Por Sérgio Augusto (Estadão, 22/3/14)
Na
noite de 30 de março de 1964, este escriba, então um mancebo de 22 anos,
marombava na redação do Correio da Manhã à espera de duas coisas: a prova da
primeira página do Segundo Caderno do dia seguinte e uma carona de carro para a
zona sul da cidade. Queria lamber a cria de uma reportagem sobre a expansão, na
música pop, da expressão "yeah, yeah". O País imerso na maior crise
político-militar e eu, mais por fora do que Fabricio Del Dongo na batalha de
Waterloo, plugado no sim, sim de Ray Charles, Beatles e Dionne Warwick, e nos
prazeres que me aguardavam num bar do Posto 6.
Antes
de deixar a redação, passei os olhos na prova da primeira página do primeiro
caderno, a primeirona, "la une", como dizem os franceses, e deparei
com um baita editorial, intitulado "Basta!". Com uma abertura
ciceroniana ("Até que ponto o presidente da República abusará da paciência
da Nação?") e um fecho veemente: "O Brasil já sofreu demasiado com o
governo atual. Agora, basta!". Pensei comigo, "isso vai dar
merda", pressentimento robustecido quando li, na manhã de 1.º de abril, a
segunda catilinária do jornal, cujo título dizia tudo: "Fora!".
Àquela altura, os tanques já estavam nas ruas.
Embora
fosse o jornal mais influente do País, junto com o Estadão, aqueles dois
editoriais não serviram de senha à conspirata civil-militar. O Correio
defendera a posse de Jango e o respeito à Constituição três anos antes, era
visceralmente legalista, mas julgava, com razão, que ao governo João Goulart
faltavam seriedade, autoridade e até base militar, opinião compartilhada por
sua equipe de editorialistas, composta, entre outros, pelo trotskista Edmundo
Moniz, Otto Maria Carpeaux, Newton Rodrigues, Oswaldo Peralva, Carlos Heitor
Cony e José Lino Grünewald.
Atribuídos
ao primeiro, de ascendência indiscutível sobre os demais editorialistas, até
por ser parente da dona do jornal, Niomar Moniz Sodré, aqueles dois históricos
editoriais sempre me pareceram uma obra coletiva. Chegaram a apontar Cony como
seu autor, mas a despeito de seu apreço pela reprimenda de Cícero a Catilina
(até hoje Cony me saúda assim: "Sergiusque tandem!", dispensando o
"abutere patientia nostra"), ele não poderia sequer ter sugerido a
abertura do "Basta!" por estar afastado da redação, convalescendo de
uma apendicectomia.
Na
época, além de integrar o time de editorialistas, Cony publicava crônicas na
primeira página do Segundo Caderno, alternando por algum tempo com Carlos
Drummond de Andrade e, na época do golpe, com outro romancista, Octávio de
Faria. Naquele espaço, exercitava-se livremente na "arte de falar
mal", na maledicência benigna, movida a ironia, ceticismo e sem parti-pris
ideológico. Uma vez por semana dava suas cotações no Conselho de Cinema do
jornal, cópia do Conseil des Dix da revista Cahiers du Cinéma, coordenado por
este seu criado, obrigado, e do qual Zé Lino também fazia parte. Cony entende
um bocado de cinema e até escreveu um livro sobre Chaplin. Antes de entrar na
faca, publicou uma série de crônicas sobre outra de suas paixões, Ary Barroso,
morto durante o carnaval de 1964.
Se
Jango foi a primeira vítima do golpe e cabo Anselmo, seu primeiro vilão, Cony
foi seu primeiro herói nacional; ali brigando pela pole position com Sérgio
Porto. Na imprensa, sem sombra de dúvida. Livre do resguardo, fez sua rentrée
em 7 de abril com uma crônica intitulada "Da salvação da pátria", em
que relatava seu primeiro contato com a soldadesca revolucionária ao sair de
casa para uma volta pós-operatória no quarteirão onde morava, em Copacabana.
Reconfortante deboche da arrogância e das paranoicas patriotadas dos milicos,
essa crônica assinalou o surgimento de um novo Cony, não mais o praticante
folgazão da arte de falar mal, mas, a partir do primeiro ato institucional
baixado pelo novo governo, em 9 de abril, o implacável ocupante de uma coluna
rebatizada O Ato e o Fato.
"O
que houve foi um simples golpe de direita para a manutenção de
privilégios", sintetizou Cony. Três dias depois, uma bordoada no
"patriotismo estéril" dos revolucionários. Na crônica seguinte lançou
a expressão "revolução dos caranguejos" e recebeu sua primeira ameaça
de morte. Fanáticos armados, sedentos por vingar o brio e a honra dos
militares, cercaram o prédio em que ele morava e suas filhas, de 13 e 9 anos,
atormentadas por sucessivos telefonemas obscenos, tiveram de ser levadas para a
casa de um amigo.
À
fascistoide truculência o Correio reagiu com um enérgico editorial e Cony com
esta advertência: "Sou um homem desarmado, não tenho guarda-costas nem
medo. Tenho, isso sim, uma obra literária que, bem ou mal, já me dá uma
razoável sobrevivência. Esse o meu patrimônio, essa a minha arma. Qualquer
violência que praticarem contra mim terá um responsável certo: general Costa e
Silva, ministro da Guerra, Rio - e, infelizmente - Brasil".
A primeira
leva das crônicas indignadas de Cony resultou num livro, O Ato e o Fato,
lançado em junho pela Civilização Brasileira, com prefácio do editor Enio
Silveira, orelhas de Hermano Alves e Mário da Silva Brito, mais apêndices de
Carpeaux, Edmundo Moniz e Márcio Moreira Alves. Evaporou nas livrarias em menos
de uma semana; e em 12 meses já contabilizava cinco reedições. Multidões
superlotavam as noites de autógrafos do cronista, desconhecidos lhe agradeciam,
comovidos, pela bravura de suas diatribes e pela ajuda que eventualmente
prestara a algum parente preso ou desaparecido.
Cony
acabaria preso pela primeira vez em novembro de 1965, por sua participação no
episódio dos "Oito do Glória". Na abertura de uma conferência da
Organização dos Estados Americanos no Hotel Glória, do Rio, ele e mais Glauber
Rocha, Antonio Callado, Márcio Moreira Alves, o cineasta Joaquim Pedro de
Andrade, o diretor de teatro Flávio Rangel, o diretor de fotografia Mário
Carneiro e o embaixador Jaime Rodrigues abriram uma faixa denunciando a
ditadura recém-instalada, deram uma vaia, e foram presos no ato, além de
qualificados de "moleques" pelo jornal O Globo.
Glauber
e Callado ficaram na mesma cela de Cony. Quatro dos oito "moleques"
aproveitaram a clausura de quase um mês para tocar adiante quatro obras afins e
fundamentais para a cultura brasileira: Glauber escrevendo o roteiro de Terra
em Transe (em papel de embrulho); Callado terminando Quarup; Cony iniciando
Pessach; e Joaquim Pedro tendo o lampejo de Os Inconfidentes. Esses eram os
verdadeiros revolucionários. Os verdadeiros moleques estavam no poder.
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