sábado, 12 de abril de 2014

O homem que traçava retas

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O premiado conto é da escritora paranaense, de Cascavel, Lucimara V. Vaz.





Era uma vez um menino que tinha uma grande habilidade para desenhar linhas retas de qualquer tamanho e em qualquer posição. Por certo que descobriu sua habilidade num desses dias que ficam marcados na memória de vida, e que ela não lhe veio pronta e acabada.

Num dia ensolarado, quando tentava colocar na folha de um caderno de desenho a paisagem em frente à igrejinha, todos os seus traços tendiam a tornar-se retos. A igreja foi retratada com exatidão; os canteiros e as árvores mal foram esboçados. A professora, ao comentar algo sobre ter mãos e olhos firmes, estimulou um gosto que lhe duraria a vida inteira e uma ambição que se manteve viva enquanto todas as demais esperanças falhavam.

Ele queria ser um homem que traçava retas perfeitas. Inicialmente ele descobriu que, se a linha fosse muito extensa, apenas no meio ficaria exata e trabalhou com grandes extensões de muro para aperfeiçoar-se nas grandes retas, antes de passar para folhas de metro, com lápis nº 2. Descobriu também que, conforme o material de desenho, a pressão da mão deveria modificar-se.

Lápis de grafite macia exigiam apenas um descansado gesto, como o pincel atômico bem novo; e este, como as canetas de ponta porosa, dava uma grossura desigual para a linha, o que também foi corrigido com muito tempo e treinamento. Ao superar a adolescência, era hábil com todos os materiais de desenho convencionais. Os colegas levavam para ele os cartazes escolares: com traços contínuos e precisos, desenhava uma moldura a exatos três milímetros da borda da cartolina, sem falhar. Levou a tentativa para telas e tintas, panos e cerâmicas.

Em pouco tempo, a associação de artesãos lhe levava pequenos e delicados vasinhos de porcelana, corações e caixinhas para que seu traço perfeito delineasse em dourado as encantadoras peças de argila cozida. Passou as férias com o primo da Funai na reserva Pataxó, aprendendo a traçar com o dedo, sobre o próprio corpo, com a tinta do urucum e do jenipapo, retas e mais retas concêntricas e geométricas. Tentou a faculdade de arquitetura. As plantas desenhadas em papel vegetal, um primor de precisão, o encantavam.

Cursou até o terceiro ano, quando as condições de vida o obrigaram a trocar o estudo pelo emprego. A imagem da tristeza é uma linha truncada, pensou. Conheceu uma linda moça. Apaixonou-se. Comparou o amor a duas retas paralelas que, ao encontrar-se no infinito, tornam-se uma só. Casaram-se e, no livro de registros de casamento, com um pouco de tinta de ouro que guardara especialmente para a ocasião, sublinhou o nome de ambos com traços retos e luminosos. Teve filhos. Trabalhou. Não se pode dizer que tenha sido um sucesso profissional ou que tivesse obtido da vida tudo que queria. O fato indiscutível é que criou a prole com as necessidades decentemente atendidas.

Passava horas com os filhos ao colo, ensinando mãozinhas gorduchas a traçar retas no papel. Nenhum herdou sua invulgar habilidade; aposentou-se com quinze quilos a mais do que tinha ao casar-se e um grosso par de óculos que dava a seu olhar um aspecto confuso. Enterrou a esposa num certo dia de primavera, em tudo semelhante ao dia em que a conhecera; poderia ser o mesmíssimo dia, semelhante em luz e cor, emoção e desejo, não fosse os longos anos permeando um e outro. Ele pensou: entre o início e o fim, o caminho é reto.

Conheceu os netos e viveu ainda uma dúzia de anos, entretido a ressuscitar velhos sonhos. Voltou para a faculdade, mas descobriu que preferia cochilar nas aulas. Viajou para a cidade natal e nela não reconheceu nada, a não ser o traçado das ruas. O violão, com suas seis cordas esticadas, levantou-lhe indagações filosóficas sobre a tensão das retas que o distraíram da música. Tentou se dedicar à pesca, mas a morte chegou antes que tomasse o gosto.
Quando, no hospital, esperava chegar o derradeiro momento, ouviu no corredor perguntarem quem era o paciente daquele quarto. A enfermeira respondeu: é o homem que sabe desenhar linhas retas.

Sorriu e faleceu.
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