O premiado conto é da escritora paranaense, de Cascavel, Lucimara V. Vaz.
Era uma vez um menino que
tinha uma grande habilidade para desenhar linhas retas de qualquer tamanho e em
qualquer posição. Por certo que descobriu sua habilidade num desses dias que
ficam marcados na memória de vida, e que ela não lhe veio pronta e acabada.
Num dia ensolarado, quando
tentava colocar na folha de um caderno de desenho a paisagem em frente à
igrejinha, todos os seus traços tendiam a tornar-se retos. A igreja foi
retratada com exatidão; os canteiros e as árvores mal foram esboçados. A
professora, ao comentar algo sobre ter mãos e olhos firmes, estimulou um gosto
que lhe duraria a vida inteira e uma ambição que se manteve viva enquanto todas
as demais esperanças falhavam.
Ele queria ser um homem que
traçava retas perfeitas. Inicialmente ele descobriu que, se a linha fosse muito
extensa, apenas no meio ficaria exata e trabalhou com grandes extensões de muro
para aperfeiçoar-se nas grandes retas, antes de passar para folhas de metro,
com lápis nº 2. Descobriu também que, conforme o material de desenho, a pressão
da mão deveria modificar-se.
Lápis de grafite macia
exigiam apenas um descansado gesto, como o pincel atômico bem novo; e este,
como as canetas de ponta porosa, dava uma grossura desigual para a linha, o que
também foi corrigido com muito tempo e treinamento. Ao superar a adolescência,
era hábil com todos os materiais de desenho convencionais. Os colegas levavam
para ele os cartazes escolares: com traços contínuos e precisos, desenhava uma
moldura a exatos três milímetros da borda da cartolina, sem falhar. Levou a
tentativa para telas e tintas, panos e cerâmicas.
Em pouco tempo, a associação
de artesãos lhe levava pequenos e delicados vasinhos de porcelana, corações e
caixinhas para que seu traço perfeito delineasse em dourado as encantadoras
peças de argila cozida. Passou as férias com o primo da Funai na reserva
Pataxó, aprendendo a traçar com o dedo, sobre o próprio corpo, com a tinta do
urucum e do jenipapo, retas e mais retas concêntricas e geométricas. Tentou a
faculdade de arquitetura. As plantas desenhadas em papel vegetal, um primor de
precisão, o encantavam.
Cursou até o terceiro ano, quando as condições de vida
o obrigaram a trocar o estudo pelo emprego. A imagem da tristeza é uma linha
truncada, pensou. Conheceu uma linda moça. Apaixonou-se. Comparou o amor a duas
retas paralelas que, ao encontrar-se no infinito, tornam-se uma só. Casaram-se
e, no livro de registros de casamento, com um pouco de tinta de ouro que
guardara especialmente para a ocasião, sublinhou o nome de ambos com traços
retos e luminosos. Teve filhos. Trabalhou. Não se pode dizer que tenha sido um
sucesso profissional ou que tivesse obtido da vida tudo que queria. O fato
indiscutível é que criou a prole com as necessidades decentemente atendidas.
Passava horas com os filhos
ao colo, ensinando mãozinhas gorduchas a traçar retas no papel. Nenhum herdou
sua invulgar habilidade; aposentou-se com quinze quilos a mais do que tinha ao
casar-se e um grosso par de óculos que dava a seu olhar um aspecto confuso.
Enterrou a esposa num certo dia de primavera, em tudo semelhante ao dia em que
a conhecera; poderia ser o mesmíssimo dia, semelhante em luz e cor, emoção e
desejo, não fosse os longos anos permeando um e outro. Ele pensou: entre o início
e o fim, o caminho é reto.
Conheceu os netos e viveu
ainda uma dúzia de anos, entretido a ressuscitar velhos sonhos. Voltou para a
faculdade, mas descobriu que preferia cochilar nas aulas. Viajou para a cidade
natal e nela não reconheceu nada, a não ser o traçado das ruas. O violão, com
suas seis cordas esticadas, levantou-lhe indagações filosóficas sobre a tensão
das retas que o distraíram da música. Tentou se dedicar à pesca, mas a morte
chegou antes que tomasse o gosto.
Quando, no hospital,
esperava chegar o derradeiro momento, ouviu no corredor perguntarem quem era o
paciente daquele quarto. A enfermeira respondeu: é o homem que sabe desenhar
linhas retas.
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Lindo...emocionante. Um belo conto. Parabéns pela escolha.
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