martes, 17 de noviembre de 2020

ÀS URNAS!

ÀS URNAS! (Parte 1 de 10)


De cerveja em cerveja, fumando e batendo máquina a noite inteira em arrumações de uns contos para o livro Os Perturbados de Porto Alegre, tomei um fogo daqueles. Amanheceu. Às 7 da manhã a sóror Mariana de Rosário, a índia da Serra do Caverá, abriu a porta do quarto do som onde me escondo e disse: - Tu tem que ir votar, o horário de votação dos velhos é das 7 às 10. Quase perdi a concentração do texto.

- Velho é o teu pai. - Respondi rindo.

- Tava brincando, tu é um guri que aparenta 35, imagine, é que é bom votar logo para ter o resto do domingo tranquilo, daqui a pouco vai te bater o sono.

- Mentirosa, aparento 90, mas tu tem razão, vou lá.

A sóror tem um fusca 1972, com ele me levou à Cidade Baixa de Porto Alegre, a apenas 12km de distância do Convento. De fogo fui só de calção e pés descalços. Ao chegarmos na Rua da Olaria, nº 400, uma escola onde voto, ela abriu uma sacola e disse: - Aqui está a tua carteira com os documentos, e aqui estão as roupas, tire o calção, vista a calça, a camisa e calce os sapatos.

Obedeci. Fui lá bem vestido com cara de homem sério. Não foi difícil achar a minha seção. Tinha uma velhinha na minha frente na fila de poucas pessoas. Atrás de mim uma gringa coxuda que sai da frente, tonteei. A velhinha da frente não parava de se voltar e me olhar, até que não se aguentou.

- Eu te conheço, meu fio, tu era menino de uns 20 anos, lembra de mim? - Desculpe, minha senhora, mas não recordo. - Eu era a cafetina de um cabaré da Rua Ernesto Alves, e tenho uma foto contigo no colo, eu sentada numa cadeira da calçada e tu atravessado por cima me abraçando e me dando beijos no rosto, agradecido porque te livrei o pouso num catre lá dos fundos.

Toda a fila ouvindo, até os mesários lá dentro, ela falava alto, sem agressividade, carinhosa, mas em alto e bom som. - A senhora me confundiu com outra pessoa. - Não, era tu, não sou louca, tu tava mal de vida, na miséria, ou era teu irmão gêmeo. - Bom, tive um irmão gêmeo, aquele era bom, morreu, infelizmente. - Morreu, meu fio? Lamento muito, era um rico rapazinho, sincero e honesto, bonito como tu. - Pois é, D. Lucrécia, é a vida, Deus só leva os bons, bonito pelos seus olhos bondosos.

Silêncio, um tempinho, tremi pelo ato falho, o que faz a bebida, mas ela estava muito velha, não iria perceber. Virei-me para a gringa, ui, que peitões, que com a mão tapava a boca mascarada para abafar o riso. Veio a voz da velhinha atrás: - Eu sou a Lúcia. Como é que tu sabe que o meu nome de guerra era Lucrécia, meu fio?

(...)

(Ilustração: Lucrezia Borgia, tela de Dante Gabriel Rossetti, de 1871)

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