domingo, 11 de mayo de 2014

Cidade Baixa: 15 da Camila

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Certa vez o "Carlos" (troquei o nome, né,  a hipocrisia nacional diz que o jogo do bicho é contravenção penal, só rindo) convidou ao Pato Bolé, meu compadre, e a mim para o aniversário de 15 anos da sua filha.

O Carlos era o bicheiro da Cidade Baixa, em rachid com um cara do Rio e um cola-fina de Porto Alegre. Gente finíssima, o Carlos, nunca pegou em arma, uma caaalma, sempre se acertou na boa com os adversários, em tempos de guerra era o mediador, finura mesmo, mas sabia o que fazia, que tentem. O cara do Rio de Janeiro também boa gente, negão de 150 Kg, alegre, festivo, este compareceu ao niver. O de Porto Alegre deixa pra lá.

O Carlos um neguinho médio, 1,75 m, nem parrudo nem magrela, assim como eu, eu 1,79, mas nem gordo nem magro, enfim, não era armário. Casado com a Loirete, uma loira mais baixa que ele, mas polpuda, outra gente fina. Boazuda, quando andava pela Rua da Olaria em cima daquele salto 20 o Carlos se benzia em casa, a cachorrada de toda a cidade ia atrás para ver o requebro, vai, vem, da, ahn, da polpa. Pero sincera e honesta, tinham cinco filhas, mais umas dez e ele me alcançaria, nessa época eu estava na quinze. A gente ria muito por essa de só fazer menina, e acordávamos que homem lá em casa, ou casas, já chega eu. O niver era da sua guria mais velha, a Camilinha.

Uma honraria e tanto, sermos distinguidos pelo amigão que bebia e jogava xadrez com a gente no bar do Carlito Higgins, uruguaio, outro amigão, ele e a Jacira. A mulher do Carlito um doce, trabalhava na Saúde, ali num Posto da rua dos milicos, ai meu Deus, uma depois do 18º do Forte de Copacabana, o... Otávio Correa, isso, uma depois da Otávio e uma antes da Rua da República, deu branco no nome, mas ali pertinho, no setor de doenças venéreas. O Carlito se arriava nela porque passava o dia inteiro pegando em pau para colher material - tinha que pegar, apertar, espremer a cabeça e colher o líquido no buraquinho dos paus dos caras - mas se arriava só entre nós, no começo ficava fula da vida, ora onde já se viu contar coisas assim, vermelha, mas com o tempo ela também ria. Um casal de amor, Carlito e Jacira, com seu lindo guri.

Claro que fomos. A festa contaria com conjunto de samba de primeira, dez caras, com tudo o que tinham direito. No próprio Bar do Carlito, na esquina da Rua da Olaria com Lopo, pouquinho mais pra lá, onde atualmente tem algo, restaurante ou coisa assim. Na época ali pegava fogo de amizades, uma alegria só, boêmios se abraçando, tomando lisos, música, violões correndo, e os tabuleiros de xadrez pelas mesas. Alguém já jogou uma Siciliana bêbado às três da matina, valendo a despesa? Não tente. A Siciliana é semi-aberta, hoje uma das prediletas dos grandes campeões, mas a gente treinava mesmo, e gostava mais, das abertas: escocesa, italiana, húngara, espanhola, russa... uma festa. Eu amava ir para cima deles com o gambito Evans, que foi uma tentativa de se modernizar a italiana, fatal se um domina e o outro não está habituado.

Só eu e o Pato fomos convidados, o bar estaria fechado para outras pessoas, deu uma ciumeira danada, mas os borrachos velhos aguentaram, estaríamos representando a todos, pois viria a parentalha do Rio, Floripa, Miami e o diabo, iria faltar lugares. Guardados os tabuleiros.

Lá fomos à noite. Levamos flores para a gatinha, eu rosas amarelas e o Patinho vermelhas, eu argumentei que 15 é nada, levo amarela, não é rosinha mas também não é de mulherão, a guria é cabaço, meu, e ele ponderando que tinha de ser vermelhas, a guria já se acha mulherzinha, para incentivar paixão, se sentir bem, etc. Puta que nos pariu, e agora? Tomamos um trago num boteco uma quadra antes e resolvemos misturar os dois buquês, depois de virar um copo em cima. 

Entregamos juntos, os dois segurando. Posamos para fotos já na chegada, a gente de terno e gravata, perfumados, nos trinques, alegria, aquilo lotado, umas duzentas pessoas onde caberiam cinquenta, e dê-lhe ixtou aqui, purrque, papos em carioquês. Branquelos eu, o Pato, a esposa do Carlos, mais uns três parentes, e ainda dois ou sete que não lembro direito, também não fiquei cuidando, ora. As gurias dele passavam por negras, lindinhas de morrer. Abraços, felicidade. Todos estávamos felizes, molinhos. O camarada do Rio sentou junto conosco, na mesma mesa, figuraço, em poucos minutos ficamos amigos para sempre.

Bebemos, comemos, rimos, dançamos - eu dancei com todas as suas pequeninas, exceto com a aniversariante, primeiro o pai -, e a tigrada lá no palco metendo para valer, o negão do surdo dava uns dois de mim, e lá rindo e ferro na boneca, o cavaquinho, o bandolim, flauta, dois violões, reco-reco e o escambau, bah, todos, os sambas pegados se ouvia em todo o bairro, soube depois, mas era de entontecer mesmo, mesmo inglês sairia dançando, aquilo mexe até com almas que já subiram.

Chegou o momento: o Carlos foi lá no palco dizer algumas palavras para a menina, antes de tirá-la para a valsa. Disse bem, amor da minha vida e tal, a guria subiu lá, a mãe também, as maninhas, mais abraços, lágrimas. Pato, Julião carioca e eu emocionados aqui embaixo. Adivinhem qual o bobo que não segurou uma lágrima, ah, era penumbra, fraca mas era.

Incidente na portaria. O nosso segundo armário teve que dar uma porrada num mauricinho invasor. Foi nada. Os porteiros impediram a Cidade Baixa inteira de entrar, o povo pensava que era paguei e estou dentro, a música atrai, e música boa, negada também do Rio, e eu de tão azarado fiquei logo de diagonal para a porta, na mesa da outra parede, com tanto espaço na frente e lá atrás, rei do peso. Na época eu era meio perigosinho, então quando apareciam as putiangas na porta perguntando pelo Sala e os negão barravam eu me abaixava e o Pato dava cobertura com o corpo. Uma gritou, mas eu vi o chapéu dele! Azar, dona, está enganada. Ufa. O Pato ria, o Julião idem, este dizendo que a Cidade Baixa tem algo do Rio. A coragem dele, "algo". A Cidade Baixa dá de dez a zero em toda a zona boêmia do Rio, de lambuja ainda podem somar o Bexiga de Sampa, mais Santa sei lá o quê.

Bom, o conjunto já havia tocado muitos sambas, todos não porque samba não tem fim, era coisa de onze da noite quando o Carlos cometeu a solenidade de dizer palavras de amor à filhinha. Estava a família no palco, ameaçando descer para a valsa e continuar a festa, quando se ouviu uma voz: "Vocês são racistas, negada de merda, não tocam música judia".

Era o médico da família, um velhinho franco-israelita, Monsieur Bertrand. O velho judeu era francês, israelita por adoção e brasileiro para incomodar: o pai dos chiclés, numa água de dar gosto. Uma beleza de se ver: um metro e cinquenta, terno cinza claro, camisa azul e chapéu coco preto. Nunca vi aquele velho sóbrio, mas era bom de medicinas assim mesmo, creio que se fosse sóbrio atender a alguém o paciente não aceitaria, era bom bêbado. Tinha entrado com carteiraço exatamente por isso: médico da família. O Carlos olhou de relance para os porteiros, rapidamente, mas retomou o controle, mandou a família para as mesas, eta nego bão.

Voltou ao pódio. No microfone disse: o que foi, doutor? Não ouvi, muito barulho...

- Foi pica nenhuma, essa negada aí é racista! Não toca música de judeu.

Silêncio repentino no salão. A esposa do Carlos tossiu lá atrás, visivelmente contrariada.

- O senhor quer qual música, doutor, Hava Nagila para a celebração que hoje fazemos?

- Hava nada, isso é coisa de cigano, quero uma pura! Qualquer uma judia.

Carlos deu uma pensada... Voltou-se e andou até os músicos, cochichou e retornou.

- Vai sair, doutor, em sua homenagem, obrigado pela presença.

Desceu e foi para a mesa da família, no caminho nos sorriu.

Acabou de chegar na sua mesa e o conjunto entrou a milhão, o couro comendo:

"Judia de mim! Judia..."

Quando acabou, sem uma palavra a turma começou a tocar Desde el Alma, solo de cavaco com batidas secas lindas, e foi aumentando, todos os músicos e instrumentos se integrando. E Carlos dançou com Camila.

Que noite. Inesquecível.

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