Chapéu
na cabeça, sem amigos, novo na área, eu tava tomando pinga encostado no balcão
de um boteco-mercearia do bairro-favela Cafezal, em Belo Horizonte, lá por
1999, quando a mulher entrou, uns 29 ou 30 anos. Pediu ao alarife, que além de
ladrão era dono do boteco, duzentos gramas de couro de porco salgado. Ele pesou
os duzentos, se tirasse o sal daria cem, e olha lá.
Até
ali, pelo pouco que eu sabia, mineiro gostava mesmo era de pé: pé de galinha,
pé de porco, pé de diabo, pé de tudo, exceto pé de boi, mas arrisquei:
-
Desculpe a curiosidade, mas vai fazer feijão, moça? - Adoro couro no feijão.
-
Vou sim, moço - e abriu um sorriso.
Gostei.
Ela comprou mais umas coisinhas e saiu. Da porta, já do lado de fora, se voltou
rapidamente, sem insistência, e me sorriu de novo. Nada de frescuras, ela tinha
um olhar um tanto triste. Olhos grandes, verdes-água, como certas espanholas.
Larguei
o liso de pinga, disse já volto ao bandido detrás do balcão e saí batido.
Alcancei-a no meio da quadra.
-
Oi, tu aqui de novo, desculpe ter perguntado antes, mas é a primeira vez que
vejo mineiro fazer feijão com courinho.
-
Aqui é normal, uai, tu que não viu - e tornou a sorrir, agora um sorriso
alegre.
- Tu
bota uma folha de louro?
-
Boto, mas não tinha na mercearia.
Tirei
a carteira, abri e peguei:
-
Esta é uma folha seca de louro, era fresquinha quando a ganhei há muitos anos
de uma irmã, para mim é talismã, guardo com carinho na carteira, me protege,
peço que aceites.
-
Ai, tão importante pra ti, não precisa...
-
Insisto, por favor.
-
Muito obrigada, nunca vou esquecer o teu gesto.
- Me
dá aqui essa sacola, eu levo pra ti, vou pro mesmo lado - falei sem saber para
que lado ela iria.
Subimos
seis ruas, desviando pra lá e para cá.
Fomos
conversando trivialidades, até que a confiança se estabeleceu, nos entendemos. Ela tinha uma machucadura feia numa das orelhas, outra no ombro,
perguntei e me contou que o marido havia lhe dado com um martelo, ele tinha uma
fabriqueta de móveis. Tinha serras, lixas, martelos... Sempre chegava às onze
da noite irritado, carregando numa caixa de mão alguns instrumentos de
trabalho.
- Tu
tem filhos, pequena?
-
Dois pequenos, 3 e 4 anos, Bruno e Júlio.
- Também me chamo Bruno.
- Ai que amor. Eu sou Lucília.
A
cem metros da sua casinha parou, apontou onde morava lá adiante e se despediu
de mim, não convinha os vizinhos vê-la chegar acompanhada. Beijou-me na face, mas com respiração de desejar beijo na boca. Saiu com o rosto rubro, afogueado, sem olhar para trás.
Era
oito da noite. Voltei para o boteco. Tomei só mais dois lisos, concentrado.
Gostei da moça, uma coisa que nunca tinha me acontecido, talvez pelo seu jeito
de sorrir, sorriso que mesmo quando triste era lindo. Voz doce, amorosa, jamais
briguenta ou teimosa, e era bonita de corpo.
Às
dez e meia eu estava de volta àquela rua, no escuro, em espera ao marido
irritado. O instinto me disse que ele viria pelo outro lado.
Às
dez e quarenta e cinco ele levou três tiros, ficou estatelado no meio da rua
escura. A caixa se abriu com a queda, vi o martelo grande. Puxei o chapéu até o nariz e fui saindo de costas, enquanto a vizinhança acendia as luzes de casa. Fuguei-me, ninguém me viu.
No
dia seguinte eu estava no mesmo bolicho, como estaria lá ao anoitecer de muitos
dias, sabia que não demoraria, um dia ela voltaria comprar courinho de porco ou
outra coisa, muito mais alegre, e olharia para mim feliz, cúmplice.
*
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