Há
coisas que a memória apaga, na verdade nunca apaga, ela evita más lembranças.
Mas de repente aflora, e hoje me veio uma de doer, provocada por uma postagem de uma amiga de Bagé (RS, Brasil) no Facebook.
Aconteceu em 1992, um ano terrível para mim. Perdi Gilberto “Pato” Martins, meu mano querido de infância e de toda a vida, de Palmeira das Missões-Porto Alegre, tive eu, com as minhas mãos, que enfiá-lo numa gaveta do Cemitério João 23, até mais ver. Também perdi Regina Clara Simões Lopes, de Pelotas-Rio de Janeiro, amiga querida, culta e carinhosa, que me incentivou com meus contos meio malucos, ao trocarmos tantas cartas, dezenas, sinceras. Ambos jovens demais para morrer.
Depois me separei da mulher, tendo filhas pequenas, que até hoje me
julgam mais ou menos mal por aquilo, enfim, uma tormenta que não acabava mais, até
o fim do ano, quando publiquei num jornal de Pelotas (RS), cidade que eu mal conhecia e me tratou melhor que a cidade onde eu tinha vivido 20 anos, no dia 31 de dezembro, por
obra de amigos queridos de Regina Clara, o desencanto com o ano que terminava,
falando muito mal de alguém, ofendendo-o, já que a Deus, se existe, não devemos
insultar, onde só na última linha se tomava conhecimento de quem se tratava,
dizia: “Até nunca mais, 1992”. A dona memória tem lá suas razões para evitar
lembrar aquele ano.
Numa noite de inverno muito fria desse malfadado ano, chuvisco gelado, de sobretudo preto e chapéu entrei muito puto num bar lotado na esquina da Rua da Olaria (que rebatizaram de Lima e Silva) com Lopo Gonçalves, lá dentro uma meninada tocando e outra meninada bebendo e ouvindo. Não, não era na Olaria, era José do Patrocínio com Lopo. De tão puto carregava um peso longo por dentro do paletó, em cima do coração, volume disfarçado pelo sobretudo, um bruto 38 com bala no cão. Os problemas eram muitos, também havia bandidos querendo me queimar, bandidos ricos, os criminosos que mandam em tudo, e esses não são homens que te pegam de frente. A sinceridade nos faz passar por cada uma...
Mas
naquele dia eu estava abatido por outra razão. Precisava tomar uns uísques,
ouvindo música de qualidade, não os lixos de rádios e tevês.
Os
músicos eram estudantes do Conservatório Palestrina. Era - não existe mais - um
bar pequeno. Não tinha lugar, mas os proprietários me conheciam e me ajeitaram
numa cadeirinha ao lado do grupo musical, a dose de uísque posta no chão, num
cantinho do minúsculo palco. Dali a pouco, entre uma música e outra, o mocinho
do violoncelo viu meus olhos cheios de lágrimas. O que foi, tchê, essa
tristeza?
Então
tive o desprazer de dar-lhes a notícia: Piazzolla tinha morrido.
Após
o impacto inicial, o barzinho inteiro rolou em lágrimas, a começar pelos
músicos, claro. Dos donos à moça esperta do outro lado não teve quem não chorasse, uns por contaminação, em mim rolavam, sem um gemido, estava ainda muito puto, mas melhor, com a moçada solidária junto. O menino do violino, nervoso, começou a remexer partituras, procurando obras
que treinavam, para trazer à vida o artista morto. Amanhecemos com a piazada
tocando Adiós Nonino.
Mal sabia eu que meus problemas estavam recém começando.
No vídeo com uma de suas composições mais famosas, antes citada.
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Grande PIAZZOLLA. Merece e muito. Nada melhor que um dia após o outro.
ResponderBorrarÊ cada um fazer a sua parte e ter fé ...