu coração ainda a amo, à Elizeth como à minha mana, esta fora de concurso, como amo ao seu Élton, seu Hermínio e tantas outras pessoas da Cidade Maravilhosa e do Brasil. Mas ela de modo diferente, era a Elizeth Cardoso, minha namorada, minha mãe, minha mulher, minha amiga, meu tudo, uma doce ilusão que me manteve vivo quando o mundo me queria morto.

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domingo, 20 de julio de 2014

Gigolô é a mãe

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O marido da polaca do oitavo andar, sargento ou major, algo assim, não entendo dessas hierarquias, só sei que se diz milico da pesada, daqueles de espancar e jogar pimenta e balas de borracha nos meninos e meninas, todo vestido de preto parecendo oficial da SS, macho que não se identifica confiante na impunidade, e se achando o cara por dar porrada em gente desarmada, bem, o otário chega em casa às duas da matina, então por precaução ela sai antes da uma, já conversamos o que tínhamos que conversar. Na saída ela ri e diz que não vai escovar os dentes, para que ele sinta o gostinho ao beijá-la na chegada, a tianga é doida, um dia vai acabar me arranjando incomodação.

Minhas mulheres chegam às quatro, e antes disso tenho muito trabalho a fazer, prometi a elas limpar o bendito fogão ora tapado de gordura, só na tampa interna do forno tem meio dedo, anos sem limpar e meta costela gorda. Disseram-me que derramando vinagre corta o barato da meleca, depois é só fincar detergente e ficar uma hora lixando com bombril. Já derramei duas garrafas de vinagre de álcool, por cima e por dentro do nosso bicho de seis bocas. Daqui a pouco vou lixar e lavar o amoroso, para que depois elas me lixem e lavem com mais ímpeto.

Hoje será mole, depois é só lavar roupa: vou ligar o negócio com sabão azul dentro e deixar girar, exceto as calcinhas, essas lavo no tanque, na mão, por gosto.

Por fim, farei comida para esperar as onças, as pobrezinhas chegam cansadas, hoje será spaghetti ao alho e óleo, comida de corredores e ginastas, vai direto para o sangue, energia pura, com salada de cebola com kiwi. As gurias só comem em casa, aquela comida lá do trabalho só bêbado para agüentar. Quando entrarem ficarei frio, pernas cruzadas no sofá da sala, engravatado, de terno azul-marinho, camisa celeste e chapéu bogart marrom com faixa azul, elas amam a gravata marrom italiana que me deram de presente - antes usava vermelha sangue, mas elas me disseram que não sou gigolô para andar de terno listrado e gravata berrante -, ouvindo o disco do Noite Ilustrada, fumando e tomando vinho, me fazendo de acabei de chegar da rua, depois que arrebentei com o último negão elas pararam de mandar me seguir, esperando que olhem o fogão, cosa más linda que vai ficar.

Depois nos ajuntaremos, os oito, na camona para assistir um filme, russo, elas sabem que americanos aqui não cabe, uns cagados querendo fazer a cabeça pela intimidação, como se tivessem três ovos, no último perdi a paciência e estraguei uma televisão, 38 especial com bala dundum é foda. Adivinhem se não fui elogiado carinhosamente pelos vizinhos, qualquer dia destes meto umas dunduns na cara deles, pois a polaca me confidenciou que uns e outros andam cochichando pelas minhas costas, me chamando de gigolô. Gigolô é a mãe, não sabem a trabalheira que tenho cuidando da casa e protegendo as gurias. Sou dono de casa, pombas, profissão "do lar", com a diferença que saio a hora que quero e quem protege sou eu, como bem sabem os imbecis que inventaram de mexer com as mulheres, eles já não estão entre nós. 

Cafifas são eles, que trancam as coitadas em casa, rodeadas de filhos, se matando de trabalhar para agradar os pulhas, enquanto eles vão entregar o dinheiro em bares e puteiros, deixa estar, vou passar o pau em todas, tempo não me falta entre quatro da tarde e quatro da manhã, quando as minhas estão na batalha. Quando estraguei a tevê os mancadas acreditaram que o fogão tinha explodido, como da outra vez que explodiu mesmo, naquela foi uma explosaozinha de nada, só queimou uma parte dos meus cabelos, além do corte no rosto pela tampa da panela que voou. Como são burros, se o tiro foi ouvido lá no Beira Rio.

Visto a velha calça Lee de serviço, boto rodar um bolachão do Nelson Gonçalves, mais uma meia-dúzia pendurados para irem caindo, adoro bolachão antigo, Paulinho da Viola, João Nogueira, Nei Lisboa, Clara Nunes, Nana Moskouri, sem esquecer a diva Kiri Te Kanawa, e mãos à obra, a felicidade custa caro.

(...)

A nega Conceição do Cativeiro Dourado foi a primeira a ver a lindeza, voltou da cozinha dando pulinhos de alegria, “Iuuú, o Salitinho não saiu, ficou trabalhando!”. Correram todas para a cozinha admirar a obra. Marieta de Uruguaiana exclamou: “Ai, tá lindo, branquinho, parece minha bundinha gostosa”. Jussara de Lisboa a interrompeu: “Só que esse é a gás, querida, e a tua come lenha”. Marieta não se conformou: “Sim, come lenha, e aos metros, por isso ganho mais do que tu”. E ficaram batendo boca, eu gelado, só me meto se partirem para o tapa. Jussara fez rima com o nome da Marieta, um troço de pulou a valeta, aí Frida, irritada, encerrou o assunto ao dizer que bundinha mais branca que a sua ninguém tem, e que se juntassem espichadas as lenhas que todas levaram no fogão daria para ir daqui à Fortaleza.

Alheia a tudo, a haitiana Sybille seguia fincando pequenos estiletes de pau em bonecos, precisava terminar também o seu trabalho, faltavam vinte políticos no seu vudu, eu que encomendei. Mariana de Rosário, a índia da Serra do Caverá, lá quieta no outro sofá, pensativa, me olhava séria, li seus pensamentos: jurou matar a polaca do oitavo se me tenteasse novamente, onde já se viu, querer roubar o homem, da outra vez foi garrafada, na próxima será punhal na goela. Ela está certa, essa polaca é muito sem-vergonha.


Minhas amadas me deram nos nervos. Mudo de assunto e pergunto do faturamento, elas começam a colocar os dinheiros em cima da mesa, conto a grana, R$ 8.900,00, comentam, como que se desculpando, que o movimento estava fraco, digo que para um sábado está bom demais. Guardo oito paus, deixando os novecentos para as despesas diárias, os oito segunda-feira deposito na poupança conjunta que abri para o futuro, com este ficaremos com novecentos e doze mil. Sem a minha assinatura ninguém mexe, eu posso mexer. Quando chegar a cinco milhões paramos e vamos gozar a vida em algum bangalô à beira-mar. 

Sirvo drinques para elas, tacinhas de vermute com cereja em palito para a maioria, martini com azeitona para Frida e Mariana de Rosário do Sul, me deram tesão, e pelo jeito que me olham serão as primeiras, boto rodar o samba Meu sonho é você, com o Noite, e pergunto se já tomaram banho. Carminda, Mariana e Frida não tomaram, se metem as três peladas no chuveiro. Lavou tá nova, meu. Da sala ouvimos os risos quando Carminda quis chupá-las debaixo d'água. Arrumo a mesa para o jantar às cinco da manhã. Daqui a pouco, na hora de dormir, vou querer voltar ao assunto das bundinhas, domingo não trabalhamos, temos todo o tempo do mundo.

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sábado, 12 de julio de 2014

O ovo da serpente

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É pessoal. Tirem as crianças da sala, esta história começa hoje mas irá longe. Não vou morrer calado, prefiro morrer de tiro.


Agora passa de noite alta em Porto Alegre, quatro e picos da manhã. Como diriam os boêmios antigos, estamos no cu da madruga. 

Para não dizerem que andei bebendo, como se eu fosse como eles, que perdem o tino com meia-dúzia de cervejas, isto se suas mulheres lhes permitirem tomar alguma, para não insinuarem que sou uma pessoa ruim, deixo para amanhã para perguntar se as razões porque quase me mataram ainda persistem, em Palmeira das Missões, cidade do Rio Grande do Sul onde passei os verdes anos. Pedirei que levantem a mão aqueles, daquela cidade, que não defendem e sonham com a volta da ignóbil ditadura, de animais de óculos escuros torturadores, incluindo um aleijado mental que outro dia alguém elogiou como governador de "todos" os gaúchos. Sem voto, imposição pelas armas, avenida Paulista, Vieira Souto e, mandando mesmo, americanos por trás dos imbecis. Dois ou três conterrâneos sei que não, mas gostaria de ver as mãozinhas do resto, a maioria.

"Todos" os negros dele. Governador meu e de muitos meninos sofridos nunca foi, à força não, por uns canalhas ladrões, Viamão que o diga, e assassinos, como aquele torto de boca torta. Enquanto sorriam, com comida farta à mesa, eu dormia na rua em Porto Alegre, fugitivo daquela nojeira, depois puteiros de favor, depois repúblicas... Coisa bem repetitiva, já falei antes, me dá engulhos repetir, mas parece que tem gente que não lê.

Aprendi muito dormindo na rua, muito em puteiros, quando de pena uma prostituta me juntou na rua, nas repúblicas que depois vieram começaram a surgir um que outro amigo do peito, a miséria aproxima os humanos, precisam dividi-la, o contrário do que ocorre com a riqueza roubada. Mais tarde Pato mudou-se por minha causa, vindo de Curitiba para cá. Com ele eu já não estava sozinho, podia me arriscar com tudo, tinha bóia e um quartinho garantidos para minhas crianças em caso de precisão. Impossível não citar a minha mãe, a quem por cartas eu mentia que estava tudo bem: me mandava comida pelo correio, latas de sardinhas, azeite, massa, mesmo eu jurando que não precisava.

Amanhã perguntarei essa e outras, hoje não convém, andei bebendo, minhas senhoras me chamam para a cama, melhor assim, pois se para me desqualificar, antes de tentarem me matar, me caluniaram até me chamando de bêbedo, a uma criança de 17 anos, imaginem o que fariam agora. Será que fariam, com homem? Sem os milicos, pegariam em arma para me encontrar no mano a mano no meio da rua?

Amanhã pergunto.

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sábado, 5 de julio de 2014

Arriba, Argentina

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Antigamente os letristas sul-americanos falavam muito em torvelinho, torbellino, para ilustrar vida atribulada, coração sem direção ou cabeça de vento. Enfim, acho que aconteceu comigo de ontem pra cá, só no coração, ou na cuca também, sei lá, depois penso nisso. Em torvelinho.

Deu-se que uma inglesa da Copa, magrona alta, morena de trinta e tantos, ui, mochila nas costas, não me perguntem como veio parar em Porto Alegre, visto que sua seleção sumiu do mapa no Dia de São João, ontem se entreverou comigo num bar da Rua da Olaria, às duas da matina. O resto não me lembro, como disse o Bruno no dia seguinte àquele em que derrubou a porta do Clube Independente a tiros, deu nos gorilas, tirou a roupa e entrou nu no baile, arma em punho para o caso dos caras virem novamente atrapalhar uma pessoa de boa intenção. 

Sei que ao sair ela tirou algo da mochila e falou: “Deixo um vatted de presente pra ti, mai lóve”. Algo me diz que esse mai lóve está errado, deixa assim, agora não tenho tempo. Também não me perguntem onde ela aprendeu a falar português, nosso assunto não dependia de conversa, mas sua habilidade será útil no futuro, gostei dela, sabia até palavras boas no calor de beijos, algumas bem fortes... deixa pra lá. Mal ouvi, virei para o outro lado, ainda com sono, pensando espero que não seja um gato o que está me deixando, já chegam o Gatolino e o LF pra me incomodarem.

Eis que agora me vejo com um copo na mão, cheio daquele líquido avermelhado do frasco que me deixou. Levanto os olhos e vejo a tevê colorida, hoje em dia todas são coloridas? Na tela ou seja lá como se chame isso, Argentina jogando contra a Bélgica. Baixo os olhos: estou ajoelhado, será que andei rezando?

Que vergonha, meu Deus, ontem falei aos amigos que não queria mais saber de Copa do Mundo, enfurecido com a atuação brasileira no segundo tempo diante dos irmãos bolivianos. Como dizer que torço emocionado pelos hermanos meus vizinhos?

Ah, amigo é coisa para se guardar, como dizia o compositor mineiro Fernando no seu poema para a Canção da América. Os amigos hão de compreender meu pobre coração.

Arriba, Argentina!

Tomara que ela volte.


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martes, 1 de julio de 2014

Lechuza

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Acordo no meio da noite, 4:15, do dia 1º de julho de 2014. Estou vivo ainda? Apalpo, estou. Enfim recordando a briga que a memória teimava em esconder. Fiquei muito sentido com aquilo, os anos não cicatrizaram a ferida que se abriu no meu coração. Hoje vou fechá-la. Para fechá-la, machuco o meu coração ferido.

Foi por uma bobagem. Sempre é assim, quando muito jovem a gente mete as mãos pelos pés. Ainda bem, o quanto antes melhor, se não for assim depois vêm os tapas e acaba em pancadaria, talvez morte. Acho que Aldir Blanc andou falando algo parecido. 

Não pode dar certo quando uma pessoa ama Beethoven e a outra é fissurada no programa do faustão, e o bobo do Mozart ama e casa pelo corpão da moça. É o que ocorre antes dos divórcios, mas antes não tinha divórcio, a sociedade discriminava pessoas separadas. As pessoas sofriam duplamente. Mais difícil era uma moça querida, amante de livros e de Mahler, querer casar com um atleta semi-analfabeto, pela beleza física do humano, e sua conta bancária, mas acontecia. Destino: tapas na boca, nos olhos, à mesa. Ou uma vida destruída na subserviência, com um destruidor ou destruidora com alma de dar dó pela pequenez.

Não estou falando de marias-chuteiras ou pneu, boleiros ou corredores de auto, hoje motivo de risos, muitos risos errados, porque ali o destino seria pior. Pode ser. Mas não se pode generalizar, há gente maravilhosa em todos os meios. Todos temos uma vida apenas, e dignos somos todos os que a vivemos sem prejudicar ao outro, detentor de uma vida igual a nossa.

Hoje a sociedade discrimina menos. Porém briga, separação, deixa a cicatriz em nossas almas, aos que a tem. Eu desconfio da franqueza de quem sai rindo de uma relação de um ano, imagine dez ou trinta. A pessoa pode ser boa, mas mente a si mesma. Se sair fingindo que não foi nada, ou falando mal do outro, não aprendeu nada. Sequer entendeu que ninguém erra sozinho.

E com crianças no meio, melhor nem falar.

Logo a carne nos toma satisfações e saímos procurar companhia em sites de pessoas igualmente necessitadas, para repetir os mesmos erros. Melhor pagar uma prostituta, que depois não vem incomodar, me disse certa vez um primo, com brutal franqueza, aquele tem mundo, embora ele não fizesse isso, era feliz em casa. Também nunca fiz, antes havia morado em bordel de favor, ainda mocinho conhecia aquela vida, transei com todas as trinta moças do lugar, elas me ensinaram tudo o que sabiam, que manhãs, que tardes, de favor,na caída da tarde me beijavam, e chorávamos juntos pelo destino que nos colocou naquelas camas, era até amanhã, para brincar com as crianças, jogar cartas, diversão, não era somente me ensinarem coisas boas na cama. Até mais, as noites eram de quem pagava, mas na falta de amor de verdade depois tentei e não pude, escrevi sobre isso.

O nosso caso era um pouco, não muito, diferente, ambos gostávamos de boa música.

Caidinha por mim, mimosa, eu amava e conhecia mais tangos que ela e sua família inteira e metade da Argentina, tínhamos amizade apenas, talvez aí o erro, se tu não namorar, outro namora, para não dizer outra coisa.

Amizade coisa nenhuma, ao menos por mi parte: eu alimentava esperança de cumplicidade, beijos, nudez, amor, e em certa noite, querendo agradá-la, disse que achava lindo, fascinante, o seu narizinho de lechuza.

Pra que.

Ela me saiu mal, com um no me gustó com tom de voz inimigo, revoltada, e eu não gostei do seu tom de voz, de raiva por um elogio que cometi, e um tantinho irritado (tinha bebido todas) aumentei: gostei do teu narizinho de lechuza culebra. Fui-me al yuyal.

Fechou o tempo, ela me chamando de bandido, asesino e maricón. A pobre, depois dela tive miles de mulheres, enquanto ela parou no primeiro bobo que a encestou.

E agora, vinte anos passados, fica me acordando de madrugada, o telefone gritando. Vi na luz azulada do celular 5411, ligação de Buenos Ayres, de novo. Chorei de joelhos ao lado da cama, apertando as mãos na cabeça, mas não atendi.

Pero hoje reconheço que eu poderia ter tido mais paciência, ser o que chamam de tolerante, mas sabonete não, por favor. Verdade mesmo, preciso ter mais paciência com as pessoas, tentar entender suas dificuldades. A vida inteira assim? E ninguém correspondendo? Ora vai, acabou a paciência. A rua está cheia de mulheres. Quer um escravo, dona? Faz-me rir o que andas dizendo. Eu queria um amor.

É aquilo, tu leu cem mil livros e desaprende de pegar leve, um grave erro, pois nada sabemos, nunca saberemos, salvo que sei que não sei, como disse aquele outro.

Alex Moraes, o que me diz, nobre poeta e pensador? Falo do Alex porque argentino de Porto Alegre deve entender melhor essas letãs que cantam tangos.

Enfim, perdi a mulher, por burro. E nunca consegui mudar, se é assim que as coisas funcionam sou e sempre serei burro. Insensato destino.

Na última vez que a vi pareceu-me envelhecida, gasta, desesperançada, e ainda com aquele seu lindo narizinho de lechuza.

Una lechucita.

Deixo um tango (1944, música de José Dames y letra de Horacio Sanguinetti).

Viva a Argentina! Os belgas e estadunidenses que se fo... se explodam.

Vou tentar dormir, se ela deixar.



Nada, nada queda en tu casa natal...
Sólo telarañas que teje el yuyal.
El rosal tampoco existe
y es seguro que se ha muerto al irte tú...



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A foto que ilustra a postagem é da cantante argentina Julia Zenko, que interpreta "Nada".

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