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Por Dalmo de Abreu Dallari, no Jornal do Brasil de 29/jan/2014.
O Brasil é um Estado Democrático de
Direito, no qual todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de
representantes eleitos ou diretamente. Isso é o que dispõe a Constituição em
seu artigo 1°, no qual também se consagra a cidadania como um dos fundamentos
da República. Mais adiante, no artigo 14, dispõe-se que a
soberania popular será exercida pelo sufrágio universal e pelo voto direto e
secreto, com valor igual para todos. Basta a lembrança desses dispositivos
constitucionais para se ter por mais do que evidente que a participação em atos
de governo ou a escolha dos governantes são atributos jurídicos exclusivos da
cidadania. Segundo disposição constitucional, é função precípua do Supremo
Tribunal Federal a guarda da Constituição, e dele se espera que exerça o
direito-dever de garantir esses fundamentos da ordem constitucional, impedindo
que qualquer um que não tenha a cidadania brasileira participe, de qualquer
forma, da prática daqueles atos ou interfira na vontade dos cidadãos
fazendo com que eles exerçam desta ou daquela forma os seus direitos de
cidadania.
É oportuna a lembrança dessas
disposições constitucionais neste momento em que o Supremo Tribunal Federal já
iniciou o julgamento, que deverá prosseguir nos próximos dias, de uma Ação
Direita de Inconstitucionalidade, a ADI 4.650, por meio da qual a Ordem dos
Advogados do Brasil pede a declaração de inconstitucionalidade da permissão
legal de financiamento das práticas eleitorais pela iniciativa privada,
constante do artigo 14 da Lei 9.504, de 1997 (Lei Eleitoral), e também de
disposições do artigo 31 da Lei 9.096, de 1995 (Lei Orgânica dos Partidos), que
autorizam a realização de doações de pessoas jurídicas a partidos políticos. A
prática brasileira já comprovou que tais financiamentos têm sido causa de
tremendas distorções, dando absoluta superioridade aos participantes do
processo eleitoral beneficiados por elevadas contribuições financeiras das
empresas, contrariando a garantia constitucional de igualdade e anulando a
soberania popular.
Para comprovação dessas distorções
inconstitucionais, basta a revelação de alguns dados objetivos altamente
expressivos. Na sustentação oral feita no início do julgamento, o presidente da
Ordem dos Advogados, Marcus Vinicius Furtado Coelho, ressaltou a «forte
influência econômica na política brasileira, onde mais de R$1 bilhão foi doado
nos últimos dez anos por dez empresas, sendo cinco grandes construtoras.
Outra revelação muito expressiva foi feita pelo «Estadão Dados», segundo o qual
na ultima campanha eleitoral para prefeitos e vereadores a Construtora Andrade
Gutierrez, que foi a maior financiadora privada, doou mais de R$ 23 milhões,
aparecendo em segundo lugar a empresa OAS, que doou R$ 21 milhões, sendo ambas
da área de construção civil e contratantes de obras públicas.
No julgamento da ADI 4.650 já deram
os seus votos quatro ministros, todos favoráveis ao pedido feito pela Ordem dos
Advogados do Brasil para que seja declarada a inconstitucionalidade dos
preceitos arguidos. São merecedoras de destaque algumas observações dos
ministros do Supremo Tribunal Federal que participam do julgamento. Entre estas
encontra-se a afirmação de que permitir o financiamento de campanhas por
pessoas jurídicas é conceder às empresas, que não têm direito a voto, uma forma
alternativa e eficaz de participar do processo. Ressaltou-se também que o
exercício dos direitos políticos é incompatível com as contribuições políticas
de pessoas jurídicas, havendo grande distância entre uma empresa defender
causas políticas, como direitos humanos, e sua participação no processo
político, investindo valores vultosos em campanhas, o que
é contrário à essência do regime democrático, pois implica a
degeneração da representação pela influência do poder econômico. Ponderou-se,
ainda, que a contribuição das empresas para campanhas e partidos
pode exercer uma influência negativa e perniciosa sobre os
pleitos, comprometendo a normalidade e legitimidade do processo
eleitoral e a independência dos representantes.
Ao que tudo indica, o pedido de
declaração de inconstitucionalidade feito pela Ordem dos Advogados deverá ter
decisão favorável na Suprema Corte, pois bastam mais dois votos reconhecendo a
inconstitucionalidade para que essa posição seja vencedora. Como é mais do que
óbvio, entre os que têm interesse direto e imediato na aplicação dos
dispositivos legais questionados na ADI 4.650 estão parlamentares que exercem
mandato no Congresso Nacional e que, a par disso, são dirigentes partidários. E
eles jamais deram ou darão apoio a iniciativas moralizadoras do sistema
eleitoral que afetem o seu interesse no recebimento daqueles financiamentos.
Foram dadas a público, recentemente,
declarações de parlamentares afirmando que decidir-se sobre a
constitucionalidade dos preceitos legais questionados o Supremo Tribunal
Federal estará invadindo a esfera exclusiva do Poder Legislativo. Essa alegação
é juridicamente absurda, pois a Constituição estabelece, no artigo 102, que
compete precipuamente ao Supremo Tribunal a guarda da Constituição, dispondo
expressamente, no inciso I desse artigo, que compete ao Supremo Tribunal
Federal «processar e julgar, originariamente : a) a ação direta de
inconstitucionalidade de lei ou ato normativo federal. Assim, do ponto de vista
jurídico-constitucional, a declaração de inconstitucionalidade daqueles
dispositivos será absolutamente perfeita, e aqueles dispositivos legais
perderão imediatamente a eficácia jurídica e não poderão mais ser aplicados.
Tal decisão deverá ter aplicação imediata, para aperfeiçoamento das práticas
políticas, em benefício da cidadania brasileira.
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