sábado, 30 de abril de 2016

No apito não! (Rascunhos para a posteridade)


Nas partes altas dois castelos
O povinho lá embaixo no vilarejo
E eles se revezam na espoliação

Além de política e religião, o que mais os sábios recomendam evitar discussão? Ah, o futebol, então falemos dele, na boa: lá no gramado não tem choro, se agredir é expulso. Antes a gente se vingava batendo no adversário enquanto a bola estivesse longe, o juiz não via, e bandeirinha em geral olha o mesmo que o juiz, de outro ângulo.

Com a bola longe lá ia o tostão por trás no avante deles, naquele músculo fatal, com toda a força, toma, filho da puta! Só viam quando o cara estava caído e o zagueiro de mãos para o alto, ele está se fazendo, seu juiz, não fui eu! Depois os demais atacantes pensavam duas vezes, disparavam, iam buscar bola no meio do campo, ciscar lá na lateral, o chefe aqui da área sabia que tentariam vir, deixa estar. Foram eles que começaram.

De perto o defensor pulava junto para cabecear, mas antes agarrava os ovos do cara (um velho técnico argentino ensinava direitinho, mas para usar só em último caso), esmagando, o avante ficava plantado e o zagueiro subia aos ares com força, voando alto para cabecear a bola, sem largar os ovos do boca ruim. 

Certa vez me dei ao luxo de matar no peito e dar um balãozinho no cara enquanto ele caía com as mãos entre as pernas, não tinha juiz que visse, isso de vingança porque ele tinha dito que comeu minhas irmãs, e na hora de fechar o tempo havia quem apartasse, daqui a pouco já passou, esquecemos, apito final e um abraço. Os caras dos ovos me recusavam o abraço, e nunca mais falavam da mãe de ninguém com aquele ríspido tom de voz.

Agora nem isso se pode fazer, tem que tolerar o cara passar o jogo inteiro comendo a mãe e as irmãs da gente, pois tem tevê que flagra tudo, não dá pra dar nem um cotovelaçozinho na boca.

Futebol nos separa por noventa minutos, o sujeito sai ferido, um dia a mão, outro dia uma perna fraturada, dente quebrado, lábios sangrando. Cura, passa.

Religião ninguém liga muito, cada um tem ou não tem, a laicidade do estado é garantia de respeito, salvo por alguns bandidos que exploram a triste ignorância alheia.

Agora, isso de política nos separa para sempre, e todo mundo vê, não apenas o juiz. Vê as nossas raivas, que não são por noventa minutos, a torcida do mundo vê a nossa cegueira para as razões do outro, nosso concidadão, cegueira vindo de más escolhas quando se trata de tolerância, quando não da nossa criação da qual não conseguimos ainda nos libertar.

Então paremos de chorar, choro transmutado em agressão, vamos no voto, em silêncio. Se eu fosse reclamar xingaria até o Lula, que ajudei a parir. Talvez vote nele ainda, é problema meu. Aguentando a pegada nos ovos, se o outro levou vantagem de alguma forma. Teremos outros circos, outros jogos.

Na política não temos inimigos, nem por falsos e fugazes noventa minutos para desopilar: temos nós contra nós mesmos, mágoa duradoura. Levados por alguns "políticos" que aprenderam a falar em público, a gente é tímido como quase todos os que não nasceram em berço de ouro, oh santo talento, mas que não passam de uns vermes, que dizem besteira enquanto ficam ricos à sorrelfa.

Pensemos em selecioná-los melhor. Os melhores de nós, por honestos, mentes abertas, sem preconceitos. Aquele é bom, desde menino, me representa. No distrital. E cuidemos do que ele faz, de como muda, ou não, o seu patrimônio terreno. E os que tivemos escola, se humanistas, ajudemos o povo a escolher, falando de bem dos homens e mulheres que achamos que merecem, exaltando as suas qualidades, Jamais falando dos defeitos dos que detestamos. Se são defeituosos, cairão sozinhos. Isto se defeituosos demais, pois defeitos todos temos, atire a primeira pedra.

O voto distrital é necessário, misto ou não, a gente que mora na aldeia conhece os bugres.

Enfim, se perdermos sempre teremos uma revanche. Agora, o juiz nos expulsar e marcar pênalti contra nós por uma faltinha lá na intermediária deles, não. No apito não!

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Lu do tabaco-quente

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Amigos, é com pesar que faço o comunicado que segue.

Como sabem os meus próximos, de há muito, desde que me pelei e passei a viver de favores de amigas, faço as contas do custo das mercadorias tendo como base o quilo de arroz. Tomei o arroz como referência porque tendo o cereal ninguém morre de fome, basta um ovinho por cima e pronto, a gente sobrevive. E nisso de fome sou mordido de cobra, muito passei nesta porca vida.

A malandragem entende: o sujeito bate os olhos naquele chivas chaveado no supermercado, estranja mesmo, não panamenho, o Paraguay leva a culpa mas é só o intermediário, 365 paus, e pensa: aqui ó, 165 Kg de arroz não me tomam nem morto, vou levar um drurys. Se a referência fosse o valor do helicoca tudo bem, levava o outro, mas tem helicóptero não, e a gente precisa de arroz.

Tem algo me incomodando faz tempo, hoje botei no papel e escancarei que há anos venho fumando 6,13 Kg de arroz por dia. Quando tomo uns tragos sobe para 9,2 Kg. Como sou chegado numa dyabla verde, cerveja e outros venenos alcoólicos, o normal é fumar os 9,2 Kg por dia.

Num mês de 30 dias, fumo 276,14 Kg de arroz. Ao ano passam pelos meus pulmões 3.359 Kg, isto mesmo: três toneladas mais trezentos e cinquenta e nove quilos de arroz. Poderia doar as três toneladas e ainda comer um quilo de arroz por dia, caso não fumasse.

De quebra soube que anda batendo uns efeitos colaterais nos varões, se fosse apenas um enfiseminha tudo bem, mas não, malandro, tem nego broxando, Deus me livre, não posso correr o risco de perder a fonte de renda.

De modo que deixo de fumar. Com isto não estou sugerindo que alguém faça o mesmo, cada um sabe de si, pois sei que na face da Terra, depois de pastores eletrônicos e seus seguidores, o sujeito mais chiclé que existe é o ex-fumante. Aliás, quase todos os ex de algo aceito como negativo são uns pé no saco. O sujeito fuma ou bebe até cair por 40 anos seguidos e depois que pára vai aporrinhar moleque que está começando a vida, ninguém merece.

Peço perdão às atuais dezenas, que já foram milhares, de senhoras belas, recatadas e do lar dos outros, que aprenderam a amar o gosto de cigarro na minha boca. Prometo que de vez em quando pitarei um palheirinho, acabarão pegando gosto.


Luciano Peregrino – O Lu do tabaco-quente

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Hay días que no sé lo que me pasa

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Tem dias em que a gente acorda ouvindo Vinícius e Toquinho e pensa que de nada adiantou se afundar em livros de bibliotecas públicas, no meu caso com grande dificuldade, nunca pensando em ganhar dinheiro, um treco que é o meu maior defeito, o chamo de Síndrome de Jesus, ou Síndrome do Babaca. Em resumo, para procurar seguir como propôs Jesus Cristo, o cara sabendo no que deu, tem que ser mesmo muito babaca.

Em vez de quebrar a cabeça desde os clássicos, iniciar na manipulação de massas com a Teoria da Bala Mágica, Cultura de Massa, os pensadores contemporâneos, Sontag, Arendt, Adorno, Chomsky e por aí vai, uma dificuldade a solas entender o que diziam essas pessoas, logo com os pensadores da loucura, da economia, tudo entrelaçado, na vã tentativa de entender o mundo, eu poderia ter sido músico, ou cantor sertanejo universitário, ou professor, neste caso das primeiras letras, nada de coisas complicadas, pois nestas logo arranjaria confusão com os Gilmar Dantas e outros brutos proscritos.

Um amigo, o filósofo mundano da república onde morávamos, que não dizia sertanejo e sim sertanojo, sem ler livrões sabia mais do que eu. Sábado era certo que vinha:

- Vai ficar aí, lendo esses livrão, Carlos? Larga disso, vamos lá pro “Bar que Chove” encontrar a turma, aquela morena do Jucão lá do inferninho da João Pessoa ficou de levar umas amigas.

Olhava a capa de algum livro e arrematava:

- Deixe de ser bobo, povo é povo, o mesmo que aplaudia Jango hoje aplaude o Médici!

Pois é, tem dias em que ao ver como agem pessoas levadas a altas cadeiras da nação, como mentem, forjam, subtraem, como são covardes, como conduzem a manada impiedosamente para o precipício, penso que deveria ter feito outra coisa na vida.

Que professor nada, deveria ter sido assaltante como eles, mas de banco, arma na mão, não falando difícil e com mão de gato como eles fazem.

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viernes, 29 de abril de 2016

Bruno Contralouco n'A Crônica do Dias

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Acordei de madrugada e percebi que a gripe está me largando, pois senti vontade e pitei um nicotífero na sacada; na volta, ao entrar na sala, joguei um olhar fortão, de paixão, para a garrafa de uísque lá virgilina na estante dos livros, naquela de "de hoje tu não passa, gostosa".

Bem, ia esquecendo que hoje é sexta-feira e já me meti em politicalha. Passo a evitá-la, mas algo que antes postei, sobre os ícones populares do impeachment, me lembrou do Botequim do Terguino, lá no Beco do Oitavo, em Porto Alegre. Aquela turma é um prato cheio.

A mesa 1, ao lado da janela, é privativa dos velhos boêmios, gente de 40 anos para cima, o mais novo tem 40 e o mais velho 75, que são uma das atrações do boteco, muita gente vai ao bar para ouvir os inflamados discursos, rola filosofia das ruas, e ouvir sambas e boleros que ninguém lembra mais. É alguém reclamar que brigou com a mulher e João da Noite canta inteirinha Ninguém me ama, do Antônio Maria, com o Cícero do Pinho caprichando no acompanhamento. O que faz a bebida.

Um caso à parte é o Bruno Contralouco, que com seus 38 anos sempre rouba a cena, o índio é tirano, o nome já diz.

Bem, de modo que na mesa 1, que são duas mesas juntas, só os boêmios curtidos sentam. A rapaziada, moços e moças, se instalam nas mesas próximas. Tem um moleque japa que senta sozinho na mesinha de uma só cadeira ao lado, diminuta, serve de passagem de bebidas – o garçom lá de dentro traz, larga ali, e o garçom do salão leva ao destino -, fica a noite toda ouvindo os papos e canções da turma. O pessoal já acostumou com ele, brincam, mexem com o menino, ele sorri, quieto.

O doido o apelidou de Patroca. “Esta música ofereço pro amiguinho Patroca”, e é Patroca pra cá, Patroca pra lá, isto quando o Contra está espiritado, o que ocorre quase sempre. Chupim da Tristeza um dia o intimou: “Que apelido é esse que foste botar no guri, pô, não tinha outro?”. O Contra disse que era pelas suas feições asiáticas, com o que todo mundo seguiu boiando.

O Contralouco sempre chega incendiando o bar, gritando saudações e dando abraços em todo mundo, tem uma palavra para cada um das outras mesas, é “E aí, meu, cadê aquela morena gostosa do outro dia?”, “E tu, Alemão, o que houve com o Grêmio ontem”, “E essa gatinha linda, cadê o namorado?”, e por aí vai, até que chega na mesa, entornando chopes conta o seu dia, faz questão de saber como foi o dia de cada um, até que, esgotados os primeiros assuntos, olha pra mesinha do moleque e exclama: “Ei, meu fio, já comeu alguém nesta vida? Se não o tio Bruno aqui arranja uma japa pra ti!”.

Saudações e abraços para todo mundo, mas tem uma exceção: uma coroa que senta sozinha no outro lado do bar. Quando faz aquela alaúza toda na entrada olha para o fundo e, se ela está lá, mira o teto e exclama, teatral, de mãos postas: “Ó Deus, o que foi que eu fiz pra merecer isto?!”.

Isto porque ele diz que a viu numa passeata dos coxinhas lá para os lados do Moinhos de Vento, com uma velha camisa da seleção, a 11 do Romário.

Os companheiros de mesa tentam dissuadi-lo, largue o pé da penosa, Bruno, não vale a pena. Ele fica quieto, e não larga. Outro dia Jezebel, Luciano, Gustavo Moscão, João da Noite, Silvana Maresia e outros chegaram a levantar para impedi-lo mas não conseguiram: foi lá no meio do bar e dedicou, sem olhar pra ela, “a uma nazista eleitora da Ana Amélia”, e cantou todinha Lili Marlene, escrachando o sotaque.

Nos últimos tempos a barra piorou. Numa quinta-feira lá pela meia-noite olhou para o japinha e disse: “Ô, Patroca Katapica de merda, outro dia te vi numa passeata também, então acho que pra levar recado pra china tu serve, entregue isto para a advogada sozinha lá no fundo”, e deu-lhe um papel.

O Patroca saiu lépido e entregou. A mulher leu e veio de lá com uma pistola na mão para queimar o Contra, quem lhe tirou a arma foi o próprio Terguino Ferro, que sentiu o drama quando ela levantou mexendo na bolsa. O Terguino engrossou: “Olha, dona Pasquala, faça-me o favor de não vir mais no meu bar”. A mulher foi embora e os ânimos se acalmaram.

A doutora Jezebel foi lá no fundo e capturou o bilhete jogado no chão, voltou e leu para a turma:

“Desprezada: à distância sinto que o seu problema é falta de homem, o que suponho seja pela raiva que carrega no coração, pra que tanto ódio? Eu nem morto, periga me castrar dormindo, mas farei um esforço para convencer o amigo Luciano Peregrino, campeão em transar com certas recatadas e do lar, a encarar uma retardada como a senhora”.

Aí tiveram que segurar o Luciano, queria briga com o Contra, este só ria.


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A coluna A Crônica do Dias, a exemplo de A Charge do Dias, leva esse título pelo seu idealizador, o mestre Adolfo Dias Savchenko, que um belo dia se mandou para a Argentina, depois para o Uruguai, onde vive muito bem. 

(Ilustração: as escadarias da 24 e o bar O Porto, também refúgio dos boêmios, no Beco do Oitavo, próximo ao Botequim)

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jueves, 21 de abril de 2016

2016: o golpe em andamento

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Hoje não vi notícia, mas ontem, enquanto fazia carreteiro de charque, da cozinha ouvi o rádio no quarto na Hora do Brasil, não captei bem, mas o locutor dava conta de que o Paulo Paim entrou com uma medida propondo eleições neste ano. À primeira vista parece que o governo, ou o Senador Paim, estaria entregando os pontos, mas se olhar bem não é bem assim.

Eles, os criminosos golpistas que estão morrendo de medo da cadeia e precisam remover a presidente Dilma, não topam de jeito nenhum, pois perdem de novo, a menos que aquele indivíduo do PSDB de Curitiba consiga prender o Lula por cuspir na rua. Para azar dos antipatriotas, conseguiram unir as esquerdas, onde cada homem e mulher em campanha vale por duzentos dos coitados que essa elite podre paga para sacudir bandeira nas esquinas.

Fala-se em corrupção, ora, corrupção é o nome dessa elite golpista que possui um trilhão de dólares em paraísos fiscais, essa que superfatura, sonega, que compra políticos, que desde 1.500 suga os recursos do estado brasileiro. 

Tem político corrupto ao lado do governo, gente que meteu e mete a mão? Claro que sim, qual o governo que não tem erva daninha, pela dificuldade de se administrar a imensa burocracia neste sistema viciado de coligações? Teve e deve ter ainda, os acusados foram presos rapidinho, julgados e condenados num átimo, uns justamente, outros injustamente, mais uns lobistas canalhas, estes para, ao arrepio da lei, serem coagidos à delação. 

Objetivo atingido, parou ali. Do PSDB, do PMDB, etc, dessa casta de políticos que, não importa a sigla, sempre serviu aos magnatas da propriedade da terra à indústria, ninguém foi preso, apesar da abundância de denúncias e provas.

O único objetivo com prisões e condenações era atingir o governo que os ameaça por permitir investigações de todos, que ousadia, investigar os magnatas da FIESP. 

O único jeito dos sem voto sentarem na cadeira da presidente Dilma é assim, como planejaram: com golpe alegando crime que não existe, com a lerdeza programada do Supremo Tribunal Federal - que permite que um facínora presida a Câmara dos Deputados -, com a sanha de policiais, procuradores e juízes cães de aluguel, comprando deputados, mentindo, com a grande mídia golpista martelando os ouvidos da população incessantemente, mas sem voto.

E tudo na cara da gente, sem nenhum pudor, se achando espertos, como aquele imbecil do Cunha (domingo à noite vimos o nível intelectual dos parlamentares que ele e outros dominam, quociente de inteligência variando de 50 a 79, retardo leve à quase deficiência), como se fôssemos todos um bando de songamongas.

No que vai dar eu não sei, mas algo me diz que eles vão arrumar um inferno se o golpe se consumar, daí quero ver aguentarem. Que vão desrespeitar a mãe deles, não a nossa Constituição.

Que a minha mãe me perdoe, mas não quero que venha a Dilma dar uma de Jango, entregando no mole para preservar a paz e a população, blá, blá, blá. Não mesmo, vamos pro pau, tem hora de viver mas também tem hora de morrer, ué. Daria um dedo para ver se corruptos e covardes como Aecinhos e Cunhas seriam homens de sair pra rua dispostos a tudo, em vez de mandar infelizes em seus lugares.

Deus sabe, meus amigos idem, que como a imensa maioria dos brasileiros dou uma boiada para não entrar em briga, somos um povo pacífico, agora, tem limite, isso de estuprar a mãe de todos nós rompe o limite.

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(Ilustração: O vice-presidente e a FIESP)

martes, 19 de abril de 2016

Da tortura

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Trocando impressões com a amiga bonairense Norma Leticia López, a propósito do horror da tortura por regimes ditatoriais, ponderei que na Argentina muitos foram condenados, até generais, enquanto que no Brasil permanecem - os ainda vivos, pois muitos já morreram - todos impunes. Ela respondeu:
- Sí. Aunque todavía faltan los civiles.
Com efeito, o ovo da serpente em todas as ditaduras da América sempre foi civil. As elites empresariais – industriais, latifundiários, escravocratas, etc. - unem-se para golpear o estado de direito que não lhes convém, negando ao povo qualquer evolução humana e econômica. Querem escravos, não concidadãos. Os militares são manipulados para os protegerem de revoltosos, sempre os há. Não raro os militares, já distantes da função única e primordial de defender a pátria de agressões externas, galgados de empregados do povo a reis-ditadores, tomam gosto pela nova função e o pau pega, passando por cima de qualquer senso mínimo de justiça.
No caso da América do Sul, sempre com o dedo do império que cobiça e vive das nossas riquezas.
Bem, isto qualquer colegial sabe. Queria dizer outra coisa.

Certa vez em Porto Alegre alguns amigos e eu esperamos pelo Dia de Finados para abrirmos umas garrafas de champanhe guardadas há muitos anos, para amargamente comemorarmos a condenação à prisão perpétua de um dos maiores assassinos da ditadura argentina, o capitão Alfredo Astiz, o "anjo loiro da morte". Aqui não tínhamos justiça a comemorar, então nos unimos em alma aos irmãos argentinos, para purgar o sofrimento na exposição pública dos seus crimes.
Aquele indivíduo com alguns traços que lembram um ser humano sequestrou e matou, entre tantos, ao jornalista, escritor e dramaturgo  Rodolfo Walsh, que então contava com 50 anos e não conseguia se conformar com a situação em seu país (para além da perda de sua filha Maria Victória, de 26 anos, em enfrentamento com os carniceiros), no dia seguinte à divulgação de sua Carta Abierta de un Escritor a la Junta Militar. O sociopata amava ferir pessoas indefesas, mas ao primeiro tiro rendeu-se covardemente aos ingleses na Guerra das Malvinas.
Há quem afirme que essa grotesca figura assassinou Francisco Tenório Cerqueira Júnior, pianista que acompanhava Vinícius e Toquinho em shows em Buenos Aires, e que no dia 18 de março de 1976 saiu do hotel para comprar um remédio e nunca mais voltou. Foi torturado por nove dias, e quando constataram que não tinha envolvimento político, que foi engano ou maldosa denúncia, possivelmente o tinham confundido com outro brasileiro, o mataram com um tiro na cabeça.
A ilustração do rosto do torturador é do artista uruguaio Alfredo Sábat, argentino por adoção.
Enquanto isso, no Brasil, depois de tantos anos, ainda temos o terrível desprazer de assistirmos, em rede nacional de tevê, um indivíduo da mesma laia exaltando um dos maiores torturadores brasileiros, ao tempo em que propunha mais um golpe, agora branco, nas barbas da nossa cega e cúmplice "Justiça".

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Correr para onde?

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Amigos, não aguentei e desapareci, aquele maldito câncer acabou comigo. Curei-me, claro, gastando o que não tinha, mas desabei por dentro, o egoísmo e a ingratidão humana me marcaram para sempre.

Tantos anos se passaram e agora creio que posso voltar.

Sigo morando neste cubículo da Rua Otávio Correa aqui na Cidade Baixa, a velha tá com 89, naquela fase que tenho que lhe ajudar a tomar banho, e caduquinha da silva, foi muito judiada na vida, esquece de me cobrar o aluguel do quartinho, mas um dia essa mordomia vai acabar, por enquanto os seus parentes sabem que cuido dela, coisa que eles nunca fizeram, mas quando morrer tou frito, se eu não estivesse aqui já teriam fincado a coitada da D. Iraci num asilo público e vendido o casebre.

Tou devendo na Mercearia do Nelson lá da Av. Venâncio Aires, uns cigarrinhos paraguaios, isqueiro, cachaça e mais umas coisinhas; tou devendo anos de contribuições pra sindicatos de classe, há cinco anos tou devendo pro dentisto, se presidenta resulta em presidente, se empresária dá empresário, então chamo de dentisto, é macho, na época paguei com cheque frio dois implantes e algumas obturações.

Tou devendo duzentos mil para um agiota fiadaputa - o banco Itaú, ele diz que deixa por quatro mil mas este não vou pagar mesmo que eu pegue na Mega; tou devendo pruma mulher, proutra mulher, bem, prumas trinta mulheres que já sumiram da minha vida quando sentiram que daqui não sairia nada.

Não devo luz nem água porque é gato, nesse ponto dou lucro pra D. Iraci. A internet também é gato.

As roupas puídas, comprar novas de que jeito? Sapatos furados, uma droga em dia de chuva.

A Glock e o 38 sem balas, se for atacado pelos nazistas do Parcão, uns que gostam de espancar quem aparenta ser mendigo, terei que me arranjar só com o punhal.

Como estou com o nome fodido em todos os órgãos de proteção ao crédito dos bandidos, arranjar trabalho nem em sonhos, até porque cassaram meus registros profissionais de atuário, advogado, filósofo de meia-tigela, sociológo (este eu rasguei em homenagem ao FHC), até de gigolô.

Para dar uminha de vez em quando pego uma alemoa bunduda de um puteiro da Venâncio lá perto da João Pessoa, ela gosta de mim, faz no amor, mas tem que ser rapidinha pra ela não ter problemas com a cafetina.

Não tomo uma cerveja há séculos, o preço é um roubo. Só pinga mucufa, uma garrafa me dura três dias. Livros eu leio, a moça da Biblioteca Pública deixa eu levar pra casa, toda semana pego cinco, na outra semana devolvo e pego mais cinco.

E por aí vai, não falo em alimentação para não provocar choro nas amizades, só digo que não estou tísico com as sopinhas da velha porque de vez em quando trago umas bananas da Merceria do Nelson.

Pressionado assim, na noite passada sonhei em pegar os 90 milhões da Mega na quarta-feira. Sei que a grana está reservada para magnatas e políticos ladrões, as regras de apostas determinam isso, mas sacumé, de repente um milagre.

No sonho me veio claramente os números, os vi luzindo em doirado no escuro do meu quarto, nove números, sei que os seis que preciso estão ali. O diabo é como jogar, nesta dureza.

Fiz as contas: tenho 459 amigos no Facebook, se cada um me mandar cem contos, junto 45.900,00. Faço a aposta, pago a Mercearia, o dentisto e as mulheres, o restante que se foda, não pago, e sobra dinheiro. Só não sei como pegaria a grana, se os amigos toparem, pois obviamente há anos encerraram minhas contas bancárias. Aceito sugestões.

Ah, se eu pegar as noventa milhas, retribuirei distribuindo pelo menos metade da grana aos amigos. Com uma partezinha da minha metade compro uma mansão e levo a D. Iraci morar comigo, com direito a babá.

Se não pegar, com a grana que sobrar do empréstimo dos amigos e amigas do Face compro munição, muita munição, saberei o que fazer para ganhar dinheiro, logo estarei enviando regularmente dividendos a quem apostou em mim. 

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lunes, 18 de abril de 2016

Aristarco de Serraria, na inauguração de "A Crônica do Dias"

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Como todos sabemos a história registra a passagem pelo nosso planeta de Aristarco de Samos (310 a.C. - 230 a.C.), astrônomo e matemático grego, que foi o primeiro cientista a propor que a Terra gira em torno do Sol (sistema heliocêntrico) e que possui movimento de rotação. Por tais afirmações foi acusado de ímpio, algo como o ateu de hoje em dia, pelo legislador Feliciano Galinha Louca, que, junto com Jair Tortudélio, eram os ignorantes da época, os temos em todas as épocas. Bom, só para chegar ao ponto.

Devido a excelente cultura de seu pai, que embora remediado era dado a leituras, o personagem Aristarco de Serraria (do conto “A cabeça de cada um”, in Um Amor em Porto Alegre, 2015, 176 pág., Ed. AGE), ontem lembrado pelo amigo Luciano Moojen Chaves, custou a ser registrado no cartório de Registro Civil das Pessoas Naturais da 5ª Zona de Porto Alegre, lá na Rua Dr. Campos Velho, até que ali pelos seus sete anos o velho, já ciente de que o guri era diferenciado, resolveu registrá-lo como Aristarco.

O Serraria ao final é apelido antigo e deve-se ao bairro em que nasceu. Era para ser “da” Serraria, mas ao assinar seus escritos optou por “de” por lhe parecer mais elegante.

Bem, vai trecho do meu longo conto (para mim, tratando-se de conto, 14 ou 15 páginas é longo). O ambiente é o Botequim do Terguino, ali no Beco do Oitavo, na divisa da Cidade Baixa com o Centro da capital gaúcha.

“O filósofo Aristarco de Serraria entra no bar de costas, chamando a atenção da confraria, que ao vê-lo já sabe o que houve: novamente teve alucinações, o boêmio sofre de uma síndrome rara, nasceu assim, que faz com que sinta o mundo rodando em torno de si, por vezes os objetos alçam vôo e ficam enlouquecidos girando ao derredor. A turma apertou as cadeiras e ele sentou-se, dizendo:

- Beijos para todo mundo. Bah, eu ia passando na frente do edifício Palestra Itália da Salgado Filho e o balança-mas-não-cai ergueu-se do chão e veio me seguindo, valsando, vão lá fora e olhem para cima. Hoje eu juro que é de verdade.

Ninguém foi, claro que um prédio de mais de dez andares não iria levantar vôo para seguir o maluco ao som de valsa. Luciano começa a assoviar Desde el Alma, provocativo.

- De outra vez foi o prédio da Prefeitura, depois o Mercado Público, entre outros, Ari. E aqui dentro, como é que está?, perguntou Silvana Maresia.

- Vocês e os chopes estão voando de ponta cabeça, com cadeira e tudo, façam-me o favor, não precisam girar tão rápido, me deixam tonto."

Bem, até aqui foi para os amigos entenderem, como entendem os boêmios, o que aconteceu hoje à noitinha.

O filósofo boêmio entrou no botequim tonto, trôpego, se segurando nas mesas. Quanto sentou disse que desde ontem é o prédio do Congresso Nacional - quase escrevo Carnal - que o segue por todo lugar.

- Normal, Aristarco, você já deveria estar habituado, disse Chupim da Tristeza.

- Estou, sim, é que nunca me aconteceu isto antes, pela primeira vez sinto que vai cair em cima de mim! Vão lá fora e olhem para cima, hoje eu juro que é de verdade.

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A coluna A Crônica do Dias, a exemplo de A Charge do Dias, leva esse título pelo seu idealizador, o mestre Adolfo Dias Savchenko, que um belo dia se mandou para a Argentina, onde vive muito bem. 

Ele tem as ideias mas eu que pago o pato, terei que escrevê-las, sempre que possível ambientadas no Botequim do Terguino. Antes eram dois bares, que se... fundiram, face a dívidas com o sistema agiotário, desaparecendo ambos levando todos os bens e surgindo outro, limpinho de contas, num negócio de falência de engrupir, mas não entremos em tecnicalidades, disso quem entende é a Fiesp. 

O novo bar, com outro CNPJ, em nome da Leilinha Ferro como testa de ferro, manteve o nome fantasia de um dos falecidos botecos: por sorteio ficou Botequim do Terguino, agora propriedade dos ex-endividados António Portuga e Terguino Ferro.
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Controle remoto, minha gente

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Atendi a intimação. Entrei no prédio do Bureau do Distrito Federal intrigado, afinal que diabos queriam comigo? Fiz tudo direito: relacionei os modestos bens adquiridos durante a vida – todos os que estavam no meu nome, paguei uma carrada de dinheiro, com correção monetária, juros e multa. O guarda-livros insistiu para que eu regularizasse apenas os últimos cinco anos, chegou a ser insolente. Ao dispensar os conselhos do ladrãozinho de gravata esclareci que eu nunca soube fazer as coisas pela metade.


Foi a primeira e última vez que apresentei Declaração, de rendimentos com ou sem origem.

Como abatimentos eu havia considerado somente as doações e os dependentes. No formulário, como único elemento digno de nota, tinha a observação que escrevi abaixo da assinatura: “Senhor Collor, não faça como o Sarney, aplique a grana direito”. Eu sou pelo direito, e o homem me convenceu.

Depois de um chá de banco, sentei na frente do indivíduo. Ele disse:

- O senhor não se preocupe, queremos apenas alguns esclarecimentos sobre as doações e os dependentes. O restante está correto, foi acertada a sua decisão de pagar os atrasados, pois vamos dar início a uma devassa.

Interessei-me.

- Que ótimo, meu amigo, quer dizer, então, que os grandes empresários e os políticos, todos os que tem bilhões enrustidos no exterior, estão com os dias contados? A moçada lá da cadeia vai adorar ter essa gente como companhia... A navalha vai cantar.

Ele ficou sisudo, certamente para evitar que eu continuasse tomando aquilo que ele pensava ser liberdades. Disse:

- Quem for pego, irá. Mas, vejamos...

Abriu a minha declaração. Começou a cantilena:

- Doações a creches: somente serão válidas se o senhor apresentar a documentação... Nem consta o CGC...

- Que CGC, cidadão? Desde quando creche caseira, na periferia, tem registro?

- É a lei... Tem mais: distribuição de cesta básica em vilas também não pode, infelizmente. Veja bem: não estou dizendo que o senhor não realizou as despesas, é que existem condições e limites, o seu contador não viu isto?

- Ver ele viu, seu doutor, mas era pago para não ver nem discutir, também tenho os meus limites...

O indivíduo achou que eu estava brincando, sorriu. Muito engraçado, o fiscalzinho. Continuou a brincadeira, lendo a relação de dependentes, em voz mais alta que o necessário:

- Maria Helena Mendonça, nascida em 1º de setembro de 1963; Regina Lemos, 6 de novembro de 1969; Vivianne Moreira, 5 de janeiro de 1972; Karina Martins, 10 de março de 1973; Dione de Jesus, 8 de julho de 1973; Jucilene Quiroga, 16 de dezembro de 1973; Sonia Sem Nome, sem data...

Aqui ele esforçou-se para não rir. Notei que os seus colegas a toda hora passavam diante da porta, espiando para dentro. Continuou:

- Luciana Dal Vitta, 9 de abril de 1974; Vilma Conceição da Silva, 24 de dezembro de 1974. Estas pessoas estão arroladas como irmãs. Agora as suas filhas: Carla Mendonça Luna, 11 de novembro de 1985; Márcia Mendonça Luna, 18 de janeiro de 1987; Vera Lemos Luna, 16 de outubro de 1989; Zilda Luna, 21 de outubro de 1989; Lunera de Jesus Luna, 15 de fevereiro de 1990; Marta Sem Nome Luna, 29 de junho de 1990; Cláudia Dal Vitta Luna, 13 de novembro de 1991. Ufa...

- Ufa o quê? Sei que esqueci de botar algumas.

Olhei sério para o sujeito. Somente então ele deu-se conta de que eu não estava gostando do negócio.

- O senhor me desculpe, mas... o problema... o problema é que suas irmãs tem nomes diferentes, e os nomes das suas filhas correspondem, com uma ou duas exceções, aos nomes delas...

- E daí?

- O senhor deverá apresentar as certidões de nascimentos das filhas, além de comprovar que as suas... irmãs são realmente dependentes.

Entendi: eu ia me incomodar. Esses caras são estranhos, não se flagram. Falei:

- Não vou trazer nada, não, meu amigo, mas gostaria muito de saber quando o senhor ganha, para ficar enchendo o meu saco, acaso tenho cara de marajá? O senhor já investigou as contas dos banqueiros, dos empresários, dos malditos políticos, que só agora sei que não passam de ladrões, do presidente do Congresso para baixo?

- O que o senhor quer dizer com isso?

- Nada de especial. Ah, o senhor já parou para pensar de onde sai a grana que uns e outros usam para pagar resgate em sequestro, ou para mandar de bilhão pra fora do país?

- Está querendo me ofender?

- Nada, esquece. Vamos em frente: o que é mesmo que o senhor deseja de mim?

- Bem, o senhor terá que refazer a declaração, retirando as deduções que não preenchem os requisitos. A diferença de imposto não será grande, perto do que o senhor já pagou.

- Bem, “seu”...

- Fernando Gusmão.

- Pois é, seu Fernando, não vou mudar nada. Acreditei no presidente e declarei tudo, é tudo verdade. E declarei porque torço para que ele consiga melhorar a vida do povo – dessa gente sofrida como eu, que alguns desgraçados sempre teimam em prejudicar, das outras irmãs que não conheço, das outras crianças... Não, não vou mudar nada.

Ele fechou os papéis, encerrando o assunto. Disse:

- Doido ou não, o senhor irá receber um auto de infração. Agora retire-se.

Pois não é que o senhor fiscal irritou-se? Falou como se dissesse “Contra a força não há resistência”. Dei-lhe uma última oportunidade:

- Se eu fosse o senhor, “seu” Fernando, não ficaria me ameaçando...

- Pois o senhor vai receber o auto de infração, sim, sem prejuízo de outras sanções. Retire-se!

Ele não entendera a mensagem. Decerto por ansioso que eu saísse, para correr contar aos colegas que havia topado com um maluco. Deve ter rido muito depois.

Saí furioso, aquilo já estava me tirando do sério. Eu deveria ter deixado o maldito guarda-livros explicar direito lá atrás, antes de encher-lhe a boca de formigas.

Quando cheguei na sede telefonei e acertei o contrato para o “seu” Fernando, para matar um fiscalzinho eu tinha quem fizesse o serviço de graça. Ainda irritado acabei dando um tiro na perna do Japa, mandei-o encomendar um quilo de plásticos de Hong Kong e chegou dez, uma fortuna gasta sem necessidade.

Ontem entrei novamente no prédio, atendendo a quarta intimação. Ouvi outro cara pacientemente, sem reclamar, dizendo que o meu processo estava parado devido a uns problemas internos, e toda aquela conversa das vezes anteriores.

Apenas fiz questão de saber o seu nome completo. Desci pelas escadas. Enquanto decidia se o problema interno seria um acidente de carro ou uma queda nas escadas, examinei detidamente as estruturas do edifício. Se me mandarem mais uma intimação, não vou atender, tive uma ideia brilhante.

Chegou a quinta intimação. Mandei o Japa buscar no porão os nove quilos de explosivos plásticos que restaram.

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A ilustração é do Frank Maia.


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