miércoles, 23 de julio de 2014

O meu amor por Elizeth

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Ontem amigos de bar e eu conversávamos sobre o aniversário de 84 anos de Élton Medeiros. Eles são amigos recentes, antes nunca os tive, os dois que tive morreram sem ver. Não pude deixar passar a ocasião, tonteei, pedi outra bebida e com a voz meio que embargada em certa altura, contei-lhes.

Tinha uns 15 anos quando ouvi pela primeira vez o samba Pressentimento, do seu Élton em parceria com Hermínio Bello de Carvalho. Elizeth Cardoso cantava. Meu Deus, guri introvertido, me apaixonei por Elizeth. Prometi a mim mesmo, segredo que nunca contei a ninguém, que um dia fugiria de Palmeira das Missões, iria ao Rio de Janeiro e casaria com Elizeth. Coisa de criança? Não mesmo. 

Ela solitária, triste, linda, ouviria os meus passos, caminhando alta madrugada, amanhecendo numa senda verde, e diria: "Vem, que o sol raiou, os jardins estão florindo, tudo faz pressentimento, que este é o tempo ansiado, de se ter felicidade. Vem, meu grande amor...". Eu sairia do inferno para o paraíso, me aninharia em seus braços.

Ir ao Rio fui, muitos anos depois que saí dos meus infernos, tive muitos outros infernos pela frente até conseguir, e ao conseguir fui demais até, de ficar quatro meses por ano, quase virei carioca, porém a segunda parte não deu, ela era um pouco mais velha que eu, 32 anos de diferença, pouco me importava, até dava, mas era casada, avó, e eu tinha uma querida guria de companheira em Porto Alegre. Nunca sequer a vi pessoalmente.

Se fosse procurá-la em sua casa, bem vestido, ainda que modestamente, de terno escuro, gravata, chapéu que já então ninguém usava, rosas amarelas nas mãos, sei que ela e sua família me atenderiam bem, sou um cara decente, e me tirariam para amigo quando contasse sinceramente o motivo que me levava. Estranhariam inicialmente, depois ela riria, aquele riso solto de alegria, me abraçaria, me daria até algum conselho, uma bebida, um café, no fim, na hora de ir embora, me beijaria com carinho e pediria para voltar quando quisesse. Voltaria, passando a visitá-la regularmente, a cada ida ao Rio. Tímido deste jeito, claro que não fui. Vai que me saísse tudo ao contrário.

O máximo que pude fazer foi levar-lhe flores, rosas vermelhas, dois meses depois que morreu. Sozinho, numa manhã de domingo carioca de um julho em que chovia, chovia... eu lá parado no Cemitério do Caju, as lágrimas quentes que me queimavam o rosto se confundiram com a chuva, ninguém notou, não tinha ninguém mesmo, e naquele silêncio de abandono um surdo da Portela ecoava nos meus ouvidos, em terrível marcação de tristeza. Ainda hoje, agora, neste julho chuvoso de Porto Alegre, o ouço: BUM... e um tempo interminável enquanto ressoa, anos, até a mão do portelense abafar já miudinho, bó. E vem de novo, BUM... a marcha fúnebre dos sambistas. Meu coração, uma turbulência que contrastava com o rosto molhado, de teimoso nunca se demonstra, foi se adaptando ao surdo, acalmando, esfriando, mas um frio ruim. Por instinto temi que parasse, então ajeitei as flores, beijei a pedra com seu nome e saí.

Entrei naquele cemitério com 37 anos físicos, 80 de lambadas nas costas, apanhado da vida, e saí com 80 físicos e não sei quantos de mundo. Enfiei-me num inferninho na Cidade, para beber, as mulheres faziam barro e eu só dizia me deixa, dona, isso ao meio-dia. 

À tarde fui procurar minha mana carioca, que morava em Copa, ela surpreendeu-se, não sabia que eu estava no Rio, perguntou e respondi que vim por motivos de saudades, e para encerrar o assunto indesejável menti que foi pela baiana da Tonelero. E fomos tomar uns chopes lá na areia, a chuva tinha passado. A mana reclamou que eu chorava por qualquer coisa. Resisti por bobo, dizendo que quando furei a onda foi de olhos abertos, ardeu. Ela riu. Mana conhece a gente. Retribuí com uma loucura: hoje vai chover muito mais, trovões e relâmpagos. Ao anoitecer ela arregalou os olhos, trovejou antes, relampejou depois, e foi água que Deus mandava, caiu um raio na praia, bem em nossa frente à beira d'água. Ela correu e se abrigou num bar do outro lado da Atlântica. Eu lá na praia, água pelos joelhos, gritava aos céus: me leve também, atire em mim se for bem homem! Onde está a felicidade, cadê a Elizeth, depois de tanto tempo ansiado, onde está?

Caiu outro raio ali adiante. A mana me buscou, ralhando com raiva, fui junto para protegê-la, perigava um cair nela, em mim sei que não cairia, Ele era meu devedor.

No fundo do meu coração ainda a amo, à Elizeth como à minha mana, esta fora de concurso, como amo ao seu Élton, seu Hermínio e tantas outras pessoas da Cidade Maravilhosa e do Brasil. Mas ela de modo diferente, era a Elizeth Cardoso, minha namorada, minha mãe, minha mulher, minha amiga, meu tudo, uma doce ilusão que me manteve vivo quando o mundo me queria morto.

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1 comentario:

  1. Parabéns. Uma história com grande sensibilidade. Grande Elizeth Cardoso que te trouxe inspiração e amor, para vc escrever essa linda cronica.
    Saudades, você mora no meu coração.

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