Do projeto de livro com título
provisório de "Meninos e meninas, eu vi.” Fragmentos de rascunhos em
tempos de horror.
Ficciones, cualquier similitud con la
realidad es pura casualidad.
CAPRICHO CIGANO
Já fiz tudo pra te dar / Vida mais
feliz, até já quis te dar um lar / Teus carinhos não são meus / És volúvel,
anda, parte, adeus.
(...)
Um dia na cidade o seu Evódio tocou “Só
para Você” para uns velhos boêmios excomungados pela sanguinária ditadura. Um
menino enfiado entre os velhos se animou e cantou uma parte do dobrado, ao
final o rapazinho com lágrimas nos olhos: "E eu fiz esta canção / Quando
digo ninguém crê / Não importa, meu amor / Ela é só para você".
"Dobrado" é o que diziam de canções assim, uma mistura de bolero,
rancheiritas, caboclos sertanejos, paraguaios e não sei mais não o que. Que
tempos aqueles. Lembro de muitas coisas. Na terrinha de onde fugi alguns
rapazes mais velhos, hoje encanecidos fascistas, diziam que em tempos idos
frequentavam a zona do meretrício, situada num morro afastado, uma subida que
começava lá embaixo perto da matança de bois, no tempo em que o gado era
enfiado no brete, levado a vara ou levando choques em fila indiana e morto a
marretadas na cabeça do matador num patamar acima ao final do corredor. Antigamente,
hoje é igual ou pior. Isso antes de a zona se mudar, pois depois soube-se que
desceu, misturando-se à cidade que sempre foi sua, pois era na Vila Brasília
que despejavam os seus verdadeiros eus. Grave erro dos habitantes da zona, que
mal ou bem lá viviam, era um bairro imenso, mortes só para eliminar gente
podre, intoleráveis na comunidade. Desceram e o bairro mudou de nome, devem ter
sido forçados por alguma prefeitura, pois a Cidade lá embaixo, ela sim era zona
de perigoso meretrício, traições muito piores que punhaladas ou garrafadas de
ciúmes, garrafa cheia é quase como uma martelada vinda de cima para matar boi.
Bom, eles, os mais velhos, dizem que
frequentavam a velha zona mas não lembram do boteco do Zé Careca, do bar do
Titio, dos cabarés das senhoras D. Stanislava – a Polaca e de D. Bastiana,
entre muitos famosos. Dos cabarezinhos menores nem sonham. Muito menos sonham
de aos 14 anos dançarem com uma dama de vermelho, ela com vestido com corte de
um lado, na penumbra da pista sem mais ninguém, madrugada alta, o cabaré quase
vazio, os quartos nos fundos só com dois, um deles era o gigolô de uma das
mulheres, dormiria lá. Os de boa família ladra, rica, fazendeiros e muitos
outros, mentem, metem, pagam e vão embora. Perversão, dependendo dobra,
triplica, até quintuplica o preço, se alguma topar, algumas eles pagando bem
ensinaram, começando aos poucos, uma coisa de cada vez até que ficavam
pervertidas, gostavam de agressão, de sentir dor, mais dor, gemiam pedindo mais
com velas pingando nos seios já cheios de queimaduras, de cigarros apagados nas
costas, nas nádegas e coisa pior. Logo tinham aquelas calcinhas de couro com um
enorme pênis de borracha e plástico, e metiam neles dizendo o que eles queriam
ouvir: “Abre bem a bundinha, cadelinha, vou meter tudo, diz que quer, diz
putinha, meu viadinho...”. Os donos de tudo das famílias de bem da ditadura lá
na cidade berravam “Quero, mete tudo!”. Como dizia um político asqueroso deles:
“Mulher tem que pagar para não deixar rabo, se não pagar a infeliz vai querer
amorzinho; pagando é uma troca, comércio”.
A moça de vermelho que antes olhava para
o menino, este meio escondido numa mesinha escura do canto, ao voltar lá dos
fundos olhou de novo e o rapazinho num ímpeto levantou-se e com um gesto a
convidou para dançar. Ela foi para a mesinha com ar de dó, como quem diz tu nem
deveria estar aqui, o que ainda está fazendo aqui? Sentou-se à frente, educada,
pagando a cerveja, estava com grana, cobrou em dobro de um fascista pregador de
moral que tinha idade para ser seu avô. Diálogos, silêncios, lágrimas, um
brinde.
Logo a mulher de 27 e o jovem de 14 anos
dançariam, quando as luzes multicolores da pista foram apagadas, o cabaré logo
fecharia, restou uma luzinha azul por alguma consideração, era o aviso da dona
lá dentro. O seu Evódio da Gaita, último dos músicos no pequenino palco, que
ultimava o trabalho de se mandar, homem que já conhecia de vista o menino,
abriu o acordeão: Capricho Cigano. A mulher levou o moço para a pista, ele
muito sério. Ela bailou sorridente, gentil e amorosa, no fundo também uma pobre
menina. Nada aconteceria, mas quem sabe um dia. Um dia que não tardaria tanto.
(...)
https://www.youtube.com/watch?v=4egGgVGUn34
https://youtu.be/WnBjAID7EFs
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