miércoles, 7 de agosto de 2013

O boêmio no HPS

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Clóvis Baixo vinha bebendo Cuba Libre demais, para repulsa dos companheiros, que dizem preferir água sanitária do que a tal de Coca-Cola, que, como todos sabemos, é nitroglicerina pura. Há tempos andava com o nariz que parecia um pimentão. Segundo Chupim da Tristeza, quando o baixinho ia dobrar a esquina surgia uma bola vermelha dez minutos antes do corpo. 

Não deu outra: ontem o boêmio teve um derrame no pimentão. Ao explodir uma veia, explodiu metade do nariz, literalmente. E nada de parar a sangueira, a Virgínia precisou interná-lo - contra a vontade, obviamente - às pressas no Hospital de Pronto Socorro de Porto Alegre. Como dizia Mr. Hyde, o falecido médico da confraria: os caras do HPS não são bunda-moles como a maioria dos médicos, lá só tem bamba e o negócio é sem frescura, por habituados à carnificina diária que enfrentam. 

Na época Mr. Hyde foi acusado de corporativismo, por dizer "maioria" em vez de 99%. Verdade é que os caras são mesmo bons, como também são os enfermeiros e o pessoal de apoio. Luciano Peregrino recordou certa vez em que destruiu um automóvel: entrou no HPS com o rosto aos pedaços e os caras o salvaram. Saiu costurado como o frankenstein, mas vivo, tempos depois "uma plástica com um viado particular me devolveu a antiga beleza" - disse rindo. 

Aristarco de Serraria lembrou de sua filha, que aos oito anos esmigalhou os dedos da mão numa cadeira de madeira daquelas de dobrar, tipo de praia, e os caras tiveram de consertar sem anestesia. Hoje ela é uma moça com dedos perfeitos e lindos, graças à rapidez e talento dos de branco do HPS.

Nestes tempos em que muitos querem o escalpo dos médicos, é bom que lembremos dessas coisas, disse Jezebel. 

Lembremos desse 1%, corrigiu Gustavo Moscão.

Daí que ajeitaram o nariz num upa, mas determinaram internação por pelo menos dois dias, para acompanharem a evolução do narigolê. Lá ficou o Baixo, com três caras num quartinho do terceiro andar. Hoje pela manhã os companheiros foram visitá-lo. 

Complicaram-se na entrada, uma senhora (Gustavo Moscão disse outra coisa, mas deixemos por senhora) não queria permitir a entrada de todos ao mesmo tempo, etc, pulemos esta parte, tudo se resolveu graças à paciência e ao poder de convencimento da socióloga Jezebel do Cpers.

Entraram no quarto e ele lá em cima da cama, bem belo, contando a piada do padre de bicicleta para dois parceiros de sofrimento, um de perna quebrada e outro com um tiro no ombro. O outro interno choramingava na cama do canto oposto ao da janela. Depois das saudações de Ei, seu viadão e tal, ele contou o ocorrido, amaldiçoando a Coca e lamentando não ter seguido os conselhos dos amigos. 

Silvana Maresia condoeu-se do choraminguento do canto e perguntou o que ele tinha. Aí souberam que quando o Baixo entrou no quarto o cara se exclamava, chorava, de medo de morrer, havia a suspeita de que tivesse algo grave por dentro, aguardava o resultado dos exames. O da perna quebrada e o do tiro, já seus amigos do peito, contaram o restante.

Em frente ao HPS, como acontece em todos os hospitais, há uma ou mais funerárias. Os papa-defuntos ficam pelo entorno, à espreita. Da janela do quarto dá para se ver perfeitamente uma das funerárias na avenida Venâncio Aires (todos foram olhar). Daí que depois de duas horas de lamúrias o Baixo encheu o saco: conversou com o sujeito, com calma, instou-o a ter coragem, "seja home", tudo vai dar certo, a vida é só uma passagem, perguntou para que clube torcia e tal. Depois chamou-o à janela e disse: "Tá vendo aquele caixão que estão tirando agora, pelos papos que ouvi lá embaixo acho que é pra ti, mas mantenha a calma, Deus é grande, está te esperando no Céu...". Foi um estropício. E agora, quem é que convence o sujeito que foi brincadeira?

O Baixo argumentou que o cara mereceu, quem mandou ser gremista, além de chorão.

Por volta das onze da manhã retornaram. O Cícero do Pinho ficou no lugar do Clóvis na cama do hospital, para evitar perda de tempo com termo de responsa, pelas contas da turma não demoraria a chegar. Na hora de pedir um trago ao Portuga o baixinho, que não é bobo, pediu uma dupla pura de rum com uma rodela de limão, refrigerante nunca mais.

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martes, 6 de agosto de 2013

Como se derruba uma pauta

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Por Alberto Dines, no Observatório da Imprensa

“Este é um tema para ser levado a todas as famílias, é mais próximo de nós do que parece. A gente tem de sacudir a sociedade”, afirmou o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso à imprensa em Maio de 2011, antes da estreia do documentário Quebrando o tabu, no qual assume o comando de uma cruzada pela descriminalização da maconha.

O sociólogo foi ao Fantástico da TV Globo, deu entrevistas a rodo, foi ouvido pelos principais veículos, seu artigo no Globo e Estadão foi destacado. A provocação caiu no vazio tão logo deixou de ser novidade: uma sociedade organicamente conservadora e dogmática como a brasileira abre-se raramente, exceto quando mídia se arrisca a motivá-la para avanços.

Na quinta-feira (1/8), a Câmara dos Deputados do Uruguai aprovou um projeto do presidente José “Pepe” Mujica legalizando a produção, venda e consumo da cannabis no país. A votação foi apertada, a votação no Senado será mais confortável, preveem os analistas políticos.

No dia seguinte, apenas a Folha registrou a histórica decisão na primeira página, o Estadão chutou a notícia para uma página interna imaginando que confrontaria a pregação do papa Francisco contra os “mercadores da morte”. Errou: o alvo do governo uruguaio é o mesmo do pontífice – acabar com o narcotráfico. Só não aposta na repressão como recurso único.

Alternativas à mostra

O Globo tentou desmoralizar a iniciativa juntando ao fato o factoide de que o país vizinho pretende partir para o controle do consumo do álcool. O Uruguai tem o maior índice per capita de consumo de uísque, aparentemente superior ao da Escócia, o governo prefere trocar uma bebida importada com altíssimo teor alcoólico (entre 40 e 50%) por outra, nacional, muito menos tóxica e até recomendada por médicos quando usada com moderação. O vinho uruguaio, tal como o argentino e chileno, é um dos mais apreciados pelos conhecedores. Mujica jamais prejudicaria os vinicultores, são agricultores como ele.

A despenalização da erva no Uruguai não estimulará o seu consumo. O cadastro de usuários a ser implantado certamente irá desencorajar o uso ostensivo e abusivo. No médio prazo, o país tem todas as condições de enfraquecer o crime organizado.

Nenhum dos grandes jornais ouviu o ex-presidente FHC, hoje reconhecido internacionalmente. O Estadão preferiu entrevistar o ex-presidente Julio Maria Sanguinetti, conservador, evidentemente contrário a qualquer proposta do visionário e pragmático socialista “Pepe” Mujica.

O temor de confrontar as lideranças católicas recentemente revigoradas pela visita papal foi maior do que a vontade de favorecer a corajosa iniciativa de FHC que, em 1985, perdeu a eleição para a prefeitura paulistana porque se espalhou solertemente que era ateu.

O assunto evaporou, o projeto uruguaio foi engavetado por nossa mídia. O debate poderia render, sobretudo em tempos de mudança e véspera de nova temporada eleitoral. O modelo uruguaio dificilmente seria transplantado para o Brasil: o país é pequeno, altamente instruído e com um grau de corrupção muito inferior ao nosso. Mas a experiência pode suscitar alternativas. Acontece que neste início de agosto, o Espírito de Junho foi para as calendas. A sociedade não foi sacudida como pretendia FHC.

Oremos para que os Ninja produzam este milagre.

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Ilustração: imagem da Internet (não consta do original)

Muralha Negra do Black Bloc, n'A Charge do Dias

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Bruno Contralouco chegou de mala ao botequim, direto do aeroporto, feliz da vida. O pessoal respirou aliviado pelo seu retorno são e salvo do Rio de Janeiro, com gaze na mão esquerda. E com um saldo de cinco meganhas quebrados, foi o que disse ao entrar.

- Voltei bonito, mas aleijei cinco! Baixa uma cerveja, Terguino!

Correu em direção ao Gustavo e ficaram de cochichos e tapas de cumprimentos. 

O Contra seguiu alegre de mesa em mesa.

- Uma vergonha, só cinco..., disse Gustavo Moscão à boca pequena para a sua mulher ao voltar para a mesa. A Jussara engoliu em seco, quietinha da silva. O Gustavo, ex-boxeador e um dos cinco que enche a mão do Contralouco em amizade de dar a vida, queria ter ido junto ao Rio, mas ela não deixou. Ficou doente, e algo lhe atormentava desde então, sentia que o Gustavo pressentiu a falsidade, um dia ele lhe jogaria no rosto: impedir-me de viver a minha vida? Minha! Ora vai proteger o teu pai, que te lavou a bunda e tu nunca telefona nem no aniversário.

O boêmio de copo na mão seguiu contando pra todo mundo que lhe abraçava sobre a gata que ganhou no Rio de Janeiro. "É mineira, muito gostosa, mora na Nossa Senhora de Copa, até guardou um troféu pra mim". Que troféu, alguns perguntavam ansiosos, ele dizia um taco de armar, ganhei na sinuca. Somente aos amigos falaria a verdade. 

Já de volta, sentado com os companheiros à mesa da janela do bar, crivado de perguntas, o ídolo da meninada respondeu algumas e anunciou, sussurrando:

- Achei meu canto! Decidi engrossar as fileiras do Black Bloc. E se eu não der uma mão o negócio não vai. Fechou todas.

Todos dobrados sobre as duas mesas, para se aproximarem, falando baixinho.

- Como assim? - perguntou a profa Jezebel do Cpers, a Idosa, passando rapidamente os olhos pelos demais companheiros, ares de ai-ai-ai.

- Sshhh... Bah, gostei que os caras querem a caveira dos bancos, mas ficam só atirando tijolinho, quebrando vidracinha... isso não adianta nada. Como tenho bronca com aqueles larápios do cor de laranja, vou encarar, já providenciei a roupa e o capuz pretos, eu não irei de toalha na cabeça, vai ser capuz, que nem polícia, mas o meu até o nariz.

- Pera, como é mesmo? Encarar o quê, perguntou Carlinhos Adeva, que estava levando um lero com um pedinte à janela.

- Pssi... Já falei de chegada, porra, os caras tem bronca com banco.

- Conta de novo, por favor, Contra, perdi...

- Ora, fiz amizade com os malucos quando salvei um desgarrado que os bandidos tinham cercado lá perto da Assembleia. O carinha valente pacas, se defendia e tentava revidar, mas eram oito contra um, covardia, e baixando o cassetete. Vi sangue no carioca. Pareciam os bandidos americanos de filme, tudo de preto e tapados de munições e o caralho. Eu só ia passando, gente, pensando em comer uma mulher na Cinelândia, chope nos barzinhos antigos e tal, depois samba na Lapa, não tive culpa, vocês me conhecem. Mas vi aquilo e me apavorei da maldade, os caras da PM são maus, dão pra matar, vi a judiaria e me deu uma coisa, quando me toquei tinha entrado rasgando, acabei com eles, ainda levei um escudo de lembrança. Como os carinhas odeiam banco, tou nessa, entendeu, vamos nessa?

Silêncio. Todos abaixados quase em cima da mesa. Aristarco ponderou, com naturalidade, ciente de que o amigo é chegado num foguinho:

- Entendo. Bronca com banco todos temos, mas daí a incendiar as agências de ladroagem vai uma distância...

- E quem falou em incendiar? Molotov já era. Tava pensando em dinamite - disse o Contra.

Gustavo Moscão e Clóvis Baixo esfregaram as mãos por baixo da mesa.

- Não adianta. Pode explodir tudo que eles mandam os seus empregados, quer dizer, presidente, governador, polícia, e prendem todo mundo, e fazem tudo de novo. Os danos o seguro paga... - murmurou Carlinhos Adeva.

Fingindo irritação, o Contra respondeu:

- Advogado é tudo cagado, bom de livrar sonegador e criminoso rico, sai fora, Carlos, vai à merda. 

E se foi de novo para a sinuca.

Passaram a confabular, enquanto ouviam a voz do Contra lá do fundo, "Peguei o cara na ida de braço erguido, ele pensou que eu ia meter a canhota e meti o pé direito nos ovos, voou...". 



O Contralouco voltou e distraiu-se discutindo o seu aperitivo com o Portuga (pediu underberg puro e o lusitano estranhou, aí ficaram discorrrendo sobre as propriedades medicinais do trago) e Carlinhos prosseguiu:

- A companhia de seguros é deles mesmos... e o grosso da indenização quem paga é o resseguro, dividem o risco, de quebra ainda recuperam com a retrocessão, não vai nem arranhar seus lucros exorbitantes.

- Como, retrosseguro? - Perguntou o Contra.

- O seguro paga os danos... -, encurtou Carlinhos.

- Mas que dano, pirou, Carlos? Não é dano, é dono. Tou pensando em explodir os donos, os banqueiros!

O Portuga se benzeu lá atrás do balcão.

- De noite vou procurar os Blocs daqui de Porto Alegre, semana que vem estarei em São Paulo - disse o futuro novo membro. Gustavo Moscão sussurrou algo em seu ouvido e Jussara o olhou feio.

- Acho que aqui não vão te aceitar... - sugeriu Jussara.

- Podem esperar, ainda vão ler no jornal sobre o muralha negra à frente do bloco... - disse com os olhos brilhando.

A um gesto de Jezebel a turma decidiu mudar de saco para mala, não convém contrariar, logo passa, se não se tocar mais no assunto talvez ele esqueça.

A meninadinha que brincava na calçada à janela do bar ouviu parte dos diálogos, logo tentaram iniciar uma nova brincadeira. Banqueiro não sabiam o que era, mas todos queriam ser o Muralha Negra. O brinquedo não saiu por falta de meganhas.

Começaram a eleição das obras do dia. Ficaram com:

Cau Gomez.



Tchó. Aqui Tigran Gdanski disse que o certo era dinamitar o Sírio Libanês. Todos concordaram, aproveitando-se de que o Contralouco tinha ido ao banheiro. Esqueceram o ouvido fino do Contra, de lá do banheiro vem a voz: - Já pensei nisso!




Fausto. Aqui foi Ain Cruz Alta quem disse que também seria bom decapitar os marqueteiros. Wilson Schu acrescentou: E quem os contrata. Leilinha riu: Mas como estão violentos hoje!




Lorildo de Guajuviras, chegado ao final das escolhas, mereceu uma a solas, por andar há muitos dias sumido. Ficou com o William.



A coordenadora Leila abraçou ao Newton Silva. Eta guria porreta.



A coluna A Charge do Dias leva esse título pelo seu idealizador, o mestre Adolfo Dias Savchenko, que um belo dia se mandou para a Argentina, onde vive muito bem. Sucedeu-o na coordenação a jovem Leila Ferro, filha do Terguino, quando os boêmios amarelaram na hora de assumir o encargo. Antes eram dois butecos, o Beco do Oitavo e o Botequim do Terguino, que.., bem..., se fundiram  no ano passado (veja AQUI), face a dívidas com o sistema agiotário. O novo bar manteve o nome de um dos butecos: por sorteio ficou Botequim do Terguino, agora propriedade dos ex-endividados António Portuga e Terguino Ferro.

lunes, 5 de agosto de 2013

Corrupção, que alívio...

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Por Janio de Freitas, na Folha


A revelação, feita pela Siemens, de um cartel de empresas para corrupção em serviços na obra do metrô paulistano, traz, além de outros possíveis sentimentos, um alívio para muitos. São as pessoas entre as quais é recorrente, há tantos anos, a referência à corrupção nessa obra - sem sequer vislumbre de denúncia ou de investigação dos que deveriam fazê-las.

Vem de longe. Do começo. No remoto e mal esquecido governo de Orestes Quércia, tive uma experiência paralela de como as coisas se passavam e continuaram a ser.

Muito feliz com o que o metrô em São Paulo proporcionava, Quércia quis fazer mais um, este na Campinas de suas origens. À época administrada pelo braço direito de Lula no PT e no sindicalismo, Jacob Bittar, e nem por isso Quércia teve problema. Um acordo resolveu o conveniente. As condições para a obra é que se mostraram problemáticas. Em termos, porque logo foi sugerida a solução do metrô de superfície - de qualquer modo, uma boa obra nos sentidos mais interessantes.

Feita a alegada licitação, a Folha demonstrou a publicação antecipada do seu resultado. Quércia negou o conluio, claro, e ironizou o anúncio classificado com a antecipação. Viria então a ser exibido, pelo governo e pela empreiteira dada como vencedora, um anúncio publicado na própria Folha, com o nome de outra empreiteira, como comprovação de que publiquei diferentes resultados.

Ocorreu-me que talvez houvesse ainda a papeleta de entrada desse anúncio, onde o responsável tivesse deixado alguma indicação sua. A ajuda de meu colega (e amigo) Leão Serva, então na Folha, foi preciosa. Conseguiu encontrar a papeleta. Nela, um nome e telefone.

Demorei muito até conseguir que atendessem a uma das ligações. É que o sujeito do nome e seus companheiros estavam ocupados. Era trabalhador de uma obra. Da empreiteira Mendes Jr.. A mesma que vencera a alegada licitação. A contrarrevelação estava desmoralizada.

Os fatos foram noticiados em pormenores pela Folha. Nenhuma dúvida de pé. Passamos a esperar, apenas, o inquérito, e a consequente anulação da obra, pelo Ministério Público de São Paulo. Os que sobrevivemos ainda, estamos esperando até hoje.

Lula disse à Folha, dias depois, em defesa de Jacob Bittar, que a publicação da fraude "foi feita para prejudicar eleitoralmente o PT". Jacob Bittar não tardou muito a dar as costas a Lula e ao PT, e aderir integral e explicitamente a Quércia, bandeando-se para o PDT. Fui processado por Orestes Quércia, que perdeu em quantas instâncias judiciais desejou.

Toninho Costa Santos, então vice-prefeito petista, foi dado por muitos dos envolvidos, e por muitos outros, como origem da revelação de fraude. Mais tarde eleito prefeito, foi assassinado, sem que a polícia paulista fosse capaz, ou por algum outro motivo, de dizer algo convincente sobre autor ou mandante do crime. Às vezes me ocorre a suspeita de que o íntegro Toninho começou a morrer na época daquela fraude, quando muitos passaram a vê-lo como incorruptível, e portanto perigoso, na sua carreira de ético entre interesses e interessados de todos os tipos. 

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domingo, 4 de agosto de 2013

O agricultor panssexual, n'A Charge do Dias

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De passagem pelo Botequim, o boêmio Patinho, vindo da bela praia de Garopaba, que o Contralouco chama de Garopiçaba, vá entender. Amanhã segue viagem, vai de muda para o Uruguay, pretende ser agricultor. Na verdade o cognome do empinante é André do Sapato Velho, que logo se tornou Sapatinho e por fim Patinho para os íntimos. Diz-se panssexual, na mala carrega seu grande amor, uma boneca inflável. O bicho é lombo de sem-vergonha, começa pelo vinho, luz de velas e vai contando até chegar às preliminares com a dama de plástico. As mulheres morrem de rir, mas os amigos têm lá suas dúvidas de que seja brincadeira. Vai um abraço da turma desta palafita ao Patinho. Na primeira colheita vê se nos manda uma porção da erva perfumada, o nosso haitiano Aristide Neptune é chegadinho e vive reclamando que aqui os caras misturam esterco de vaca.

O churrasco vai andando no meio da rua, sob os cuidados de Clóvis Baixo. Leilinha enviou as obras que escolheram pela manhã, antes da marvada pinga pegar. Dá uma vontade de meter a colher, comentando cada uma, mas como é domingo não vamos insultar a inteligência dos trilhões de leitores. Ficaram com:

Mário.


Sponholz.


Nani.



A gatinha do PSOL, miss Leila Ferro, não perdoa. Com o Genildo.



O Patinho, como sempre ocorre com os visitantes, foi premiado com o direito a uma escolha. Ficou com o Jorge Braga.



A coluna A Charge do Dias leva esse título pelo seu idealizador, o mestre Adolfo Dias Savchenko, que um belo dia se mandou para a Argentina, onde vive muito bem. Sucedeu-o na coordenação a jovem Leila Ferro, filha do Terguino, quando os boêmios amarelaram na hora de assumir o encargo. Antes eram dois butecos, o Beco do Oitavo e o Botequim do Terguino, que.., bem..., se fundiram  no ano passado (veja AQUI), face a dívidas com o sistema agiotário. O novo bar manteve o nome de um dos butecos: por sorteio ficou Botequim do Terguino, agora propriedade dos ex-endividados António Portuga e Terguino Ferro.

viernes, 2 de agosto de 2013

A invasão do Uruguai, n'A Charge do Dias

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Caros amigos, deste lado do notibuc, eu, Luciano Peregrino, a dedografar estas mal traçadas. O titular do espaço neste momento está dentro de um teco-teco, retornando de Gatumba. Serei breve, pois o único com direito adquirido de dizer bobagens neste blog é o viajante, que volta e meia se enfia no distante Burundi, o pessoal do bar desconfia que porque é chegado na raça. Bem, quem não é? Porém parece pouco para ir tão longe, pois aqui mesmo temos cada negra, ui... Ou afrodescendenta, para alegrar a Dilma.

Como especialista em blog e notibuc a coordenadora da coluna, Srta. Leila Ferro, é quem dá as coordenadas, de outro modo eu jamais encontraria a entrada deste labirinto.

Tenho outra razão para ser breve, e não é por dispensar a agradável companhia dos trilhões de bebadonautas que lêem esta afamada publicação, e sim porque hoje acordei mal e assustado pelos dolorosos gemidos que ouvia, parecia uma alma penada se lamentando, dores, reclamos e arrependimentos. Seria o Sarney? Não pode, esse não se arrepende, é cultural. Tateei no escuro em busca do interruptor do criado mudo, derrubei uma garrafa, pelo barulho estava pela metade, mas não achei o treco de ligar o abajur. Parece frescura esse negócio de abajur, fazer o quê, tenho um mas não é lilás, não. Levantei e pisei na garrafa, quase me fui, e segui esbarrando em cadeiras que não tenho, um breu daqueles, até que achei uma janela, abri com dificuldade, ufa, a luz. Abri e me toquei: estava só num quarto estranho.

Tudo clareou: ontem me perdi nas contas após o churrasco no Botequim, bebi todas e caí nos braços de uma tianga na sinuca da rua João Alfredo, um mulherão, e mais não recordo. Parece que era ruiva, ou morena. Ela deve ter saído.

Até que o apê é ajeitadinho, nunca vi tanta boneca e almofada com cara de gato na vida. Em cima da mesa o bilhete em letras miudinhas, com desenhos de coração pelos lados: "Tiau, amor da minha vida, fui trabalhar, volto à tardinha. A geladeira tá cheia e tem mais vinho no armário. Eu tirei a tua roupa e te botei na cama, tu apagou no sofá, falando com alguma visagem, mas não se preocupe, à noite a gente recupera, tou bem doida". 

Vi a foto na parede e soube que é loira, feia a dar com um pau, rindo parece triste, um tantinho passada, faz a Betty Faria parecer uma menininha. Aí eu vi os gatos, cinco. Um mais lindo que o outro, juntos numa espécie de circo armado a um canto da sala. Disto falo outro dia.

Não importa, sou de bom coração, gostei dela e não quero nem saber, aliás, não quereria, se fosse encarar a madame, bêbado encara qualquer coisa, mas sou comprometido com a Luena, minha angolana volta no dia 15.

Meu Deus, o que foi que eu fiz? Tomei uma chuveirada e me mandei, lá embaixo soube pelo porteiro que havia caído num pombal no começo da Agronomia.

No lotação ouvi um cara dizer que o Uruguai fechou as suas fronteiras com o Brasil, com medo de que 50 milhões de brasileiros, um quarto da nossa população, emigrasse para lá. Para um país com 3,5 milhões de habitantes é compreensível a preocupação dos orientais. Algo a ver com uma lei. 

Cheguei no bar e aqui estou. Hoje nada de notícias do notibuc, a cabeça ainda me dói. Peço uma água mineral ao Terguino e vou logo despachando as charges que os companheiros escolheram. Ah, os gemidos vinham do meu fígado, reclamava do carburador ressequido, o covardão. Mais uma, antes de seguir: durante o churrasco de ontem o camarada Snowden foi lembrado, os empinantes em peso se regozijaram pelo herói ter escapado ao injusto destino de ser morto - assassínio com aparência legal -, nas mãos de Obama Darth Vader e seus cupinchas. Também Jezebel do Cpers disse algumas palavras: Ei, Mark Putenberg, vai tomar no cu! Jussara do Moscão, idem: Ei, Fortunati, vai tomar no cu! E veio Cabral, Alckmin, Tarso, sobrou para todo mundo. Pelas onze da noite desceram os vizinhos de uns dez apartamentos de cima, lá vem reclamação, pensou o Portuga, mas que nada, queriam era juntar-se à cantoria. Bem, foram até alta madrugada nesse tranco, à uma eu fui à caça e os deixei de alarido.

Com a obra do Nani entendi o papo do cara do lotação. O Cícero do Pinho deve estar arrumando as malas. O Contralouco segue no Rio de Janeiro, deve estar lamentando ter perdido o protesto em frente à casa do prefeito de Porto Alegre, outro que o trem não pega.



Amarildo.



Sponholz.



A coordenadora ficou com o Miguel. Essa guria sabe das coisas. Aqui a Plim-Plim vendida só diz que os terroristas do Império vão fazer e acontecer, ai "que medo". Mas eles sabem o que é entrar do Cáucaso para lá, como imaginam o que seria entrar no continente Brasil. Sair inteiro é outro papo, do Iraquezinho saíram correndo. Saigon, que venham.


A coluna A Charge do Dias leva esse título pelo seu idealizador, o mestre Adolfo Dias Savchenko, que um belo dia se mandou para a Argentina, onde vive muito bem. Sucedeu-o na coordenação a jovem Leila Ferro, filha do Terguino, quando os boêmios amarelaram na hora de assumir o encargo. Antes eram dois butecos, o Beco do Oitavo e o Botequim do Terguino, que.., bem..., se fundiram  no ano passado (veja AQUI), face a dívidas com o sistema agiotário. O novo bar manteve o nome de um dos butecos: por sorteio ficou Botequim do Terguino, agora propriedade dos ex-endividados António Portuga e Terguino Ferro.

Naná Vasconcelos faz 69!

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O multipercussionista e compositor Naná Vasconcelos (Juvenal de Holanda Vasconcelos, 2/8/1944, Recife, PE) hoje completa 69 anos. 69 é boommm, né, Naná?

Saúde!

Aqui com Virgínia Rodrigues, no Rival.




De montarias

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Quando vi, ele estava parado, me olhando firme. Meneou a cabeça - notei a estrela branca na testa - e escavou o chão. Pelos arreios, era argentino. Enroscadas no laço longo, as chilenas de prata.

Fogoso baio, com uma cola que me lembrou a cascata. O tempo parou: eu extasiado admirando o animal e ele esperando. Depois foi saindo, a passito. Lá adiante iniciou o galope e desapareceu por trás de um capão.

Eu, guri, de dentro do açude, com a água pelo peito, fiquei pregado olhando na direção por onde sumira, com a nítida impressão de que ele me convidara a montá-lo. Mas, que diabo - pensei -, como poderia sair pelado e montar num cavalo de sonhos como aquele? E o dono?

Mais tarde, já moço, me certifiquei deste meu jeito: para namorar, ela teria que me olhar espichado um milhão de vezes, e só a mim. Certos desafios não aceito nem passo a cerca de campo alheio.

Aconteceu novamente, quando já era fraca a lembrança do baio que se fora. Outro apareceu, descendo a trote a coxilha. Eu estava solito no campo, desatolando um boi. Desta vez não chegou a parar, mas passou devagarito, com a prata do basto brilhando ao sol. Pareceu-me um baio malo, interesseiro. Deixei-o ir-se, sem largar da lida, ignorando o convite insistente que sentia no ar.

Aí entendi que sou mesmo um gaudério difícil, seja por tímido, orgulhoso ou desconfiado: só monto quando quero, e não así no más. No dia seguinte recusei a proposta do patrão para assumir como capataz, apesar dos animais e da sua filha mais velha. Botei no ombro a minha mala de garupa e fui embora de a pé porque nem cavalo tinha.

Rodei mundo, de estância em estância, sem saber direito o que procurava. Sobrevivi e ganhei alguma fama, pelas mãos fortes, por não ter dono e por aporreado. E pela minha adaga.

Outros baios passaram, e eu quieto. Segui no rastro de algo... nem difícil, nem fácil, apenas... natural. Um dia tomei como amásia uma china desgarrada, que me disse ter sido perdida pelo filho do patrão. Custei a perceber que a história estava mal contada. 

Eu não compreendia o seu capricho pelo luzeiro da cidade, ela não entendia esta mania que tenho de não aceitar nada de mão-beijada. Um convívio de silêncios. Certa noite, ao retornar de uma tropeada, de longe divisei o rancho sem o lume do candeeiro. A escuridão levou a Laurinha.

E hoje, depois de camperear em muitas querências, sou posteiro no recanto mais longínquo de uma fazenda. Não conheço o dono, mas sei que é um político afamado. Um peão, de passagem, me disse que ele sabe quem eu sou, corre que teria perguntado: "Como vai o Melenas de Prata, que há anos está lá no fundo?". 

Deve me conhecer pouco, pois nesta semana, depois de três dias à cavalo para prestar contas, quando tudo já estava acertado, o seu capataz, com ares de dono, mandou alguém me dar um metro de fumo especial, amarelinho. Recusei. Ele primeiro achou graça, depois se fez de contrariado: "Mas então, seu, recusando presente do Dr. Souza, que é quem sustenta tudo aqui?". O homem queria morrer.

O Rengo Velho, que de muitas andanças me conhece, notou e se meteu: "Não ligue, seu Pedro, o senhor é novo aqui, ele é assim mesmo". O capataz ainda resmungou: "Bueno, se ele gosta de deixar o cavalo passar encilhado...".

Voltei sem dar adeus ao Rengo, para não ouvi-lo dizer de novo, manso, com a autoridade de velho, que das madrugadas que passamos eu não aproveitei o sereno. Assoleei o matungo, pensando num certo cavalo de prata, para mim que aproveitei a Lua.

E agora, aqui na frente do rancho de pau-a-pique, mateando e tragueando, remôo a vida gaviona. Será que fiz mal em não montar os baios fáceis, contrariando a idéia de todos? A Laurinha estava certa? O capataz de botas lustradas está certo? Não, não se monta um cavalo encilhado só porque está passando, para não se tornar propriedade do dono dele.

A mim, estar a solas na imensa noite do pampa é o bastante. Gosto assim, de ver a Lua sumir por detrás das nuvens. O sereno meu chapéu apara. Acho que entendo... Oigalê! Deus meu.

De pronto e calmo, resolvo que não vou mais descer as escarpas, onde há muitos anos tento laçar, em vão, o baio de infinita prata, que cavalga bravio e livre pelas campinas. Não devo, não é... natural. Ele jamais aceitaria ser domado, eu teria  que matá-lo.

Somos iguais.





jueves, 1 de agosto de 2013

Ei, Cabral, vai tomar no cu!, n'A Charge do Dias

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Depois daquele frio de renguear cusco, hoje um calor de 35 graus em Porto Alegre. Haverá churrasco no botequim logo mais, obviamente. Novidades poucas. O Botequim inteiro aderiu à tentativa de derrubada do governador carioca, ontem foram até a madrugada acompanhando os acampados em frente à casa do indivíduo, no rico Leblon, pelo notibuc de Luciano Peregrino, ligadão na mídia Ninja.

- Quanto mais otário, mais o cara é prepotente, é o caso desse Cabral Gardanapo, agora se fingindo de humilde -, disse Carlinhos Adeva.

- Babaca e riquinho prepotente sempre foi, mas falastrão acho que aprendeu com o Lulaluf, eles se merecem - acrescentou Jucão da Maresia.

Enfim, cada um teve lá suas palavras de admiração pelo parisiense deslumbrado.

Vibravam com os refrões da moçada: Ei, Cabral, cadê o Amarildo? Ei, Cabral, vai tomar no cu!, e outros um tantinho mais picantes. O Contralouco ligou de madrugada para o Aristarco, a turma silenciou enquanto falavam. Contou que havia participado da confusão da Cinelândia e que bateu em três meganhas, pelo que mereceu o desprezo dos boêmios, quando souberam: 

- Só três? O Contra não é mais o mesmo - disse Clóvis Baixo, expressando o pensamento dos demais. 

Aristarco deu uma aliviada: 

- Touro em terra estranha é vaca, vamos dar um tempo, deixa ele se entrosar mais um pouco. 

No momento em que ligou falou que estava num bar e levava um lero de futuro com uma gata de Botafogo.

Voltemos à Portinho, os palavrões que saem lá no Leblon são de corar puta velha. 

O churrasqueiro hoje será Wilson Schu, avisou que será só de costela, nada de linguiça para encher. Agora estão em mesas da calçada, bebericando e olhando a passagem das comerciárias. É o passatempo predileto do pessoal, ficar de papo para o ar, olhando o desfile e comentando as bundas das moças, por vezes com expressões que geram protestos indignados das boêmias Jezebel, Ain, Silvana e Zilá. Jussara só ri.

As obras do dia já estão escolhidas. Aí vão:

Bruno.



Newton Silva.



Fausto. Denominaram a obra, à revelia do autor, de "A Dilma está dando para os políticos".



Miss Leilinha Ferro anda furiosa com o governo. Do alto dos seus 19 anos resumiu: "Todo dia uma proposta besta, para no outro dia dar para trás, parece que lá só tem moleque. Com certas categorias eles baixam as calças rapidinho, quero mais que esses médicos se fusfuguem". Parece não, Leila. Ela ficou com o Sinfrônio.



A coluna A Charge do Dias leva esse título pelo seu idealizador, o mestre Adolfo Dias Savchenko, que um belo dia se mandou para a Argentina, onde vive muito bem. Sucedeu-o na coordenação a jovem Leila Ferro, filha do Terguino, quando os boêmios amarelaram na hora de assumir o encargo. Antes eram dois butecos, o Beco do Oitavo e o Botequim do Terguino, que.., bem..., se fundiram  no ano passado (veja AQUI), face a dívidas com o sistema agiotário. O novo bar manteve o nome de um dos butecos: por sorteio ficou Botequim do Terguino, agora propriedade dos ex-endividados António Portuga e Terguino Ferro.

Amarildo, presente!

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Por Anne Vigna, para a Agência Pública


Não é preciso passar muito tempo junto à família de Amarildo para entender que a UPP da Rocinha se envolveu em um problema bem grande. Amarildo não é uma pessoa que poderia desaparecer sem que sua família perguntasse por ele, não é o pai de quem os filhos esqueceriam facilmente, não é o sobrinho, tio, primo, irmão, marido por quem ninguém perguntaria: onde está Amarildo? 

Neste pedaço bem pobre da Rocinha, onde nasceu, cresceu, viveu e desapareceu Amarildo, “muitos são de nossa família”, diz Arildo, seu irmão mais velho, apontando os quatro lados da casa. Em uma caminhada pela comunidade na companhia de um sobrinho de Amarildo, a repórter da Pública conheceu algumas primas, depois umas sobrinhas, tomou um café com as tias lá em cima, de onde desceu acompanhada de irmãos e filhos de Amarildo. De todos ouviu a descrição de Amarildo como “um cara do bem” que, por desgraça, tornou-se famoso – e não por sua característica mais marcante, o bom coração. 

As casas são ligadas por escadas antigas, feitas possivelmente por seus avós que vieram da zona rural de Petrópolis para o Rio com os três filhos ainda bem pequenos. “A Rocinha nessa época ainda era mato e poucas casas de madeira, uns barracos como se diz, e nada mais”, diz Eunice, irmã mais velha de Amarildo. 

A curiosidade da repórter sobre o passado da família é o suficente par que ela pegue o telefone, para ligar para uma tia avó, “a única que pode saber alguma coisa sobre a história é ela”, diz. A tia-avó, que também vive na Rocinha, confirma por telefone o que Eunice já sabia: a “tataravó era escrava, possivelmente em uma fazenda de Petrópolis, mas não se sabe mais do que isso”. 

Eunice diz ter retomado as origens familiares ao fazer de sua casa um centro de Umbanda. É aqui, na parte debaixo da casa, a mais silenciosa, que ela recebe as pessoas que querem saber de seu irmão. “Temos a mesma mãe, mas nosso pai não é o mesmo. Minha mãe gostava de variar”, comenta, rindo. 

Ali, na casa construída por ela, moram pelo menos 10 pessoas, entre crianças e adultos. Na cozinha, as panelas são grandes como numerosas são as bocas. No primeiro quarto, três mulheres comem sentadas na cama. Em outro quarto, duas sobrinhas estão em frente ao computador, trabalhando na página do Facebook feita para Amarildo, seguindo os cartazes virtuais de “onde está Amarildo?” que vêm de várias partes do país. 

Entre onze irmãos 

A mãe de Amarildo teve 12 filhos e trabalhou muito tempo como empregada doméstica na casa de uma atriz famosa do bairro do Leblon. “Essa atriz quis adotar um de nós mas a minha mãe nunca quis”, lembra o irmão Arildo, 3 anos mais velho do que ele. Sobre o pai de ambos, não se sabe onde nasceu, apenas que era pescador, com barco na Praça XV, no centro do Rio, onde conheceu a sua esposa. Os netos não se lembram como nem quando, mas ele se acidentou em um naufrágio e acabou morrendo em consequência de um ferimento na perna. Amarildo tinha um ano e meio. Mas, adulto, Amarildo, tinha paixão pela pesca. “Era a única coisa que ele fazia na vida, quando não estava trabalhando ou nos ajudando: ia pescar sozinho ou com um primo nas rochas de Sao Conrado. Voltava com muitos peixes”, conta orgulhoso, Anderson, o mais velho dos seus seis filhos. 

As varas de pescar de bambu, que ele mesmo fazia, estão encostadas em casa desde o dia 14 de julho, um domingo, quando os policias da Unidade de Polícia Pacificadora da Rocinha o levaram “para verificação”. Ele tinha acabado de limpar os peixes trazidos do mar e Bete, apelido de Elizabete, sua esposa há mais de 20 años, esperou que ele voltasse da UPP para fritar os peixes “como tantos domingos”, ela conta, o olhar perdido. Foram 20 anos de união, seis filhos, a vida dividida em um único cômodo que servia de dormitório, cozinha e sala. 

Semanas após o desaparecimento do marido, Bete se esforça para conseguir contar como conheceu o “meu homem”, ela diz, evocando a lembrança do jovem que se sentou ao lado dela em um banco em Ipanema: “Eu não saía muito desde que cheguei de Natal (Rio Grande do Norte) para trabalhar como empregada em uma família. No domingo, ia caminhar um pouco no bairro. Ele veio conversar comigo, nos conhecemos, e ele me trouxe para a casa de sua mãe aqui na Rocinha. Nunca mais saí”, conta. 

Bete trouxe os dois filhos que vieram com ela do Nordeste sem criar problema com Amarildo. “Ele adora crianças”, ela diz. O que as duas menorzinhas da família confirmam: “É o tio Amarildo que nos leva para a praia de de Sao Conrado, ele que nos ensinou a nadar”. Ela apenas sorri, sempre fumando, e sem disfarçar a tristeza conta que está preocupada com a filha mais nova, de 5 anos. “Ela sempre estava com o pai”, suspira. No começo, Bete lhe disse que o pai tinha ido viajar e que, por hora, ele não voltaria. A pequena conserva a esperança de filha que sempre acreditou nas palavras do pai, e ele lhe prometeu um bolo grande no próximo aniversário.

“Era um menino e pulou no fogo” 

Aos 11 anos, Amarildo se tornou o heroi da comunidade ao se meter em um barraco em chamas para salvar o sobrinho de 4 anos. “Era um menino, e pulou no fogo. Me salvou e também tentou salvar a minha irmã, que tinha 8 anos. Não conseguiu tirá-la de lá, ela morreu, e eu fiquei meses no hospital”, lembra Robinho, hoje com 34 anos, a pele marcada pelas cicatrizes desta noite de incêndio. 

Aqui, Amarildo é conhecido por todos como “Boi”, por ser um homem forte que carregava as pessoas que precisavam de socorro para descer as escadas e chegar com urgência a um hospital. “Uns dias antes de desaparecer, ele carregou no colo uma vizinha, e a salvou. É uma ótima pessoa, sempre ajudava os outros – numa emergência ou numa mudança”, conta a cunhada Simone, sem conter as lágrimas. “Eu tenho muita saudade dele, principalmente do seu sorriso. Meu marido não fala nada, mas eu o conheço, está com muita raiva. Na primeira noite, ficou debruçado na janela a noite toda, esperando o irmão voltar”, diz, emocionada. Toda a família está com raiva. E dessa vez ninguém quer ficar quieto, mesmo sabendo dos riscos da denúncia. Vários familiares foram ameaçados por policiais. “Por que foram atrás dele? Estamos voltando à ditadura?”, pergunta a prima, Michelle. “Ele trabalhou toda a vida, quando não trabalhava, nos ajudava, ou ia pescar para a sua família. Ninca se meteu com ninguém”, comenta, revoltada.

Boi era pedreiro havia 30 anos e ganhava meio salário mínimo por mês. “Por isso, às vezes carregava sacos de areia aos sábados para ganhar um pouco mais”, comenta Anderson, mostrando os tijolos que o pai comprou com o dinheiro extra para fazer um puxadinho no segundo andar na casa: “Na verdade, ele ia ter que voltar a fazer a fundação aqui de casa porque está caindo, eu e meu irmão íamos ajudar”, detalha. 

“Ele era meu pai, irmão, amigo, era tudo para mim”, diz, escondendo as lágrimas quando chega a irmã mais nova, de 13 anos. 

Os familiares vivem em suspense, à espera das notícias que não chegam. Não desistem: organizam-se como podem com vizinhos, amigos e outras vítimas da polícia. Negaram uma oferta do governo do Estado do Rio de Janeiropara entrar no programa de proteção à testemunha. Preferiram continuar na Rocinha, sua comunidade. Na próxima quinta-feira, dia 1 de agosto, farão mais uma manifestação na Rocinha, onde estarão presentes familiares de outros desaparecidos por obra de outros policiais em outras favelas. “Temos que lutar para que essa impunidade não continue. Queremos justiça por Amarildo e para todos nós que convivemos agora com essa polícia”, revolta-se a sobrinha Erika. 

Aos 43 anos, Amarildo desapareceu sem que a família tenha direito sequer a uma explicação oficial, como tantos outros de tantas favelas brasileiras vítimas de violência policial. Mas dessa vez, ninguém vai se calar. 

Onde está Amarildo?

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Como levaram Amarildo 

A Operação Paz Armada, que mobilizou 300 policiais, entrou na Rocinha nos dias 13 e 14 de julho para prender suspeitos sem passagem pela polícia depois de um arrastão ocorrido nas proximidades da favela. Segundo a polícia, 30 pessoas foram presas, entre elas Amarildo. Segundo uma testemunha contou à reporter Elenilce Bottari, do Globo, ele foi levado por volta das 20 horas do dia 14, portando todos os seus documentos: “Ele estava na porta da birosca, já indo para casa, quando os policiais chegaram. O Cara de Macaco (como é conhecido um dos policiais da UPP) meteu a mão no bolso dele. 

Ele reclamou e mostrou os documentos. O policial fingiu que ia checar pelo rádio, mas quase que imediatamente se virou para ele e disse que o Boi tinha que ir com eles”, disse a testemunha. 

Assim que soube, Bete foi à base da UPP no Parque Ecológico e chegou a ver o marido lá dentro. “Ele me olhou e disse que o policial estava com os documentos dele. Então eles disseram que já, já ele retornaria para casa e que não era para a gente esperar lá. Fomos para casa e esperamos a noite inteira. Depois, meu filho procurou o comandante, que disse que Amarildo já tinha sido liberado, mas que não dava para ver nas imagens das câmeras da UPP porque tinha ocorrido uma pane. Eles acham que pobre também é burro”, contou Bete ao Globo. 

O caso está sendo investigado pelo delegado Orlando Zaccone, da 15ª DP (Gávea), ainda sem conclusão.