lunes, 30 de septiembre de 2013

Meganha e professor, n'A Charge do Dias

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No botequim as professoras Ain, Jussara, Silvana e Jezebel, na mesa do centro, descem a lenha no governador, aqui não declinamos as expressões, além de Russo Cego, com as quais se referem ao Sr. Tarso, posto que este blog é familiar.

Leilinha Ferro entra na conversa, lembrando o que ocorre no Rio de Janeiro:

- Lá mandaram a polícia agredir os professores...

Tigran Gdanski, ciente dos fatos, da mesa ao lado se manifesta:

- É inacreditável, aqueles moleques mandando os meganhas espancarem professores desarmados. Gente, professores, as pessoas que tentar tirar da escuridão os filhos dos pobres!

(Aqui na palafita ainda não acreditamos nisso, não pode ser verdade isso de espancar, deve ser invenção das redes de comunicação)

- Por isso mesmo, a única coisa que os políticos e os ladrões não querem é que o povo saia da escuridão - diz Marcos Açafrão -, porque vocês pensam que professor ganha tão mal?

Bruno Contralouco intervém, como sempre em alto nível:

- Eu gostaria de pegar esses filhos da puta e quebrar a pau.

- Pegar quem?, pergunta Clóvis Baixo.

- Ora, primeiro os caras que mandaram bater. E quebrar a  pau também os meganhas covardes, pés-de-chinelo que chupam o pau dos ricos por um salário de merda. Esses caras tem mais que morrer, há ordens que não se cumpre, se o cara tiver vergonha na cara. Daqui a pouco o Cabral Guardanapo manda matar, e aí, vão matar?

- Uma mortezinha até que cairia bem, aí o povo invade e os lincha lá dentro dos seus palácios, diz Freddy Garcia Lorpa.

- Será?, duvida Jussara.

- Mas quem foi que elegeu os políticos?, pergunta o realista Wilson Schu.

- Eta povinho bem desgraçado, diz Bruno Contralouco. - Político, banqueiro e meganha tem mais que se fuder, se eu pego um cara desses...

E assim rolava o papo quando Carlinhos Adeva entrou no bar, cara de poucos amigos, interrompendo a agradável conversação. Cumprimentos e tal, e logo Carlinhos explica porque está puto da cara.

- Tinha consulta às quatro e quinze da tarde, não me perguntem por que horário quebrado assim, não sei, mas suspeito que o viado quer aparecer. Cheguei às quatro e me tomaram adiantado quatrocentos contos. Na sala de espera tinha dez pessoas. Quatro e vinte e nada. Aí levantei e perguntei à secretária que havia me achacado os quatrocentos: "Dona, passou do horário, o médico vai demorar a me atender?". Ela respondeu que tinha algumas pessoas na minha frente. As dez. Pedi meu dinheiro de volta. Ela enrubesceu e eu insisti: já. Ela me devolveu. Com o perdão do amigo Freddy, mas é por essas e outras que dá vontade de matar um médico, o patifezinho cobra uma fortuna por ser consulta particular, faz onda com o horário, e ainda acha que pode dar chá de banco.

- Pior é que tem uns babacas que agem assim, diz Frederico Garcia, o "Freddy Garcia Lorpa", que também é médico, mas muito diferente da maioria desses tais.

Bruno Contralouco aumenta o rol: 

- Político, banqueiro, médico e meganha tem mais que se fuder.

Leila pede que tratem de escolher as charges do dia. Após longos debates, ficaram com as seguintes obras:

Nani.



Duke.



Zé Dassilva.




Amarildo.




Miss Leilinha Ferro sabe a quem convém a falta de instrução do povinho. Ficou com o Benett.




A coluna A Charge do Dias leva esse título pelo seu idealizador, o mestre Adolfo Dias Savchenko, que um belo dia se mandou para a Argentina, onde vive muito bem. Sucedeu-o na coordenação a jovem Leila Ferro, filha do Terguino, quando os boêmios amarelaram na hora de assumir o encargo. Antes eram dois butecos, o Beco do Oitavo e o Botequim do Terguino, que.., bem..., se fundiram  no ano passado (veja AQUI), face a dívidas com o sistema agiotário. O novo bar manteve o nome de um dos butecos: por sorteio ficou Botequim do Terguino, agora propriedade dos ex-endividados António Portuga e Terguino Ferro.

Marina e as regras do jogo

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“Coloque o dedo na ferida: sem as assinaturas é uma esperança vã, impossível de frutificar”. A frase, do ministro Marco Aurélio Mello, do Tribunal Superior Eleitoral, equivale a uma potencial sentença de morte para a Rede, a “vã” esperança partidária de Marina Silva. Marco Aurélio tem razão quando põe o dedo na “ferida” jurídico-administrativa, mas a “ferida” política está em outro lugar: na democracia brasileira não existe liberdade partidária. Por que eu, meu vizinho e um grupo de amigos não podemos decidir, hoje, fundar um partido e vê-lo, amanhã, reconhecido mediante a simples apresentação de um estatuto? Isso é liberdade partidária — algo que não temos pois a elite política decidiu, em seu proveito, estatizar os partidos políticos.

A Constituição de 1988 consagrou a estatização dos partidos, refletindo um consenso de nossa elite política. Os partidos oficiais adquiriram o curioso direito de avançar sobre o bolso de todos os cidadãos, extraindo-lhes compulsoriamente os recursos que financiam o Fundo Partidário e as propagandas partidária e eleitoral nos meios eletrônicos de comunicação. Em 2012, as dotações do orçamento federal para o Fundo Partidário somaram R$ 286,2 milhões. Nós todos pagamos R$ 850 milhões, em 2010, sob a forma de compensações fiscais às emissoras de tevê e rádio, pela transmissão dos horários cinicamente rotulados como “gratuitos” e utilizados pelos partidos. O projeto do PT de reforma política, que almeja introduzir o financiamento público de campanha, tem a finalidade de expandir ainda mais a transferência de recursos da sociedade para os políticos profissionais.

A Justiça Eleitoral é, ao lado da Justiça do Trabalho, uma das desastrosas invenções do varguismo. Nenhuma democracia precisa de tribunais para organizar eleições, missão que pode ser cumprida por meros órgãos administrativos. A razão de ser de nossos tribunais eleitorais encontra-se no princípio anti-democrático da subordinação dos partidos ao Estado. O aparato judicial especializado desempenha a função de identificar os partidos que cumpriram os requisitos legais para tomar dinheiro dos cidadãos — e, eventualmente, disputar eleições. “Não cabe estabelecer critério de plantão para esse ou aquele partido”, explicou Marco Aurélio referindo-se à Rede, antes de concluir com a inflexão típica do juiz que zela pela igualdade de direitos: “Abre-se um precedente muito perigoso”. De fato: os princípios da liberdade partidária e da estatização dos partidos são inconciliáveis — e, para preservar o segundo, nosso ordenamento político sacrifica o primeiro, sem jamais abrir perigosos precedentes.

Os partidos estatais formam um dos pés do tripé que sustenta um sistema político avesso ao interesse público e orientado para a corrupção sistemática. O segundo pé são as coalizões em eleições proporcionais, um expediente de falsificação da vontade do eleitor destinado a conferir viabilidade a partidos que não representam ninguém mas acomodam frações periféricas da elite política. O terceiro pé é a prática de loteamento político da máquina estatal, propiciada pela escandalosa existência, apenas na esfera federal, de quase 50 mil cargos de livre nomeação. A privatização do Estado é o outro lado da moeda da estatização dos partidos políticos. “Não tem conversa, a lei é peremptória”, enfatizou Eugênio Aragão, vice-procurador-geral Eleitoral, alertando para os limites legais ao direito de candidatura. Hoje, diante do pedido de registro da Rede de Marina, a Justiça Eleitoral emerge como fiadora burocrática dos interesses gerais da elite política, que não pode abrir mão da coerência do conjunto do sistema.

No balcão cartorial do Estado brasileiro, registrar partidos é um negócio tão lucrativo quanto fundar sindicatos ou igrejas. PTC, PSC, PMN, PTdoB, PRTB, PHS, PSDC, PTN, PSL, PRB, PPL, PEN — a sopa de letrinhas das legendas oficiais vazias produz a falsa impressão da vigência de ampla liberdade partidária. Aplicando sua inteligência à produção de sofismas, Marco Aurélio argumentou que a ausência da Rede não prejudicaria as eleições de 2014 pois, afinal, o país não carece de partidos. Na esfera exclusiva da lógica burocrática, o ministro tem razão: todos poderão votar em partidos que não representam ninguém, mas cerca de um quarto do eleitorado experimentará a impossibilidade de sufragar a candidata de sua preferência. De certo modo, o Irã é aqui.

Marina e os seus não aprenderam direito as regras do jogo, explicam nos jornais os ínclitos políticos fundadores de legendas de aluguel e seus advogados especializados nos “negócios do Brasil”. Mas, como atestado de uma devastadora crise política e moral, ninguém pergunta aos representantes de nossa elite política sobre a natureza das regras desse jogo. Três meses atrás, centenas de milhares de manifestantes tomaram as ruas para expressar sua frustração e sua ira com um Estado hostil à sociedade. Depois disso, o Supremo Tribunal Federal decretou que os políticos de sangue azul se distinguem dos cidadãos comuns pelo privilégio da impunibilidade. Agora, o Tribunal Superior Eleitoral prepara-se para, aplicando as leis vigentes, cassar o direito de voto de um quarto dos brasileiros. Entre o Brasil oficial e o Brasil real, abre-se um fosso ameaçador, quase intransponível.

Nos círculos próximos a Marina, comenta-se que ela não aceitará a alternativa de concorrer às eleições por uma legenda de negócios. Numa hipótese viciosa, o gesto de desistência configuraria uma rendição disfarçada por discursos de indignação — e Marina contrataria um despachante astuto para viabilizar a Rede no horizonte de 2018. Por outro lado, na hipótese virtuosa, seria um ato de bravura e resistência: o ponto de partida para uma “anticandidatura” de mobilização da sociedade contra a estatização dos partidos e a privatização do Estado. Estou sonhando?
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(A ilustração não consta no original)

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No tempo dos embargos infringentes

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Por Luiz Werneck Vianna, no Estadão


"Era no tempo do rei" - com essa frase mágica Manuel Antônio de Almeida inicia seu romance Memórias de um Sargento de Milícias, cativando prontamente o leitor para conhecer as desventuras do seu herói, Leonardo Pataca, e outros personagens típicos da vida popular das primeiras décadas do século 19, como milicianos, meirinhos, barbeiros, ciganos, mulheres de má vida. Toda uma galeria de homens comuns treinados nas artes de uma difícil sobrevivência sem perder o gosto pelas festas e pela convivência bem-humorada entre eles.

O motivo dessa alusão à obra tão celebrada não se prende, contudo, ao protagonista da narrativa, mas a uma simples coadjuvante, dona Maria, mulher de meia-idade, gorda, mas bem afeiçoada, compadecida dos pobres, a quem atendia com os recursos que lhe sobravam naquele meio de escassez, e que nutria uma paixão sem remédio pelas demandas judiciais. Movida por esse sentimento que dominava a sua vida, saía de uma demanda para entrar em outra, conhecedora de leis e de regulamentos, provavelmente dominando a dialética incerta dos esotéricos embargos infringentes, embora fosse certo ser versada nas Ordenações Manuelinas. Os processos e as demandas judiciais intermináveis animavam a sua vida, como hoje parecem dominar a nossa.

Com efeito, somente por peripécias do nosso código genético cultural pode ter aflorado, assim, de repente, a informação desse gosto pelas manhas e pelos jargões dos leguleios, típicos do decadentismo ibérico, que nos manteve, numa tarde de quarta-feira, aferrados à TV durante duas horas e meia - tempo bem mais longo que o de uma partida de futebol, com o qual folgamos - para ouvirmos as razões do decano do Supremo Tribunal Federal (STF) a fim de admitir os embargos infringentes reclamados pelos réus (da Ação Penal 470, conhecida como mensalão). A hermenêutica do decano cobriu leis atuais e de antanho, jurisprudências, regimentos, não lhe faltando revelar as motivações implícitas do que jazia oculto nas lacunas da manifestação da vontade do legislador, vazios desejados por ele ou meramente fortuitos - quem há de saber?

Dona Maria perdeu essa sessão do Desembargo do Paço, que lhe faria delícia, pois ali se reverenciava o objeto do seu culto, um processo interminável com vãos e desvãos, hirto em sua integridade de coisa em si, apartado do mundo, cerrado na sua lógica interna alheia aos profanos e manipulado por sacerdotes convictos dos seus atos litúrgicos. Deveras, dignos de admiração nossos vínculos com a Ibéria profunda, ainda presente nas nossas instituições e nas narrativas que nos chegam delas, tais como os que foram expostos pela TV diante de grande audiência, que não arredou pé e a tudo assistiu bestificada, no julgamento da admissibilidade dos embargos infringentes.
O público era o mesmo que há poucos meses, nas jornadas de junho, aderiu com entusiasmo, nas ruas, aos protestos da juventude em favor de direitos, de maior participação na vida pública e por transparência nas ações do Estado. Mas entre os dois episódios há um mundo a separá-los, quando de um dos lados das margens até se ouvem declarações, com dicção forte, de que não se devem considerar as vozes que ecoam do outro.

De fato, em matéria penal, o garantismo nos procedimentos judiciais, como se diz em jargão, protege a todos e se constitui num valor a ser defendido, com a óbvia ressalva de que ele não se pode prestar a formalismos e a chinesices que desservem à justiça e penalizam a sociedade. Sem ponderação razoável, esse meritório princípio pode tornar-se uma política de alto risco na administração da justiça.

Por outro lado, tenha-se presente que a Constituição que aí está, prestes a comemorar 25 anos de bons serviços ao País, foi concebida para ter uma natureza de obra aberta, admitindo sua filiação à corrente doutrinária do constitucionalismo democrático. Sob essa inspiração, recriou o nosso Direito e suas instituições no sentido de que fossem capazes de acolher a voz das ruas, quer no exercício do controle de constitucionalidade das leis, nas ações civis públicas, quer nos inúmeros conselhos que criou com o intuito de incorporar os cidadãos na gestão de matérias afetas ao interesse público.

Ao longo desse período de implementação, pela ação da jurisprudência e de doutrinadores, fomos deixando de lado práticas que nos vinham do cediço iberismo que forjou nosso Estado, em particular no Direito Administrativo, no qual dominava inconteste o princípio da discricionariedade do Poder Executivo. Sobretudo, afirmou-se nesses anos a primazia do paradigma do direito público, destronando antiga hegemonia do Código Civil. Na esteira desses novos processos, passamos a conhecer uma nítida convergência do nosso sistema de civil law com o de common law, que, aliás, transcorre em escala universal.

Doutrinadores influentes, como Luís Roberto Barroso, dedicam páginas simpáticas a políticas judiciais consequencialistas e à obra do notável filósofo do Direito Ronald Dworkin, que nos deixou recentemente e concebeu o Direito sob o modelo de integridade. Muito além de ouvir as ruas, às quais o hoje ministro Barroso é refratário, Dworkin recomendava, a fim de assegurar uma narrativa coerente e progressiva do Direito, que se ouvissem as vozes da história da sua comunidade, às quais o ministro também foi surdo, para que elas se fizessem presentes nas decisões judiciais, em particular nos casos difíceis - a Ação Penal 470 é um caso difícil.

O pleno do STF em sua composição original, ao julgar a Ação Penal 470, abriu com coragem o baú dos ossos da nossa História, remota e presente; a dos embargos infringentes nos devolve aos alfarrábios da dona Maria das páginas de Manuel Antônio de Almeida. Resta ver os próximos capítulos e como se comportam as ruas buliçosas do Leonardo Pataca.
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sábado, 28 de septiembre de 2013

Camila Costa - Valsa rosa

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Hoje voltamos com a cantora, compositora e violonista carioca Camila Costa, com Valsa rosa (Camila Costa e Ruy Quaresma), do seu antológico CD de 2005.

Uma valsa, um poema, um universo de sensibilidade. Como definir setembro na imaginação? Em A poesia, outra de suas composições, Camila diz que a poesia é um barco, solto em alto mar, talvez então o prenúncio de muito sol, as rosas precisam.




Estava ali, no roseiral
Toda gente olha e vê
E ela faz que não dá conta
E nem se apronta em temporal

Chorando o céu pra rir o mar
Amarelo ela não quis
Pensar que era breve
A vida alegre do colibri 

Quando vem o jardineiro 
Despontando como o sol
Fala às rosas plenamente
Como a lua para o mar 

E ela espera sempre o jardineiro 
Como as mulheres de um marinheiro
Dança a valsa rosa
À toa a rodopiar 

Se perfumou 
Ele não viu
Tinha pressa no olhar
Bombom nas terras tão paralelas
Como a visita de um sazonal
Quem dera as asas fossem dela
E voando sem janelas
Sem raízes, sem limite
Como a vida do colibri 

Quando entra fevereiro 
Ela arde de verão
Pelas mãos do jardineiro
Que faz brotar seu coração
E ela nua inflama de desejo
Pois é setembro na imaginação
Dança a valsa rosa
À toa a rodopiar 

Num dia firme, como num filme 
De Fellini ou Stephen King
Joana D'Arc, Frida Khalo
A inspiraram para lutar 

Pediu ao vento, que violento 
Arrancou-a do jardim
E então o colibri
Pegou a rosa enfim valsando pelo ar
Deixou-a sobre a cama dele e
Nunca mais foi lá 

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viernes, 27 de septiembre de 2013

A Vivo, a Dilma e a TIM

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Por Mauro Santayana, hoje no JB.


Tivesse um senso melhor de oportunidade, a presidente Dilma, no dia seguinte ao seu discurso da ONU - no qual defendeu a soberania e a autonomia das nações na comunicação eletrônica e cibernética - jamais teria aceitado reunir-se, em Nova York, com o mais alto executivo de um grupo estrangeiro de telecomunicações. E menos ainda, teria tomado a infeliz decisão de fazer, um dia depois, a defesa indireta da possibilidade de esse grupo espanhol passar por cima da lei e tomar de assalto o controle do mercado brasileiro nessa área.

Qual é a razão da especial deferência da presidente Dilma com a Espanha do governo corrupto e conservador de Mariano Rajoy e seus sorridentes executivos, como Emiliano Botin, do Santander, e Cesar Alierta, presidente da Telefónica? Um grupo que se equilibra, perigosamente, sobre uma dívida de 50 bilhões de euros — ou mais de 150 bilhões de reais — não pode ser considerado sólido.

Do ponto de vista moral, a reputação da Telefónica também não recomendaria o encontro. Basta dizer que, com o dinheiro de vários empréstimos de bilhões de reais do BNDES, a empresa teve e continua tendo em seu conselho e com salários de milhares de euros —  figuras da estatura de um Iñaki Undangarin, — ex- jogador de handebol ali alçado por ser genro do  rei da Espanha. Ele está envolvido com uma série de escândalos de corrupção em seu país. Como “consultor” para seus negócios da América Latina, há ainda  Rodrigo Rato, ex-presidente do FMI, acusado de envolvimento na quebra fraudulenta — com prejuízo para milhares de pequenos poupadores — do banco estatal Bankia.        

Para ter acesso a essas informações, a presidente da República — que tem se encontrado também com Emilio Botin, do Santander — e sua assessoria não dependeriam de sofisticados instrumentos de espionagem do tipo dos usados pela NSA. Basta entrar por 10 minutos na internet, em inglês ou na língua de Cervantes,  para saber a opinião média dos próprios espanhóis sobre a Telefónica  e sua situação financeira, e a baixíssima credibilidade de seus serviços em seu próprio país de origem.

O mais grave, no entanto, não foi apenas o fato de a presidente Dilma dar sinais de que  estrangeiros vão continuar mandando, e cada vez mais, nas telecomunicações brasileiras, contradizendo, assim, o teor do  discurso que havia feito na ONU.

No dia seguinte ela ainda reforçou essa situação ao desautorizar, publicamente, o ministro do Planejamento, Paulo Bernardo, ao parecer defender, indiretamente, a possibilidade de o Grupo Telefónica, de Cesar Alierta — com quem havia se reunido no dia anterior — tomar, com um virtual monopólio, o controle do mercado brasileiro de telecomunicações.

O que está ocorrendo? Por que o senhor César Alierta procurou, em Nova York, a presidente da República?

A Telefónica, dona da Vivo no Brasil, está assumindo o controle da Telecom Itália, dona da TIM em nosso país, e quer unir as duas empresas no Brasil, o que lhe daria 55% do mercado brasileiro de telefonia celular, ou 150 milhões de usuários.

Mas o problema não é a telefonia celular. Hoje, todo mundo sabe que quem vende telefone também vende TV a cabo e internet — e quem controla a internet controla as informações que por ela circulam. Tanto isso é verdade que, quando a Justiça precisa de quebrar o sigilo telefônico ou de e-mail ou computador de alguém, recorre à operadora.

Relembrando, a presidente da República chega a Nova York e ataca os norte-americanos na ONU, porque estão lendo o seu e-mail e grampeando o seu telefone e, dois dias depois, após se reunir com um executivo espanhol de uma empresa cheia de problemas, aceita a possibilidade de que, se eventualmente quisesse, essa empresa venha a  espionar — se eventualmente quisesse — não apenas o seu e-mail e o seu telefone mas o e-mail e o telefone de 150 milhões de brasileiros, a serviço dos norte-americanos.

Afinal, o governo espanhol e as empresas se  misturam, e poucos países há, hoje, no mundo, mais fiéis do que a Espanha, e o seu governo, aos interesses norte-americanos, a ponto de enviar soldados a lugares em que não deveria meter o bedelho, como o Afeganistão, por exemplo.    

Nos últimos anos, executivos da turma da castanhola, incluindo os do Santander e da Telefónica, tentam engambelar, tranquilamente,  o governo, com o conto da carochinha de que, por estarem faturando mais no Brasil do que na Espanha, seu compromisso com o nosso país seria maior do que com o seu país de origem.

Em vez de ficarem embasbacados com a transferência da sede da Telefónica América Latina de Madri para São Paulo — o que nos obrigou a aceitar mais algumas dezenas de “executivos” espanhóis em nosso país, além das centenas que já tinham vindo antes com a empresa — muitos brasileiros, do setor público e fora dele, deveriam se perguntar para onde vão as dezenas de bilhões de reais que pagamos todos os anos pelos péssimos serviços de telefonia celular, banda larga e TV a cabo, com algumas das mais altas tarifas do mundo.

As telecomunicações — e aí está o escândalo da espionagem da NSA para não nos deixar esquecer — são tão importantes para a soberania e a segurança de uma nação que a Itália, apanhada de surpresa pela compra da TIM pela Telefónica, está aprovando às pressas a regulamentação de uma “golden share” pelo governo italiano para impedir o negócio.

A justificativa? O país não pode ficar sem uma empresa própria nesse setor estratégico, principalmente agora, sublinhamos, com “a descoberta das atividades de espionagem norte-americanas”.

Pobre ministro Paulo Bernardo — levado a se manifestar contra a fusão da Vivo e da TIM — na única vez em que se colocou ao lado do consumidor e do país, em uma disputa com uma das empresas que costuma defender — foi repreendido pela presidente Dilma.

O que a nação reclama — e achávamos que a própria presidente já o houvesse percebido — não é de uma megaempresa privada e multinacional, controlada pela Espanha, um país subalternamente alinhado aos Estados Unidos, para controlar, com um virtual monopólio, o mercado brasileiro de telecomunicações.

O que o Brasil exige — e a isso deve se dedicar com urgência — é uma grande empresa brasileira que possa contar com recursos do BNDES para operar o e-mail que está sendo desenvolvido pelos Correios, os softwares livres do Serpro, as redes  de fibra ótica que estamos instalando com a Unasur e os Brics,  os centros de computação em nuvem e os satélites de comunicação que estaremos colocando em funcionamento nos próximos anos. 

Essa empresa tem nome e sobrenome. Ela já existe e pertence ao povo brasileiro. Sua razão social é Telecomunicações Brasileiras Sociedade Anônima. A sua marca é Telebrás. E o seu presidente não é o senhor Cesar Alierta.

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(A ilustração - charge do Lute - não consta no original)
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jueves, 26 de septiembre de 2013

Lágrima Ríos - El abrojito

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Lida Melba Benavídez Tabárez (Durazno, 26/set/1924 - Montevideo, 25/dez/2006), conhecida como Lágrima Ríos, foi uma cantante de candombe e de tangos, no Uruguai a "dama del candombe" e "la perla negra del tango". Ao escolher o nome artístico de Lágrima, disse que as lágrimas nem sempre são de tristeza, as nossas maiores alegrias também nos fazem chorar.

Aqui com o tango "El abrojito" (Luiz Bernstein - Jesús Fernández Blanco), de 1926.




Llevo, como abrojito, prendido
dentro del corazón una pena
porque te fuiste, ingrata, del nido
y mi vida tan serena
condenaste así al dolor.
Nunca podré arrancar de mi pecho,
¡nunca! el abrojito punzante.
Y ando, por todo el mal que me has hecho
con el alma agonizante,
sin fe, sin nido, ni amor...

No sé por qué te alejaste de mí
si yo te adoré con creciente fervor.
No sé por qué me engañabas así,
sin demostrar tu desamor...
Con tu querer, yo era un hombre feliz
y nunca pensé que tu ardiente pasión
era el puñal que me habría de abrir
esta herida de mi corazón.

Quiero que en tu vivir errabundo,
sepas que solo y entristecido
marcho por los senderos del mundo,
con recuerdos que han prendido
como abrojos de cardal...
Pido que alguna vez tropecemos
para saber si al fin has hallado
todo lo que inconsciente has soñado.
¡Y quizá después podamos
volver los dos a empezar!


Ele que bebe e eu que levo a culpa, n'A Charge do Dias

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Bem, o titular deste espaço andou atarefado lá pelos lados do Burundi, e a senhorita Leila Ferro, a substituta imediata, esteve envolvida com provas na faculdade, de modo que a coluna A Charge do Dias ficou sob a responsabilidade do Sr. João da Noite. Enfurnado no bunker, no subsolo aqui da palafita, o boêmio começou o estrago no domingo à noite. Afora uma visita que outra ao botequim, o indivíduo nada fez a não ser enxugar as nossas bebidas de estimação. Os colaboradores da casa juntaram num saco o resultado da festança: quinze litros de bebidas quentes vazios, mais oitenta cascos de cervejas. A turma precisou examinar todos os dois mil discos (discos mesmo, vinil), arrumando as capas trocadas.

Certo, sabemos que a oposição, a começar pelo Sr. Hans Hoff da Silva, que lê diariamente esta etílica publicação, anda espalhando que é o próprio titular que vez em quando toma uns fogos homéricos, agora deu de espalhar que para cada conto que escreve, com vistas ao livro anunciado para breve, lá se vão dois litros e uma caixa de loiras. Como sabemos, contra línguas perversas não há defesa, então deixemos que falem. Só que achei dois litros muito pouco, seu Hans, mormente se o texto contiver tristezas e recuerdos.

Considerando o consumo das minhas bebidas pelo elemento (a chateação está aumentando, comecei chamando-o de Sr., depois parti para indivíduo, agora já está em elemento) deu-se que o beberrão simplesmente esqueceu de postar as colunas de segunda, terça e quarta. Somente hoje Leilinha conseguiu tempo para verificar e me advertiu. Certo, ontem publicou matéria de autoria do antropológico doutorando Alex Moraes, mas assim é fácil, era só copiar e colar.

Enfim, reassumo.

O Botequim hoje está em festa desde cedo. O motivo é  o aniversário do próprio Sr. João da Noite, e agora entendo o que se passou nos dias anteriores: estava preparando o corpo. Obviamente que o ápice da festa será à noite, com jantar, beberagem, discursos e cantoria, por enquanto somente o Sr. João e mais meia-dúzia de desocupados bebem, os demais estão no pingadinho. 

Carlinhos Adeva, o Diretor Jurídico do Partido dos Boêmios (em constituição) deu uma passada somente para abraçar o companheiro, aproveitou para participar da escolha das obras do dia e se mandou de volta para o escritório, precisa dar entrada em uma ação ainda hoje.

Ele saiu e Bruno Contralouco falou:

- É contra os juros extorsivos de um banco, ele adora fuder com banco, eu preferiria atirar um míssil.

Nicolau Gaiola, ao ver que Luciano Peregrino furunga nas notícias do notibuc, pede encarecidamente que hoje o poupe, nada de notícia ruim, e conclui:

- Como notícia boa os jornais nunca trazem, desliga essa bosta.

O Contralouco diz que pontualmente às 18h o caminhão de entregas trará ao bar o presente que comprou para o João. Homens e mulheres entreolham-se, sem uma palavra pensam a mesma coisa: o que será que ele aprontou desta vez, lá vem bomba.

Bem, Leilinha recuperou as obras dos dias anteriores, que somaram-se às do dia, participando novamente. Irão em dobro, para compensar a incúria do aniversariante. Escolheram as seguintes.

Morettini. Os amigos teceram comentários interessantes, mas vão me desculpar, enchi desse sujeito. Digo apenas que Wilson Schu falou em deportá-lo para a ilha Zarzala Koh, no Mar das Arábias, essa que surgiu do terremoto.



   Aroeira.



Duke.



Nani. Aqui saiu uma boa, algo que Luciano tinha visto nas notícias. Ele disse: 

- Sabem da maior, quase caí de costas pela desfaçatez dos americanos. O terrorista Obama e sua delegação simplesmente não se fizeram presentes durante o discurso da Dilma, que abriu a Assembléia da ONU. Estavam no bar do prédio, tomando uísque e rindo da nossa cara. Logo depois dela o Obama iria falar, esperaram a Dilma terminar para caminhar até o salão nobre. Mas devem ter ficado sabendo depois da porrada que levaram, porrada que teve grande repercussão em todo o mundo, não houve uma voz que a criticasse.

Nicolau Gaiola não reclamou, ao contrário, disse:

- Uma vez na vida uma notícia boa...



Sponholz. Aqui a turma se soltou. Clóvis Baixo estranhou:

- Estranho isso, quanto às putas, deve ser só para olhar, pois os políticos são todos broxas, o Luciano aí que entende do assunto (aludindo à fama do Luciano, injusta, segundo ele, de ter comido as mulheres dos caras).



Newton Silva. - Bem, pelo que temos visto, isso seria o correto, teria observado Carlinhos Adeva.



Miss Leila Ferro ficou com apenas uma. Sinovaldo.



A coluna A Charge do Dias leva esse título pelo seu idealizador, o mestre Adolfo Dias Savchenko, que um belo dia se mandou para a Argentina, onde vive muito bem. Sucedeu-o na coordenação a jovem Leila Ferro, filha do Terguino, quando os boêmios amarelaram na hora de assumir o encargo. Antes eram dois butecos, o Beco do Oitavo e o Botequim do Terguino, que.., bem..., se fundiram no ano passado (veja AQUI), face a dívidas com o sistema agiotário. O novo bar manteve o nome de um dos butecos: por sorteio ficou Botequim do Terguino, agora propriedade dos ex-endividados António Portuga e Terguino Ferro.

miércoles, 25 de septiembre de 2013

Corpo e globalização. O lugar do biocapital.

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No texto abaixo, o Rei de Porto Alegre deixa clara a sua opção pela Antropologia. A poesia vai esperar...



Corpo e globalização. O lugar do biocapital.


Por Alex Martins Moraes (pescado do site Antropologia Crítica)



capital corpo



Na obra Espaços de Esperança, David Harvey evidencia como “a espaço-temporalidade definida em uma escala (a da “globalização” com seus significados associados) cruza-se com corpos que funcionam em uma escala muito mais localizada”. Sugiro que sua análise pode ser potencializada através de alguns elementos conceituais capazes de iluminar como as dinâmicas de reprodução do capital se fazem efetivamente corpo, convertendo-se em dispositivos concretos para o controle das populações.



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No livro intitulado Espaços de Esperança, David Harvey desenvolve um marco interpretativo cujo objetivo é sintonizar a recente ênfase teórica no “corpo como medida de todas as coisas” com a análise crítica do capitalismo em sua dimensão sistêmica.

Para o autor, a reflexão sobre a produção dos corpos no marco de um sistema mundial capitalista precisa indagar sobre a espacialização do capital, ou seja, sobre a forma como as dinâmicas do modo de produção reorganizam ou produzem os espaços onde se desenvolve a ação humana. A globalização das relações capitalistas de produção engendra processos de desenvolvimento geográfico desigual nos quais vastas extensões de território terminam interpeladas pelos imperativos da acumulação do capital, o que transforma as condições de existência social e política dos sujeitos que as habitam. Os processos de enclassamento, ou seja, de posicionamento das pessoas com relação à acumulação de capital, produzem efeitos corporais e subjetivos específicos; são, portanto, modos de objetivação e subjetivação cuja análise não pode ser dissociada da compreensão de como se instituem práticas localizadas de extração de valor num dado momento de desenvolvimento histórico-geográfico do capitalismo. Temos, assim, que a configuração espacial da extração do valor constitui-se como relação essencial para a apreensão dos nexos entre globalidade sistêmica e produção de corpos enclassados.

Harvey decompõe os efeitos da extração de força de trabalho e de mais valia sobre o corpo localizado dos trabalhadores em três momentos: 1) consumo produtivo, 2) intercâmbio e 3) consumo individual. O momento de consumo produtivo descreve a extração propriamente dita da força de trabalho, quando uma fração de capital é despendida no assalariamento da mão de obra. Neste momento o trabalhador é interpelado por um sistema restritivo de valoração social no qual o que conta é sua capacidade de produzir mais valia para o capital.

A negociação do valor da força de trabalho inscreve o trabalhador no campo de determinações produzido pelo intercâmbio global de mercadorias, dado que o regime de salários vigente em cada lugar repercute os arranjos globais da acumulação de capital. O valor do trabalho abstrato é medido, nas palavras de Harvey, “através do intercâmbio de mercadorias no espaço e no tempo e, em última instância, no mercado mundial”.

No terceiro momento do ciclo iniciado pela extração da força de trabalho– o de consumo de mercadorias –  o trabalhador possui autonomia para ingressar nas práticas de mercado, alocando seu salário  de acordo com critérios individuais de valoração da necessidade. No entanto, se observarmos essa prática do ponto de vista coletivo, avaliando a posicionalidade dos sujeitos com relação à acumulação do capital (ou seja, levando em conta sua posição de classe), poderemos constatar que a aquisição de mercadorias por parte da classe trabalhadora consiste na aquisição do seu próprio produto em mãos da classe capitalista. Sob este prisma os salários consistem numa forma de garantir a renda socialmente disponível para a compra dos produtos capitalistas. 

No momento de consumo das mercadorias, assim como no contexto das fábricas e das empresas, os corpos e as subjetividades também precisam ser investidos sistematicamente pela racionalidade/racionalização capitalista, de modo que se possa garantir, nas palavras de Harvey, “a organização, mobilização e canalização dos desejos humanos” através de uma “dedicação política ativa às táticas de persuasão, vigilância e coerção (…) produzindo (…) todo o tipo de pressões sobre o corpo como âmbito e agente performativo do consumo racional para uma maior acumulação”.

Se bem a apresentação de Harvey evidencia como “a espaço-temporalidade definida em uma escala (a da “globalização” com seus significados associados) cruza-se com corpos que funcionam em uma escala muito mais localizada”, quero sugerir aqui, que ela poderia ser potencializada através de alguns elementos conceituais capazes de iluminar como as dinâmicas de reprodução do capital se fazem efetivamente corpo, convertendo-se em tecnologias concretos para o controle das populações. Ao prescindir de categorias como “biocapital” (ver o trabalho de Jaime Osório a respeito), o esforço do autor de inserir a indagação teórica sobre a produção dos corpos no marco do estudo crítico da reprodução sistêmica perde algum fôlego. 

Se, por um lado, Espaços de Esperança demonstra, de forma convincente, como a redefinição do valor do trabalho abstrato decorre da produção de diferenças geográficas — que são, por sua vez, inerentes a produção de escalas espaciais no capitalismo –, por outro lado a obra não aprofunda na explicitação das condições que permitem e definem as consequências do investimento dos corpos pelo capital.

A análise de Harvey explora, essencialmente, o antagonismo complemento capital-trabalho, sinalizando que as “leis do valor” atualizadas na “longa geografia histórica da acumulação do capital” confrontam sujeitos localizados e dão forma aos dramas e tragédias concretos associados a espacialização do modo de produção. Falta-lhe, no entanto, enfatizar o antagonismo complemento “capital-vida”, inapreensível sem o estudo simultâneo das imbricações entre a territorialidade dos estados nacionais e a territorialidade dos meios de produção — entendidas, ambas, enquanto âmbitos de vigilância e controle cuja articulação multiforme condiciona as possibilidades e os impactos da extração de valor sobre os corpos e a subjetividade do sujeito trabalhador.

capital corpo 2


A noção de biocapital, conforme a desenvolve o sociólogo mexicano Jaime Osorio, procura dar conta do antagonismo complemento capital-vida (dissociável apenas para fins analíticos do antagonismo complemento capital-trabalho). A incidência do biocapital está afiançada/instaurada pelo contrato de compra/venda de força de trabalho e suas consequências se produzem, atualizam e negociam em meio aos regimes de disciplinamento e às hierarquias constituídas em cada espaço produtivo. Os resultados localizados e transitórios desses processos de assujeitamento definem as condições de existência do trabalhador e, mais do que isso, definem sob que condições ele irá viver todos os âmbitos da sua vida. 

Quando, na obra já mencionada, Harvey alerta que em Baltimore, um centro urbano estadunidense marcado pela desindustrialização e pelo inchaço do setor de serviços – com sua consequente precarização do trabalho – , “a esperança de vida está entre as mais baixas de todo o país e é comparável a de muitos dos países mais pobres do mundo (63 anos para os homens e 73,2 para as mulheres)”, ele está nos apresentando a cifra de uma batalha ocorrida sob a égide de biocapital, batalha cuja letalidade é determinada pela omissão insidiosa dos sistemas de saúde e de atenção social nos Estado Unidos. 

De forma similar, quando o autor sugere que no capitalismo a doença se define, largamente, pela incapacidade de trabalhar, ele novamente nos deixa antever que a integridade dos corpos no sistema produtivo é o parâmetro fundamental para avaliar a integridade das pessoas. Quando o valor de uso da força de trabalho de um sujeito é negado pela enfermidade, este abandona a esfera da economia política para negociar sua existência, com chances variáveis de êxito, na esfera da biopolítica. É neste ponto que se torna relevante indagar sobre a territorialidade do poder soberano dos Estados nacionais.

Vejamos por quê.

Quando o capital se desloca em busca de melhores condições para sua acumulação ou quando — o que dá no mesmo — trabalhadores migrantes e extra-regionais são recrutados para o desempenho de certas tarefas produtivas, configura-se uma instrumentalização pragmática das cartografias do poder soberano. Tal instrumentalização permite que a extração de valor se incremente em decorrência da modificação do estatuto jurídico-político dos trabalhadores mobilizados. Estes procedimentos explicam, em grande medida, a origem dos desenvolvimentos geográficos desiguais, ao mesmo tempo em que descrevem como enclassamento e geopolítica, ao entrelaçar-se, produzem corpos desiguais. De forma complementar, a redefinição dos dispositivos geopolíticos, biopolíticos e disciplinares manejados pelos Estados-nação também dinamizam a operatória do biocapital. 

A criação de novas fronteiras nacionais, ou a redefinição do estatuto de velhas fronteiras — sua abertura ou fechamento –, a intensificação sobre o controle da circulação internacional de pessoas mediante exigência de documentos, o grau de fiscalização sobre o trabalho irregular, a produção de novos sujeitos-de-direito, etc., impacta não apenas sobre o valor de uso da força de trabalho de populações inteiras, mas também sobre as garantias ao alcance das classes subalternas para resguardar suas vidas e seus modos de vida frente à incidência do biocapital.

A breve retomada de um caso concreto, acessado em minha investigação de mestrado na fronteira brasileiro-uruguaia, pode incrementar a reflexão sobre esses jogos de escala que permitem ao biocapital erigir-se como elemento fundamental da produção de corpos enclassados no atual sistema-mundo capitalista.

A crise do modelo agroexportador uruguaio e a virtual desarticulação do setor agropecuário deste país a partir da década de 1970 do século XX derrubaram os preços da terra e favoreceram sua compra por investidores estrangeiros, muitos deles brasileiros. A Fazenda Ana Paula é um grande estabelecimento pecuário de capitais brasileiros que, atraído pela “paz do campo uruguaio” — leia-se baixos índices de sindicalização, desregulamentação do trabalho rural, ausência de movimentos sociais massivos em favor da reforma agrária — e pelo baixo preço da terra, instalou-se no departamento fronteiriço de Cerro Largo no início dos anos 2000. 

Nesta época Osvaldo, um peão brasileiro sem documentação uruguaia, foi empregado informalmente na Fazenda Ana Paula. O valor do salário acordado entre Osvaldo e seus empregadores era de R$ 1.500,00, entretanto, conforme o relato deste interlocutor, seus ingressos mensais raramente alcançavam tal quantia, uma vez que os funcionários encarregados de administrar a folha de pagamentos costumavam reter para si uma parcela do salário prometido aos trabalhadores irregulares. Segundo Osvaldo: “eles [os funcionários que administravam os pagamentos] sabiam que estavam dentro do Uruguai e que não iria acontecer nada. E eu só com os documentos brasileiros. Estava en negro” (expressão que significa estar empregado sem contribuição previdenciária e demais direitos trabalhistas).

Depois de algum tempo trabalhando na Fazenda, Osvaldo foi acometido por uma grave afecção respiratória. Neste contexto, a gerência do empreendimento colocou-o sob as cuidados de um rapaz que recebera certa soma em dinheiro para arcar com os eventuais custos do tratamento no hospital da cidade Melo (capital do departamento uruguaio de Cerro Largo). Entretanto, como a situação migratória de meu interlocutor era irregular, ele apenas pôde fazer uma consulta médica, ficando impossibilitado de acessar leitos de internação. Se quisesse realizar o tratamento da pneumonia, Osvaldo precisaria contratar um serviço de saúde privado. Presumivelmente havia recursos para efetuar uma internação particular, mas como a pessoa encarregada de assisti-lo tinha a intenção de reter para si o dinheiro oferecido pela Fazenda, nenhuma medida terapêutica foi tomada. 

Um médico do hospital de Melo optou, então, por encaminhar Osvaldo a outra profissional conhecida sua, que atendia no povoado de Villa Noblía. Após fazer os exames necessários, esta médica constatou a gravidade do problema de saúde e conclui que, ali, seria impossível levar a bom termo qualquer tratamento. O funcionário que acompanhava meu interlocutor solicitou à médica que receitasse os remédios necessários e comprometeu-se, ele próprio, a transferir o paciente para alguma instituição hospitalar. Contudo, como o quadro clínico de Osvaldo era bastante grave, a doutora de Noblía preferiu entrar em contato com dois colegas seus em Bagé (Brasil) para averiguar se havia possibilidade de receber o paciente nos hospitais da cidade. A este respeito, Osvaldo relatou-me o seguinte: “ela disse que estava me mandando, que eu tinha somente a documentação brasileira, que eu estava trabalhando dentro do Uruguai (…) Aí [os médicos brasileiros] disseram que [ela] podia me mandar e eu recebi tratamento pelo SUS (Sistema Único de Saúde)”.

O trabalho rural em geral e o ofício de peão em particular, favorecem o desenvolvimento de certas enfermidades respiratórias, ósseas e musculares decorrentes da exposição à intempérie — principalmente nos meses de inverno –, do uso frequente dos cavalos e do transporte braçal de cargas pesadas. Conforme me informou a secretária de saúde do município fronteiriço de Aceguá, a maioria das consultas ambulatoriais realizadas na localidade se deve a dores na coluna, braços e joelhos. No contexto da fronteira brasileiro-uruguaia, onde as preocupações administrativas de dois estados nacionais motivam constantes esforços por discernir os doentes “deste lado” dos doentes “daquele lado”, os problemas de saúde podem adquirir uma dimensão potencialmente mortífera, já que trabalhadores na situação de Osvaldo passam a depender da própria sorte ou da “boa vontade” dos médicos e dos seus superiores para garantir a integridade física dos seus corpos. 

Vivências dessa ordem convertem as relações de classe em uma experiência de exceção (no sentido que lhe atribui Giorgio Agamben) porque, ao não possuírem documentos, é como se alguns trabalhadores transfronteiriços estivessem fora de qualquer jurisdição — salvo aquela imposta pelas “leis do valor” ; é como se fossem corpos desiguais em primeira instância, posto que subordinados ao julgamentos que outros farão a respeito da sua utilidade produtiva e legitimidade social. O impacto subjetivo desses processos sociais é dado a conhecer através de enunciados paradoxais, onde o desejo de escapar dos contextos exploratórios irrompe ao lado de uma profunda resignação que parece, finalmente, devorá-lo: “más bá, a gente sofre, a gente passa trabalho (…) me dá vontade de pagar, assim, e sair… sabe? Sair… bom, eu vou sair, não sei para onde eu vou, não sei para que lado”. (Osvaldo)

A experiência relatada por Osvaldo na Fazenda Ana Paula é sintomática da operatória do biocapital em um contexto de produção rural em zona de fronteira. Neste caso, os procedimentos desencadeados por um capitalista rural para incrementar a extração de valor em seu empreendimento redefiniram dramaticamente a condição de existência dos trabalhadores estrangeiros ali recrutados. Além de serem dilapidados e adoecidos em decorrência da exploração do trabalho, os corpos destes sujeitos tornaram-se passíveis de abandono no âmbito das instituições encarregadas de prestar serviços de saúde no território uruguaio, realçando o fato de que, para avaliarmos a incidência do biocapital, precisamos levar em conta, simultaneamente, a longa trajetória da luta de classes e as clivagens biopolíticas que dinamizam cada região.

O mundo do trabalho assalariado é, em si mesmo, um contexto despótico, um espaço de exceção no qual, sob pretexto de mobilizar força de trabalho, expõe-se toda a corporeidade viva do trabalhador a um movimento de apropriação fortemente determinado pelas leis do valor instauradas nos sistemas de intercâmbio locais, regionais e mundiais. Contudo, os efeitos mais letais desse processo são produzidos, em última instância, no terreno da biopolítica, onde as possibilidades de restauração física, agenciamento jurídico ou auto-enunciação política dos trabalhadores podem estar vetadas a priori, de acordo com seu estatuto nacional.

Foi o caso de Osvaldo, racial e de gênero.

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viernes, 20 de septiembre de 2013

Maragato

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Despeço-me do 20 de setembro, que nada me diz em consciência pura, mas diz no sangue que ferve, lembrando o lugar onde eu ia com meu pai, à noitinha, para reverenciar os pobres como nós mortos. 

Mal me lembro. Sei que era longe e íamos de a pé, dando voltas, e voltas, e voltas.

As cruzes ficavam depois de um túnel de árvores e matagal, num lançante perto de onde morou depois Pedro Rodrigues. Passado o mato fechado, a gente de repente passava raspando por uma brecha de árvores e chegava no lugar, amplo, apesar da vegetação que invadia o espaço: estávamos no bojo do túnel, de teto verde cerrado. Uma visão, a fósforos, de deslumbrar, na primeira vez quase caí de emoção mesclada de medo, era muito pequeno. Nas outras vezes quase caí de novo, já sem medo. Hoje eu cairia, tonteio ao lembrar as velas, as cruzes, ela ao fundo, em cima. Caí ao lembrar.

Fomos anos seguidos, desde que me lembro, na última eu tinha nove anos, mas íamos desde os três ou quatro, ele me levando pela mão, com ar sisudo de ritual de homens. Na última não foi pela mão, com nove já era galinho, fomos lado a lado, em silêncio, dando as voltas de despiste.

Custei a entender a visita às escondidas, mas obedecia ao pai, nunca contei para ninguém que íamos velar os maragatinhos, ele me proibiu. No início eu nem sonhava o que era isso de maragatinhos.  A mãe um dia me contou de rapazes pobres que foram assassinados numa guerra, mortos covardemente por forças superiores, mas eu não podia contar para o pai que ela me disse. Aos oito anos ele me contou.

Muito depois é que soube que vivíamos numa ditadura cruel, por isso o pai me levava à noite ao santuário perdido.

Ao chegarmos, era breu, noite fechada. Ele acendia um fósforo. Pelo brilhozinho vermelho eu via as velas derramadas naquele recanto do fim do mundo. Tantas eram, de todas as cores, que percebi que muita gente vinha ali. Havia flores novas sob as pequenas cruzes, em cima do montinho já baixo. Lá adiante ao fundo brilhavam os olhinhos, grandões para o seu corpo, luz de calma, da única companheira presente em todas as vezes que fui. 

Às vezes sonho com ela, com seus olhos azuis espantados e esperançosos, aí é sonho bom, muito diferente dos pesadelos. Minha primeira namorada foi ela, a quem eu mirava para voar um pouco, eu não sabia mas sentia que era pesado o fardo do meu pai. Não sei se o pai a via, era de poucas palavras, nunca falou, mas secretamente dei-lhe nome: Carmen.

Ele acendia uma vela branca, ajoelhava, parece que falava, hoje imagino que com o pai dele, o avô que não conheci. Plantava outra, esta tu acende, Joãozinho, diz "Pro meu vô querido", e me dava a caixa de fósforos, acenda com calma meu fiinho, eu acendia e dizia pro meu vô querido. Nós dois sozinhos de joelhos dentro daquela solidão de plantas e cruzes sem nomes, lá fora a escuridão assustadora, e o pai só levantava quando as velas estavam derretidas, as pontas ameaçando morrer.

Um dia ele me disse que aprendera com o meu vô, que tinha aprendido com o pai dele, que a gente deve homenagear o sangue derramado, não entendi direito, mas era o nosso sangue. Perdemos vinte da família numa guerra. Fiquei boiando, minha família era ele e a mãe, não conheci avôs nem avós. Nem retratos tínhamos desses outros de antes.

Hoje sei, pai.

Sou maragato, lenço vermelho, mas tento ser diferente daqueles nossos pobres irmãos, paus-mandados pela ignorância, tento recuperar o sangue que se esvaiu, que ensopou a terra, para poucos traidores enriquecerem com ele.

Temo apenas, meu velho, que meu sangue vá se somar aos daqueles moços. Mas não tem nada, calça encarnada, que vengan.

Sabe, meu pai, as coisas comigo não deram muito certo. Sou maragato outro, ninguém me manda. Ando mal porque depus as armas: a adaga, o 38 e o 45. Sei que não adianta matar meia-dúzia de bandidos, são muitos os ladrões de gabinetes, pior do que antes, os despojos das suas vítimas estão por toda parte. 

Hoje me contento em não permitir que me toquem nem levantem a voz, ninguém, impunemente não. Sonho com as cruzes dos maragatinhos. Não consigo mais dormir, pai. Não fui eu que errei.

Depois de 45 anos hoje fiz uma visita às cruzes abandonadas, mentalmente viajei centenas de quilômetros e entrei em noite fechada naquele ermo do nosso passado. Acendi um fósforo, para logo sob a luz trêmula e fraquinha das velas cair de joelhos e rezar, pedindo ajuda, força e sabedoria, pois não aguento mais.

O senhor me desculpe, mas não tive a quem levar pela mão, alguém que me salvaria a vida pela simples presença do nosso sangue ainda em flor.

A ave noturna não estava lá. O que será que aconteceu com a minha Carmen, que por longos anos me velou e me deu forças? Passei a vida sonhando que ela se transformaria em menina, depois em mulher. Morro de saudades dela, linda de capa marrom vista à noite, camisa branca, séria, com aqueles olhos grandes, azuis, sinceros, olhos que o mundo, ao fim e ao cabo, me negou.

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