- Estou pensando em me
matar. Preciso levar um lero urgente com o tal de Deus, disse Clóvis Baixo.
Para um início de noite de
sexta-feira, a turma aperitivando em mesas espalhadas abaixo da marquise
defronte ao bar, o assunto foi recebido com risinhos. Wilson Schu, que separava
as carnes na mesinha do assador, disse com ar divertido:
- Mas o que é tão importante
que não pode esperar mais uns trinta anos, Baixo?
- Seguinte: eu jogo na Loto
desde o século passado, talvez desde que o governo inventou essa porra. E nunca
nada. Nunca! Certa vez consegui fazer um terninho, deu 27 pilas, mas isso
porque comprei o cartão pronto de um cego. Os meus números, nada, nunquinhas.
Ora, que a divindade me perdoe, tenha a santa paciência, assim não dá, cansa.
- Ganha quem aposta altas
somas de dinheiro, Baixo, grande número de cartões, é matemática, lembra de
Análise Combinatória? As probabilidades, malandro, isso de sorte é para iludir
os otários como nós. Vez que outra, de dez em dez anos, surge uma cozinheira
baiana que pegou sozinha, e isso só serve para incentivar os miseráveis a
seguir entregando os trocos para os milionários -, disse Carlinhos Adeva, que
além de advogado é um grande calculista. - Como sabem, Direito e Matemática são
ciências irmãs, disso eu entendo, eles cravam no rabo do povo usando as duas.
- Se eu pego um cara
desses... -, disse o Contralouco.
- Desses quem? - perguntou Ain
Cruz Alta.
- Do governo, ora -
respondeu o Contra. - Por tabela os milionários, quem vocês pensam que colocam os viados dos governantes lá? O povo? Não me façam rir.
- Vai ter que pegar muita
gente... - disse Silvana Maresia.
- Que eu saiba Matemática é irmã
da Filosofia, disse o filósofo Aristarco de Serraria.
- Irmã de todo mundo, pronto
- falou Carlinhos.
Clóvis Baixo seca a sua
caipirinha de vodka, pede outra, e prossegue:
- Vocês sabem que sou
crente, nestas alturas acho que fui, eu cria, ou eu cri. Mas estou achando que
o senhor Deus fez o mundo - não me perguntem como - e se atirou nas cordas.
- Papo bem cri-cri, disse
Ain.
- Quando falar com Ele, não
esqueça de perguntar sobre a matança pelo mundo - disse Zilá.
- E onde está o Amarildo -
arrematou Cícero do Pinho.
- Nada de cri, assim que é
bom, de repente tu cai no inferno, meu chapa, me disseram que lá é muito
melhor, tem festa, trago, e cada diabona, tudo pelada... aquelas sim, ajoelham
e já vão rezando, eu quando for para o beleléu já vou chegar avisando ao
Capeta: cai fora, meu, fique lá no teu canto com as diabas velhas, as menores
de 50 agora vão mudar de dono. Vou tomar o lugar daquele guampudo... já no céu
as anjas não são de nada, tudo frígida, cheias de nove horas, rezinhas pelos cantos, vai por mim -
disse o Contralouco.
Até as mulheres não contêm o
riso.
O velho Walter Schiru, que
hoje deu o ar da graça, entorna sua dyabla verde e toma a palavra:
- Deus gosta mesmo é dos
políticos, lembram, né?, aquele deputado que acertou duzentas e tantas vezes na
loteria. É isso aí: antes a gente tem que roubar do orçamento nacional, depois
esquenta o capim jogando na loteria, simples assim. Muito tempo atrás também
teve um prefeito de Santos que era abençoado.
- Esquenta o capim? –
perguntou Cícero do Pinho, ainda novinho nessas gírias.
- Lava a grana, meu, as verdes - explicou
Jucão da Maresia.
- Tá, mas diz aí, Baixo,
para quando programaste o suicídio? - diz Jussara do Moscão, provocativa.
- Bem, não é pra já, antes
tenho que terminar uns servicinhos. Só aqui no bairro tem umas cinquenta
tiangas que não, bem, ainda não namorei. Imaginem na cidade inteira. E preciso
repetir a dose com as que já frequentei, o negócio começa a ficar bom a partir
da segunda vez.
- Mas não vai pegar os
milionários e os caras do governo? - espantou-se o Contralouco.
- São muitos, não daria tempo,
prefiro um papo com o cara que fez esses bichos, responde o Clóvis.
- Bem, pelo que entendi Deus
não tem o que fazer, pode esperar pra te levar pro andar de baixo, disse Tigran Gdanski.
- Se eu pego um cara desses,
disse o Contralouco.
- Quem, Contra, Deus? -
ataca novamente a profa Ain.
- Deus não, Deus me livre,
mas os seus serafins, querubins, enfim, os aspones, essa catrefa que só coça o
saco.
O botequim desaba em
gargalhadas. Wilson Schu se encaminha ao tonel no meio da rua, vai deitar os
espetos. Cícero do Pinho tira o violão da capa, Chupim da Tristeza também
desencapa o seu pandeiro, o cavaquinho ainda não chegou.
Na curva da esquina do Beco
da Fonte apontam Luciano Peregrino e Lorildo de Guajuviras. No outro lado
surgem a doutora Jezebel do Cpers e Nicolau Gaiola, o teatrólogo insone. A
noite promete.
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