miércoles, 16 de abril de 2014

Procurando Amelita

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Durante meses guardei dinheiro para fugir com a Maria Amelia. Ela tinha doze anos a mais do que eu, soube depois, e era cantante de valsas e tangos na década de 30, ainda sem a carreira definida. Eu não sabia dos doze a mais, e pouco me importaria se fossem vinte.

Quando cheguei aos dez mil dólares, na névoa que turvava a minha mente, viajei em meio a relâmpagos, pensei em noite de tempestade. Devo ter adormecido, pois subitamente me vi parado na esquina da Av. Corrientes com San Martin. Liguei de un teléfono público na altura do número 600 da Corrientes, quando a noite se fechava sobre a cidade, já não havia tempestade, apenas chuva fina em baixa temperatura. Para o juncal 12-24. Sabia que ela morava no 348. Foi educada ao atender, reconheci a sua doce voz com o coração aos saltos.

Eu estava saindo do ano de 1934, com os mesmos 19 anos que então possuía. Falei num espanhol misturado com português, procurando manter a serenidade: boa noite, aqui é o teu amor, Amelita. Riu, imaginando trote de algum amigo, a minha voz lhe soou familiar. Aí contei-lhe algumas passagens da nossa vida, com calma para não assustá-la: do desmaio no quarto azul, nuestro cuartito azul, e ela emudeceu do outro lado da linha. Depois de longos segundos, falou num fio de voz: repita o que disse, por favor.  

O quarto azul, ontem, quando pensaram que eu morri, não pode ser outra vida, te acuerda? Sei que algo estranho aconteceu, também não entendo, mas sou eu. Lembra dos espelhos com molduras negras? Do gato de porcelana? Dos chás dançantes aos domingos, de quando fui alvejado pelas costas na Calle Florida? Ela gritou e ouvi o ruído de vidro se quebrando no chão.

Voltou com voz trêmula, diga mais, diga mais, moço... Contei-lhe tudo, que ainda a amava, que não era brincadeira, falei da nossa intimidade, das lágrimas de impotência diante do cruel destino. Após um breve silêncio começou um choro de desespero, agitada, atropelando a voz ao dizer que eu havia descrito um sonho que a assalta desde menina, sonho que terminava com a sua própria morte pouco tempo depois, com os pulsos cortados.

Falou desta vida... Agora já é cantante famosa, faz muitos shows pelo mundo, é casada com um bom homem e possui muitos filhos. Quis me ver esta noite, implorou para nos vermos. Menti que estava no Brasil, pois não pretendia estragar a sua vida novamente. Ouvi uma batida de porta e vozes na residência, pessoas que chegavam alegres. Buenas noches, meu amor, adiós, eu disse. Não vá, não vá, ela gritou caindo novamente em prantos. 

Saí da cabine e fui andando sem rumo, entrei num bar  e me senti um estranho diante das pessoas, tudo tão mudado. Um homem recitou um poema para mim desconhecido, muito triste, como se fora uma evocação de outros tempos, os meus tempos, meu Deus: como se Gardel e meus tempos tivessem morrido, que terminava assim:

Y una caliente
zafra de ecos,
ecos de la voz de nuestra gente,
ecos de tu voz
chiquito, y de la mía,
inexorablemente,
contestará:
Gardel, Gardel, Gardel.

Embebedei-me, para tentar acalmar o tremor que me sacudia a alma, após saber por um periódico do bar que estávamos em 1983. Então me concentrei, sem me mexer ouvi a todos no bar, seus amores, seus gritos, suas reclamações. Gardel morrera em 1935, um ano depois que partimos, eu com 19, ela com 31.

Nunca a esqueci. Jamais a esquecerei. Tornei a andar pela Corrientes e senti que me tornava fumaça enquanto avançava em direção à Florida. 

Espero voltar a Buenos Aires qualquer dia destes, mas não em 1983. Antes, em 1971.
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