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Enfim, sábado de carnaval.
A Festa de Carnaval da Rua do Perdão, na Cidade Baixa, em Porto Alegre, daqui a pouquinho vai agitar a comunidade. A Festa foi criada em 1972, como uma manifestação popular contra a ditadura da milicada da época.
Ela foi interrompida entre os anos de 1985 e 2007. Sem os ridículos gorilas para provocar, a gente acabou indo um para cada lado.
Pela primeira vez, o evento será realizado na Rua da República, entre a José do Patrocínio e a João Alfredo. Teremos um palco em frente ao Teatro de Câmara Túlio Piva (saudades, Túlio!).
A novidade é a participação da minha banda, a DK, nome dado em contraposição à formidável Banda Saldanha Marinho, que era a "de lá", em amistosa rivalidade. Por alguma estranha razão, eu gostava mais das mulheres de lá, mas sem abrir das de cá. Eu menino de má e injusta fama, matando cachorro a grito, era injustiçado: as de lá, como as de cá, nem me olhavam. Snif. Na verdade era muito novinho.
A DK está parada há 22 anos. Hoje a festa rola a partir das 17 e até às 23 h, segundo o calendário oficial, mas a turma vai mais longe, conheço essa raça da boemia...
A última vez em que a DK saiu foi pela Saldanha Marinho. Explico: a DK havia cerrado as portas, e no ano seguinte muitos de nós nos infiltramos na "de lá", de fora da zoeira é que não iríamos ficar. Com a Saldanha, era para termos aberto o carnaval oficial na avenida, cedo da noite, a cambada de malucos deveria passar por lá às 20 h, quando o desfile ainda era ali pertinho, na Perimetral. Lá se fomos nós, homens de odaliscas, mulheres de terno preto e chapéu Bogart, pierrôs, os pirados e muitos ébrios do Vicente Celestino.
O carro-chefe (único) da banda da Saldanha era um auto velho caindo aos pedaços, do nosso presidente de honra, o jornalista Melchíades Stricher (saudades, Mel!) por sinal o autor do nosso "samba-enredo":
(refrão)
Nada pessoal
Vou te currar
neste carnaval
Com este teu jeitinho
Nesse fio dental
Com essa bundinha
e etecetera e tal
Que legal!
E toma refrão. Uma obra-prima, como os amigos podem notar. O pessoal da bateria e dos sopros (desde pistão até trombone e tuba) era uma junção de boêmios de todas as escolas de samba de Porto Alegre, negada, brancada, a DK até japa tinha, todos tinham que evoluir na avenida, mais tarde, mas nunca entendi como pudemos imaginar conseguir esse feito, abrir o carnaval, depois de horas zanzando pelo Menino Deus e pela Cidade Baixa, arrastando o povo ao passar. Com todos aqueles litros de pinga quente. Fora as geladas que pintavam pelo caminho, sem perder a marcação.
Lembrar do Mel... Fui admitido na confraria quando entrei no buteco que servia de concentração às 3 da tarde, de camisa do Inter, saia roxa e o salto dez da minha baixinha, já arrebentados pelos modestos 39/40, mas contra 35. A pequena de chapéu e dentro de um velho paletó todo fudido, rasgado, de ébria, com os pés boiando dentro do meu sapato preto de casamento.
Se não me engano o bar era na Av. Érico Veríssimo, esquina com a Marcílio Dias ou Botafogo. Entramos fugindo de um sol danado lá fora. Perguntei em voz alta, que saiu como eu não queria, emocionada, por eu ter sobrevivido até ali e pela coragem de entrar: "Como é que me inscrevo na Banda, meus irmãos". A tigrada me olhou e virou os olhos em direção a um velhote (o Mel) num canto, cercado de gente e em frente a um tonel de cachaça. Encheu um copão e respondeu: "Se tomar tudo, tá na irmandade, neguinho". Tomei. E este brancão ganhou muitos irmãos queridos.
Que hoje espero rever.
Bem, naquela última vez, 22 anos atrás, não abrimos o carnaval.
Às 8 da noite a maioria mal parava em pé, mas lá se fomos com o carango do Mel à frente, ele numa água dos diabos deitado sobre o capô, em pose sensual, todo lúbrico, com uma garrafa de Amansa Corno na mão. Nessas alturas éramos muitos, centenas, sonho com cinco mil, sei lá, pois a gente invadia os prédios na passagem e puxava o pessoal, com a vó e o vô junto, numa boa.
O carro quebrou para sempre duas quadras antes da Perimetral.
E chegou a hora, fui, à República, não perco por nada deste mundo.
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