viernes, 3 de abril de 2015

Elevado a menos

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Bem, eu que virei abstêmio e que hoje a pedido dos amigos que me viram aqui trancado num apê, sozinho nesta madrugada de três de abril, muito chateado com a Klara (mulher é foda, meu, de escorpião ainda por cima, como a outra), tomei uma cervejinha, agora abri outra, me ocorre de soltar o verbo, abrir meu coração:

"Gremista é bom frito! Viva o Peñarol e o Inter!".

Pronto, aliviei a alma.

Tirando a brincadeira com os amigos tricolores (Nacional de Montevideo, por via de consequência), que tomara que se fodam futebolisticamente, conto uma. Estou aqui em Santa Maria, RS, com a mãe, que fará 92 anos em agosto. Pelo avançado da idade ela virou menininha quanto às lembranças. Por vezes não lembra o que fez há pouco (raríssimas vezes, felizmente), mas da meninice vem tudo com uma claridade, riqueza de detalhes, impressionante.

E lembrando do colégio, lá pela década de 30, me saiu com esta:

- Lá na escola tinha um professor, já velhusco, que falava muito pausado, eu tinha uns 8 anos, e ele lia um livro lá na frente: "... esse é o fundamento...".

Um coleguinha perguntou: o que é fundamento, professor?

Ele respondeu naquela vagareza que o caracterizava:

- É poço..., é buraco..., meu fio.

De outra vez falava de mares e rios por este mundão afora, e outro coleguinha perguntou:

- Qual é o maior rio do mundo, fessor?

- É o Uruguai, meu fio, o Uruguai...

Que família bem boba, A mãe, como quem pressente o fim, deu de escrever memórias, descobri que tenho parentes que nem sonhava, por parte da minha avó, muitos em Palmeira das Missões. Seu pai era professor de cidadezinha do interior. Um irmão mais velho, Ulisses Bindé Salazar, é nome de colégio na cidade de Catuipe, que pertencia a Santo Ângelo. Soube quando me disse que continuava escrevendo seu Diário (as memórias estão à parte), meninas tinham Diário. Pode ler, se quiser, meu filho.

Li passagens recentes, último dos muitos cadernos, tímido pela invasão de privacidade.

"25/03/2015 - Levantei bem, tomei meio Diovan 160. O dia está nublado. Às 10h fomos caminhar, eu e o Antônio, Às 12:20h tomei cápsulas de alho, Marília veio aqui com a Lourdes. Antônio enviou a declaração de imposto de renda pela internet. À noite tomei Glipage e um Diovan 160. Lourdes continua dormindo na Marília. Fiz inalação às 22;20h. Dormi bem."

"26/3/2015 - Levantei bem..."

Na passagem que fala de imposto de renda de uma aposentada, que ganha merreca e paga na fonte uma vida inteira de contribuição, ri com amargor ao lembrar dos gerdaus e paloccis da vida, um dia ainda darei um tiro nesses filhos da puta.

Por estas e outras, quando Natividad estava em creche perguntei um dia:

- Quanto é um mais um, pequena?

- Dois, pai.

- E dois elevado a menos um, quanto dá?

Fácil demais, depois que deduzi num quadro improvisado o porquê do resultado. Nada de decorar fórmulas, precisamos saber o porquê das coisas. Um ano depois, quando ela entrou no ensino formal, comprei um quadro verde de verdade para prosseguir, ela já sabendo mais do que um sobre dois. Matemática e filosofia dá na mesma, pois não?

Tanto que um dia, ao sair daquela vida, não precisei falar de motivos, apenas disse a ela: Gorda (era magra), quanto é um trilhão elevado a menos 2.610?

O método era o mesmo, a dedução igual, ela apenas silenciou e foi chorar no quarto, de dor, aos gritos chorando pelo anúncio da minha ausência física, não me perdoando pela fuga, mas no fundo sabendo que eu jamais a abandonaria.

Saí, mas desde então fui um caco. Poço, buraco, minha fia.
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