D.
Julieta saiu fazer compras, fiquei sozinho com as suas vinte hóspedes do
cabaré, digo, da pensão. Ui, só muié e eu. Todo fresco ofereci música, com seu
Paulo Vanzolini na cabeça. Já paguei mais de vinte e cinco pra me livrar de
erros feios que cometi.
Tela
cheia, por favor.
Esse
lance do "lanceiro" me faz lembrar dos meus queridos punguistas de
Porto Alegre. Eu lá, de terno e gravata no Mercado Público, quem vejo? A turma
da cadeia, de Charqueadas e do Presídio Central, se fazendo de sonsos.
Olhava-os com ar de repreensão, em silêncio: "Tirei-os da cadeia, seus
putos, e estão doidos pra voltar", mas sabendo que a tigradinha não tinha
muita escolha, analfas de pai e mãe que eram. Aí eu saía do Mercado, tomar um
chope longe, pros lados do Gasômetro, quanto mais longe melhor.
Sabia que ao
menos seguiriam algo que lhes ensinei: "Não batam de pobre, se um dia
forem obrigados, no desespero, peguem cola-fina hijo de pápi, quem rouba de
ladrão tem cem anos de perdão". Sei que errei ao dizer isto, mas fiz,
assumo.
Sabia
que logo um iria trombar (comigo por perto não fariam, não eram doidos de
desrespeitar quem os visitava no Natal, Dia dos Pais, Ano Novo, etc, naquelas
pocilgas chamadas presídios), desequilibrando o sujeito, outro bateria a
carteira e a entregaria a um terceiro num gesto sorrateiro e rápido, este que
se sumiria na multidão. Se alguém se flagrasse da manobra e fosse atrás levaria
uma punhalada de um quarto. Que vida.
Claro
que eu tinha que me pelar pra entrar na prisão, revista. Mas dizia, rancoroso, pro
carcereiro da portaria: "Gostaria que fosse a tua mãe a me ver pelado,
moleque". Dizia baixinho, só pra ele ouvir. Reaja que te pego na rua outro
dia. Fingiam que não ouviam. Ora me revistar. Depois pararam com isso, se
quisesse entraria com metralhadora sob o bruxo, um sobretudão preto que uma
mulher me deu.
Querido
Dr. Marino De
Castro Outeiro: tu sabe como comecei a entrar em Presídio, lembra? Foi no
Central, quando o amigo me aconselhou e me ajudou a tentar tirar um neguinho lá
de dentro. Aí conheci o resto da meninada lá trancafiada, eles se revezavam no
convite pra ir lá, palestrar em dias tristes, Parodiando Jaime Caetano Braun,
começava assim: "Meus irmãos de território, sou o Sala das Missões, vim
aqui neste Dia da Criança para me acalmar, e se puder acalmar os corações dos
amigos, pois não tememos a vida e muito menos os ratos...", e lá ia
conversaiada pra moçada, invocando espíritos.
Hoje
já meio longe daqueles tempos, quase rio de uma bobagem que falei. Pedi pra
desligarem as poucas luzes que tinha, vamos ficar no escuro, quero um minuto de
silêncio, vamos fechar os olhos, que todos pensemos em nossos pais, mulheres,
namoradas, irmãos, filhos, enfim em todos que amamos, pedindo a Jesus que olhe
por eles, pois Jesus passou coisa pior do que hoje vocês passam aqui neste
lugar horrível. O Coió correu a desligar. Na penumbra fez-se um silêncio
comovente. Passado o minuto retomei a palavra: "Não devemos nunca esquecer
de respeitar nossos pais, respeitar os mais velhos...". Aí um moleque do
mezanino falou lá de cima: "Mas, Sala, bandido também fica velho, e
bandido sem-vergonha a gente não respeita". Dizer o quê? Respondi:
"Tu tem razão, meu fiinho, eu quis dizer aqueles que merecem
respeito", mas ele me pegou, sorri pro lado dos mais velhos, que já
estavam sorrindo para o meu lado também.
O
salão sujo, caindo aos pedaços, superlotado de moços com os olhos arregalados,
muitos se apertando ao alto no mezanino, eu sentado no chão no meio do salão
daquele horror, pernas cruzadas. Eles deixavam um parente de lado para me
levar, pois jamais entrei no inferno por mãos oficiais. Quando inverno entrava
de sobretudo, terno azul, camisa branca, gravata vermelha, mesmo na ala que os
guardas não entravam, não eram loucos, quem tem cu tem medo. Em novembros das
Crianças, sem sobretudo. Andei escrevendo isso em algum lugar. Dia destes crio
coragem e publico, a conversa é muito longa, as lágrimas são muitas, de ensopar
o pátio de tomar sol, ou chuva e frio em tristes invernos.
E
tem pessoas (?) querendo enfiar meninos de dezesseis lá dentro. Não, senhores
demos, não estou me achando. Como dizia o outro (salve, seu Martinho da Vila),
burgueses são vocês, eu não passo de um pobre coitado. Alguém aí, dos meus
adversários, lembra da cabecinha que tinha aos dezesseis? Dezesseis nada: dos
abobados que eram aos vinte e cinco anos? Alguns abobados até hoje, aos
sessenta.
Olhando
pra trás pela névoa do tempo vejo que fiz muito pouco, porque mais não podia.
Na
praça Clóvis
Minha carteira foi batida
Tinha vinte e cinco cruzeiros
E o teu retrato
vinte e cinco
Eu, francamente, achei barato
Pra me livrarem
Do meu atraso de vida
Eu já devia ter rasgado
E não podia
Esse retrato cujo olhar
Me maltratava e perseguia
Um dia veio o lanceiro
Naquele aperto da praça
vinte e cinco
Francamente foi de graça
Minha carteira foi batida
Tinha vinte e cinco cruzeiros
E o teu retrato
vinte e cinco
Eu, francamente, achei barato
Pra me livrarem
Do meu atraso de vida
Eu já devia ter rasgado
E não podia
Esse retrato cujo olhar
Me maltratava e perseguia
Um dia veio o lanceiro
Naquele aperto da praça
vinte e cinco
Francamente foi de graça
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