viernes, 17 de abril de 2020

O TESTAMENTO

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Por hábito escrevo durante os afazeres domésticos. Escrevo na cuca, né. As tarefas como varrer e passar um pano na casa, cozinhar, lavar roupa no tanque, etc., faço no piloto automático, sem nenhuma concentração, de tantos anos que fui escravo consentido de mulheres não preciso pensar, apenas vou tocando, quando vejo está tudo limpinho no lugar certo. Hoje não sei o que me deu, talvez por pressionado pela situação lá fora e pelos dementes que nos governam: ali pelas quatro da madrugada, em meio à lavança de panelas sem querer comecei a “redigir” o meu Testamento. Depois de muitas palavras carinhosas e algumas repreensões indiretas a cada uma das descendentes, dei-me conta de que não tenho o que deixar, nenhum bem com valor de mercado, aí botei que fiz o melhor que pude, dei-lhes ensinamentos e boa escola, acrescentei alguns conselhos, controlando o tom para não fazê-las chorar no dia da leitura. Parei a lavação, quem estava chorando era eu. Lavei o rosto na torneira e acendi um cigarro, elas não estavam presentes para fazer cara feia pelo cigarro. Decidi que as testemunhas diante do tabelião seriam o Bruno e a Jezebel, tudo perfeito. Foi então que um mau pensamento me assaltou: será que existe herança negativa, os descendentes herdando as dívidas? Aqueles canalhas vivem mudando as leis para enriquecer ainda mais os banqueiros, vai que... Era só o que me faltava, se houver vou matar os credores antes de partir para outra. Suspendi os trabalhos e fui remexer no Código Civil, chamado de Novo embora seja de 2002, o meu é um grosso volume, comentado, de duas mil quatrocentas e tantas páginas. Remexi em tudo e não achei o livro, deixei para amanhã – que já é hoje, alguém deve ter pego. Voltei para terminar o serviço, a cozinha ainda era um campo de guerra. Com a cabeça quente dessa história de herança negativa esqueci uma das regras básicas de convivência, logo eu que morei em mil lugares: não se lava nem seca certas coisas de madrugada, muito menos meio levantado do chão, com cinco duplas de uísque na cabeça. Com os pratos correu tudo bem. Depois lavei e sequei direitinho muitos pirex, jarras e potes de vidro, empilhei de baixo para cima do maior para o menor, abracei tudo, uma pilha que vinha da cintura até o nariz, e estava levando para o móvel na sala ao lado onde são guardados, quando sem querer encostei no braço o cigarro que tinha pendurado na boca, queimou; instintivamente afastei rapidamente o braço e lá se foi tudo. A barulheira de vidros se espatifando deve ter sido ouvida em Marte. Logo vieram as vaias do prédio, acordei todo mundo. Alguns gritaram “corno”, “fiadaputa”, “viado”. Pensei em revidar mandando-os à puta que os pariu, talvez dar um tiro num, mas não, fiquei frio, devem andar nervosos também. Amanhã varro os cacos, pelo estouro deve ter caco até no banheiro. Hoje em dia é assim: não restam cacos de vidro grandes, e sim milhões de grãos, maldita tecnologia, e isso que discutem se vidro é líquido ou sólido, pisem numa bolinha daquelas pra ver. Servi mais uma dupla de uísque e fui para a sala grande. Botei um disco, sentei no sofá, cruzei as pernas e fiquei ouvindo o Johnny Alf, pensando que dia destes o inesperado haveria de me fazer uma surpresa. Foi quando tocou a campainha, olhei pelo buraquinho e vi a mulher do nono andar com uma garrafa de champanhe na mão.
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