domingo, 23 de febrero de 2014

Minha viola foi pro fundo do balaio

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Três e picos da manhã, já domingo. Chove na capital, chuvinha fina. Eu muito feliz, ao amanhecer chegarão Carlito Dulcemano Yanés e Juanito Díaz Matabanquero, há meses não nos vemos, embora nos falemos por telefone quase todos os dias. Ah, lembro de avisar aos centenares de amigos, alguns do feicebuc, preocupados com o destino da cozinha depois que a invadi para fritar os peixes y hacer otras cositas más nesta linda noite de sábado em Porto Alegre, que correu tudo às mil maravilhas. Ao final ficou parecendo um campo de guerra, após a guerra, mas pelo menos não explodi o prédio. Dolores Sierra riria muito ao apreciar a bagunça, se estivesse aqui e não em Barcelona.

Antes fiz feijão, bem, não fiz, pois deixei o produto com temperos e couro de porco fervendo na panela de pressão - esses feijões que nos vendem são duros pacas, umas porcarias que só na pressão mesmo - e fui tomar uma cerveja ali no bar do Janjão, o José João Alfinete, velho amigo. Deus é de fato um cara muito gozador, pois o Janjão, com um metro e sessenta abriga cento e quarenta quilos no corpinho, com o sobrenome de Alfinete. Depois de dois tiros de branca com losna, tomei só quatro ou cinco cervejas, ou seis, sete, vá lá, também sou filho de Deus, cantei poucas músicas junto aos boêmios e boêmias da Praça Garibaldi, ai-ai-ai, uma morena que eu não conhecia, gostosa, cantou Linda Flor me olhando zombeteira: “Aioiô, eu nasci pra sofrer, foi oiar pra ocê meu zoinho fechou...”, eu casaria com a fresca hoje mesmo não fosse o armário de doze portas que a acompanhava, e logo voltei pra casa, muito contra a vontade, mas sabe como é, precaução, sou um cara precavido, pois ainda era cedo. Cheguei bem a tempo de impedir os bombeiros de arrombarem a porta, perem aí, camaradas, tenho a chave, perderam alguma coisa na minha moradia?

Pensei em dar voz de prisão aos elementos, mas eram uns dez, e com ferramentas nas mãos, e eu desarmado, aí já viu. Torrou tudo, acho que botei pouca água na panela, mas dava nada, só fumaceira que os cagados dos vizinhos pensaram que era incêndio. Fiquei abalado de ver os bombeiros me enchendo o saco com recomendações, deixando planfletinhos, ora vão sifuder, exclamei de repente, furioso, e eles se mandaram, pelo que servi um triplo de uísque depois que os de verde e vermelho foram embora, o que os salvou foi o vermelho, pois milico só verde me dá alergia, teria feito uma bobagem. Em meia hora eu era outro cara, sorri, botei um disco do Trio Cristal no prato, brindei à vida e encarei os peixes, sou fino nisso.

Houve o incidente com o meu amado Gatolino, que aproveitou uma distração que tive ao namorar o copo com demasiada paixão e me surripiou uma posta inteira de viola, pelo que o persegui por meia hora no apartamento até encontrá-lo dentro do balaio, hoje vazio, de roupas sujas. Com a viola no fundo do balaio, hein, malandro? Parece samba do Paulinho, falei a ele com cara de vai me pagar, eu numa raiva de ter batido perna por todo o apartamento sem o encontrar, o filho da mãe arranja cada buraco impensável para se esconder. 

Recuperei parte da viola e decidi, enfim, tirar-lhe o couro. Para quem sabe do que estou falando, ainda dava tempo de esticar, secar e tal, de modo que o tamborim saísse ainda neste carnaval, a Academia de Samba Praiana teria um som muito melhor daqui a uma semana, mas o indivíduo novamente evadiu-se ao me ver de adaga na mão. Soube que anda lá pelos lados da Tristeza a esta hora, pedindo pouso ao meu compadre Walter Schumacher até que eu me acalme. Abobado, acredita em tudo, não iria lhe tirar o couro coisa nenhuma, só lhe cortar a garganta. 

Pensando bem... acho que na hora desistiria, ao pensar que Vanda Turco, Haidee Branco, Regina Baumgart e Letícia Fagundes, em represália, cometeriam um salitocídio com requintes de crueldade. E com tristeza confesso: maldade não está em mim, e logo meu Gatolino, mas haveria de dar-lhe um castiguinho, tipo forçá-lo a ler um livro do Paulo Coelho. Andei bebendo, esqueçamos isso também, pois teria que traduzir para o gatês, aí eu também seria punido ao ler e de quebra traduzir antigos escritores da humanidade. Sim, se sei a língua de nenês imagine se não saberia gatês, ora, só o miau tem 879 significados e/ou acepções, a depender do tom de voz, digo, do miado. Só dos choros de gato registrei 195 variações, que vão desde tango a rock demência, como denominei. O chorinho mais lindo, pro meu gosto, é o foxtrot gateado, é quando está com vergonha de contar alguma arte que fez. Abolerado é quando está apaixonado e com tesão. Com ciúmes de corno sai da frente, lá vem com choro sertanojo de Goiás, é mortal. E aquele que sai do fundo da garganta, hummmiiióóó é situação nova, ainda não tenho certeza, mas creio que está dizendo que não sabia dessa mas acho que estou gostando, ou, e isso é de doer, é saudade da gata mãe. Bah, uma infinidade, e recém comecei os estudos, suspeito que há mais cinco mil significados, sem contar as variantes de cada tema.

O disco do Trio Cristal tava terminado há tempos, arranhando no fim sem levantar e clic pro seu lugar, toca-discos antigo é foda, fica lá, empacado. Tirei e botei o Moacyr Luz em cd, ai, Saudades da Guanabara. Servi mais um triplo e esvoacei leve para a cozinha, lembrando da doce baiana da rua Tonelero que se alucinava e gritava isso, me beija, me esporreia seu loco. Ui.

Quando rodou Pra que pedir Perdão o espectro físico de Dolores invadiu o covil, algodão brilhando, quase desabei, não me vi bem na parada, derramei por engano meu copo na frigideira e tomei um talagaço do vidro de azeite de oliva. Cruzes, cheguei a tontear, mais do que já estava, mas lembrei que pior foi quando os antigos, como chamávamos pais e tios e tias, me deram goela abaixo um colheirão de óleo de fígado de bacalhau, que curaria sei lá o quê. Suportei, segui mais firme que palanque em banhado. 

Ainda tava temperando os aquáticos quando deu outro probleminha: eu tinha ligado a boca mais forte do fogão, mas esqueci de apertar no tzzz, e ela ficou apagada soltando gás, a pequeninha do lado acesa, dali a pouco Bum, voou tudo o que tinha em cima, eu caí pra trás. 

O estouro novamente deixou as pessoas do prédio apreensivas, ô gente assustada, ouvi exclamações pouco elogiosas a meu respeito. Fui até a sacada dos fundos e gritei não foi nada, seus babacas, não se pode mais nem estourar um balão na própria casa?! Depois me sentei um pouco e ri muito. Tive leves escoriações no rosto por uma tampa que me pegou em cheio, nem tão leves, minha camiseta regata branca do Inter ficou vermelha de sangue, pelo menos combinou as cores, mas ruim mesmo foi o cheiro da parte dos meus cabelos que pegou fogo, fedor de osso, guampa queimada, melhor não lembrar daquela ingrata da Rua Vasco Alves, tomara que ela morra.

Com os imprevistos contornados abri uma cervejinha Coruja de litro e resolvi dar mais uma pulverizadinha de sal nos peixes, que já estavam ardidos de tanto, mas nunca é demais, e caiu a porra da tampa do saleiro, tapando a peixaiada de branco. Rei do peso. Fiquei puto e atirei os ovos batidos e a farinha de rosca para dentro da vasilha dos peixes que tava no buraco embaixo da torneira, joguei em cima o monte de pimenta-do-reino que havia esmagado com meu copo, sim, troquei de copo em seguida, tinha uns cinco copos, misturando tudo, na confusão se foi a dupla de uísque do copo novo para dentro também, a Coruja esquecida caiu de lado e ficou derramando dentro da vasilha. Salvei meio litro da cerveja, o resto já era. 

Se a ex-sogra velha que virá amanhã não pode com pimenta por problemas anais, uísque e cerveja por causa da pressão, azar o dela, que diabos, se é pra esculhambar é comigo mesmo.

Enfim, a cozinha pode estar um campo de guerra, feijão só quando Dolores voltar, mas as violinhas ficaram uma delícia, comi três pedaços dos trinta. Amanhã se elas, que nunca me visitam graças a Deus, fizerem arroz branco e saladas, fecha todas, o prato principal eu fiz, sou o cara. E não dou a receita.

Algo me diz que ando diferente, nervos meio à flor, e sei que é de saudades dela. Boto a Valsa Rosa, com a Camila Costa, que ela tanto gostava. Vai voltar.

Penso em abrir a vodka, única que restou, mas resisto, chega. Ela vai voltar, sim.



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