Por trás do suposto rigor das publicações de "excelência" pode estar o epistemicídio - a tendência da Academia a sepultar pensamentos dissidentes. Mas há alternativas.
Por Alex Martins Moraes (matéria pescada no Outras Palavras)
O
que a entrega do prêmio Nobel de medicina 2013 e a divulgação dos resultados da
avaliação trienal do sistema de pós-graduação no Brasil têm em comum? Além de
ambos os eventos terem ocorrido na primeira quinzena de dezembro, eles também
convergem, por razões distintas, em outro sentido: representam uma boa
oportunidade para repensar e criticar as modalidades vigentes de produção do
conhecimento em nosso país.
O
biólogo molecular estadunidense Randy Wayne Schekman, que recebeu o prêmio
Nobel junto com seus pares James Rothman e Thomas Südhof, aproveitou a
visibilidade pública proporcionada pela premiação para instaurar uma forte
polêmica com algumas das publicações científicas mais importantes no campo das
ciências biológicas. Em coluna publicada no The Guardian um dia antes
da cerimônia do Nobel (versão em espanhol publicada pelo El País), Randy Schekman
acusou as revistasNature, Science e Cell de prestarem um
verdadeiro desserviço à ciência, difundindo práticas propriamente especulativas
para garantirem seus mercados editoriais. Entre estas práticas, Schekman
menciona a redução artificial da quantidade de artigos aceitos para publicação,
a adoção de critérios sensacionalistas na seleção das colaborações e um total
descompromisso com a qualificação do debate científico. Schekman conclui sua
intervenção com o seguinte chamado à comunidade científica: “Da mesma forma que
Wall Street precisa terminar com o domínio da cultura dos bônus, que fomenta
certos riscos que são racionais para os indivíduos, mas prejudiciais para o
sistema financeiro, a ciência deve se libertar da tirania das revistas de luxo.
A consequência dessa escolha será uma pesquisa que sirva melhor aos interesses
da ciência e da sociedade”.
Aparentemente
refratária a esse tipo de crítica – que, aliás, vem se tornando cada vez mais
comum em todas as áreas do conhecimento–, a CAPES (Coordenação de
Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior) confere um peso decisivo às
publicações em revistas de alto impacto no momento de avaliar o desempenho e a
qualidade dos cursos de pós-graduação brasileiros. Para a antropologia, área da
qual provenho, a avaliação da CAPES atribui um peso de 40% sobre a nota final à
produção intelectual dos docentes de cada instituição. Na prática isto
significa que, para atingir os conceitos máximos de avaliação (6 e 7), um
determinado programa de pós-graduação deve esperar que todos os seus
professores de mestrado e doutorado efetuem – para citar diretamente o roteiro
de avaliação da CAPES – “a publicação de resultados de pesquisa, sob a forma de
artigos em periódicos científicos, livros e capítulos de livros qualificados,
com destacada proporção e média por docente nos estratos A1, A2 e B1 do Qualis
Periódicos”. Levando em conta a quantidade de artigos publicados pelos docentes
permanentes dos programas de pós-graduação em antropologia mais produtivos no
triênio 2010-2012, o “ideal” seria, em média, cerca de duas publicações por ano
por docente em revistas indexadas – isto sem mencionar as demais publicações,
como livros, capítulos de livros, audiovisuais, relatórios técnicos, etc.
A
avaliação da CAPES na área antropologia/arqueologia não leva em conta o fator
de impacto das publicações, dado que a maioria das revistas de ciências humanas
não dispõe dos meios para quantificá-lo. Neste caso, a classificação dos
periódicos nos estratos A1 e A2 exige, entre outras coisas, que eles figurem em
indexadores internacionais. Já o estrato B1 requer que figurem em pelo menos
dois indexadores, sejam eles internacionais ou não. Outras áreas, como a
medicina, adotam diretamente uma classificação elaborada com base na mediana do
fator de impacto das revistas, obtidos junto ao Journal Citation Reports (JCR)
e calculados anualmente pelo ISI Web of Knowledge. Isto implica o
condicionamento da avaliação da produção científica às dinâmicas do mercado
editorial internacional, com todas as consequências aventadas por Randy
Schekman em seu artigo no The Guardian. Pior ainda, ao aplicar
classificações desta ordem, a CAPES enfraquece o próprio parque editorial
nacional e favorece uma forma questionável de internacionalizar a produção
científica, colocando as revistas mantidas por universidades públicas e
entidades de classe em detrimento de periódicos estrangeiros, financiados, em
sua maioria, pela iniciativa privada e aferrados aos cânones da propriedade
intelectual.
No
caso das ciências sociais e humanas, o produtivismo amparado pelas avaliações
da CAPES se materializa numa miríade de efeitos preocupantes, alguns deles
inesperados. Não me refiro apenas à precarização do trabalho de professores e
estudantes ou à perda de organicidade da produção intelectual decorrente da
ênfase obsessiva na escrita de artigos e de apresentações para congressos.
Talvez o aspecto mais assustador e menos criticado de uma avaliação da
pós-graduação inspirada pela ideologia produtivista seja que ela ampara o
epistemicídio. O epistemicídio – noção desenvolvida, entre outros, por
Boaventura de Sousa Santos – consiste na eliminação ou inferiorização ativa de
algumas formas de conhecimento em favor de outras, consideradas mais desejáveis
no marco de uma dada estratégia de poder. Por exemplo, a anulação de certos
saberes locais, sua folclorização ou deslegitimação pública foi e é uma
modalidade de epistemicídio aplicada sobre diversas populações ao longo das
experiências coloniais na América, Áfria e Ásia. O produtivismo está a serviço
do epistemicídio porque bloqueia ou dificulta seriamente e emergência de outras
formas de construção e enunciação do conhecimento em um momento de relativa
democratização das universidades públicas brasileiras. Em poucas palavras, o
produtivismo compromete a diversidade das formas de fazer ciência e a própria
criatividade humana no exato momento em que se converte em critério valorativo
hegemônico para a distribuição dos recursos necessários à produção de
conhecimento. Ao erigir-se como critério chave de avaliação da relevância da
produção intelectual, ele impõe sistemas de hierarquização que só fazem reiterar
privilégios epistêmicos de longa data e comutá-los, logicamente, em privilégios
político-institucionais. Só as modalidades mais conservadoras e pouco
imaginativas de fazer ciência se adaptam, sem grandes problemas, aos atuais
imperativos de quantificação. Já os estudos guiados pela co-investigação
prolongada e participativa, os amplos panoramas exploratórios, as práticas
colaborativas e situadas de escrita científica, etc. não conseguem sobreviver a
esses imperativos.
As
ciências sociais e humanas hegemônicas, legitimadas pelo produtivismo,
marginalizam – ou produzem como inexistentes – outras práticas de produção
intelectual; elas impõem seu universalismo abstrato ao pluralismo real dos
discursos e das práxis intelectuais vigentes na universidade e fora dela. As
instituições encarregadas de produzir conhecimento humanístico manejam
orçamentos que, sem serem os mais robustos do sistema universitário brasileiro,
não podem, ainda assim, considerar-se insignificantes. Trata-se de orçamentos
conformados com dinheiro público acumulado através da cobrança de impostos
majoritariamente regressivos a populações empobrecidas. Estes recursos têm sido
aplicados, frequentemente, no estímulo de uma dinâmica universitária tendente a
afastar estudantes e professores da problematização dos dilemas reais
suscitados pela vida democrática em nosso país. Na prática, os chamados
“problemas de investigação” acabam sendo inventados nos corredores da academia
– ou importados dos debates prestigiosos e “de ponta” do norte global – para
serem “resolvidos” no “lado de fora empírico”, com as “pessoas comuns” e depois
convertidos em digressões que atendem apenas à agenda editorial vigente no
mercado das publicações acadêmicas. Como se não bastasse, o dinheiro público
destinado à formação de jovens pesquisadores no exterior é por vezes
“investido” na perpetuação da subalternidade epistêmica das academias do sul
global mediante editais que reiteram regimes de legitimidade científica
diretamente coloniais.
Com
a hegemonia da quantificação na elaboração dos sistemas de avaliação
científica, cada vez menos a universidade poderá ser concebida como espaço de
estímulo ao florescimento de “ciências sociais de outra forma”, baseadas no
sentido de responsabilidade e colaboração em pesquisa, no cultivo de vínculos
duradouros e qualificados com comunidades e sujeitos e na articulação entre
problemáticas investigativas e dilemas socialmente compartilhados. Nossos
prestigiosos programas de pós-graduação mais se assemelham organismos autistas,
imersos em transe profundo, alheios a qualquer preocupação com a importância
social do conhecimento científico. O que parece dinamizar a produção de
conhecimento é a própria vontade de produzir racionalizada e eficientemente. Grosso
modo: produção pela produção. Eis o círculo virtuoso (ou seria círculo
vicioso?) do saber.
O
que fazer num cenário em que a quase totalidade da produção de conhecimento
promovida pelas ciências sociais e humanas encontra-se submetida a um
estandarte geral de avaliação caracterizado pela (in)determinação quantitativa
de toda a qualidade? Michael Eisen, professor da Universidade da Califórnia em
Berkeley, que reagiu positivamente às criticas levantadas por Randy Schekman
nas vésperas da entrega do Nobel, sugere a criação de sistemas alternativos de
legitimação das práticas intelectuais. Para ele, todos os cientistas deveriam
“atacar o uso das publicações para avaliar os pesquisadores, fazendo-o sempre
que possível quando contratarem cientistas para o seu próprio laboratório ou
departamento, quando revisarem as solicitações de financiamento ou julgarem os
candidatos para uma vaga” (ver matéria no El País:). Mais próximos de nós, os estudantes
de mestrado em Antropologia Social da UFRGS, que paralisaram suas atividades
acadêmicas na primavera de 2011 para questionar o produtivismo e as genealogias
institucionais estabelecidas também oferecem uma alternativa: “paremos para
pensar”. Esta, que foi a consigna da sua greve, nos alenta com a perspectiva de
que a desestabilização da engrenagem produtivista é possível através da
conformação de uma ética e de uma prática intelectual alternativa. Ao comentar
a greve dos estudantes de Porto Alegre, o sociólogo português Boaventura de
Sousa Santos concluiu o seguinte: “O vosso movimento (…) é parte dessa
sociologia das emergências, porque é gente que está em busca de uma renovação
epistemológica, política e o faz entre si, em pequenos grupos. Certamente os
meios de comunicação não noticiaram, certamente não foi útil para o currículo
deles ou para o programa de estudos deles, mas estão a emergir outras
realidades” (entrevista completa na Tinta Crítica).
Talvez
estas práticas “dissidentes” sejam um caminho para explorar novas lealdades e
alianças políticas que conduzam a vias alternativas de legitimação da produção
intelectual. O desafio, portanto, é erigir espaços profissionais dignos e
reconhecidos mais além das aparelhagens institucionais produtivistas, de forma
a superar as tentativas de epistemicídio e abrir passagem à proliferação de
práticas intelectuais indisciplinadas, ecumênicas e participativas. Assumindo
tal postura, corremos o risco de perdermos, num primeiro momento, o aval dos
números, dos mercados editoriais e da tecnocracia, mas ganhamos um valioso
terreno para construir objetividade e provar a validade dos nossos postulados:
a práxis humana. Neste terreno pode vicejar uma ciência sucessora, amparada em
novas redes de diálogo em política; uma ciência aberta a programas de
investigação nos quais a verdade reside, parafraseando novamente a Boaventura
de Sousa Santos, naquele conhecimento “que nos guia conscientemente e com êxito
na passagem de um estado de realidade para outro estado de realidade”.
A
tarefa parece hercúlea e certamente nem todos os pesquisadores estarão
interessados em aceitá-la. Uma coisa, no entanto, é certa: ao desenvolver
investigações, emitir laudos de demarcação de terras indígenas, frequentar
eventos acadêmicos, escrever textos, produzir imagens, enunciar discursos
políticos, etc. os cientistas sociais incorporam e colocam em ato suas
disciplinas. E é por esta mesma via que também estão em condições de colocá-las
em questão, disputando seus efeitos e funções. Nós podemos, portanto, atuar no
registro da reprodução, abastecendo o aparelho disciplinar herdado, ou podemos
bloquear a atualização de certas dinâmicas produtivas, exercendo uma reflexão
crítica e pragmática a respeito das ferramentas político-institucionais
disponíveis à ação transformadora.
É antropólogo, realiza estudos de doutorado no Instituto de Altos
Estudios Sociales (Buenos Aires) e faz parte da Rede de Antropologia Crítica.
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Excelente artigo, vou recomendar no meu facebook...Todos os pesquisadores e professores das UFES deveriam ler...
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