viernes, 12 de noviembre de 2010

Na cama de outro - Parte 4 (final)

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Por Síndia Santos*

Vaguei pelo quintal num mês de separação. Quintal que guardava poeira, mato que crescia entre as pedras, subia pelas paredes. Quintal que sussurrava em ameaça: a vida reivindica seu espaço, não há como escapar!

Uma teia de aranha cortava o teto da garagem. O perverso inseto negro estava lá, longas pernas desconfiadas. Negra e ágil. Negra. Negra e bela. E com sua beleza caminhava devagar. Dia após dia alimentei-a com baratas e moscas mortas. A aranha causava-me arrepios no interior da pele, punha cada pêlo em polvorosa. Seu movimento cuidadoso me seduzia; havia algo de atroz que seqüestrava meu olhar. Ela era uma aranha, um ser negro venenoso de medo, com pernas longas de raízes de medo. Mas medo do que?

Todas as noites ela se arrastava em busca dos insetos que sua teia colhia durante o dia. Medo de quê, se essa traiçoeira agia pelas costas, recolhia-se amedrontada ao canto do telhado sempre que sua teia balançava.

Medo, ela tinha medo e passou a vida inteira no canto do telhado até que um pássaro, num vôo premeditado a capturou. O fim, no bico de um passarinho, bicho frágil que não causava medo. O passarinho com o seu canto não tinha medo de viver. Voava e mesmo que uma pedra o fizesse cair dos céus, ele voara a vida inteira.

Eu não era passarinho, mas feito o mito do passeio das almas de Platão ganhei asas, num amor que me trouxe lembranças de acontecimentos que vi quando andava pelo paraíso. As asas me tornaram anjo-pássaro-purificado. Anjo capaz de amar; amor é tudo o que move, diz a letra da canção. Eu me movia.

Tanto amor e fim. Fui embora. Ficar só era desejo latente. São Paulo, a maior metrópole da América Latina, cidade fria e cruel me acolheu. Fui embora porque nem amor nem ódio seguravam-me de pé. Fui-me porque não estava mais perdida, perde-se aquele que quer se encontrar, me encontrara. Restava saber o que era aquilo em vertiginosa existência à minha frente.

Aquilo era alguém que olha pela janela, num vazio tremendo, buraco sem passado, barco à deriva, folha ao vento, alguém que olha pela janela em busca de vida, de outras histórias, alguém que ri quando o marido desajeitado varre a casa com afinco, que se comove quando a mãe sai à varanda em busca de ar com o bebê nos braços, a amamentá-lo, alguém que se distrai com o porre dos adolescentes na festa do apartamento em frente, alguém que ouve o galo dos chineses da mercearia suja cantar, transformando a noite em dia. Que alívio, o dia!

A claridade trouxe a miragem de uma bruxa com lenço amarrado na cabeça e calças mijadas, com pés de unhas grandes e enegrecidas que pisavam na calçada suja, agitando-se de um lado ao outro em gritos de coisas incompreensíveis, numa voz ritmada de menina que destoava das rugas do rosto.


Foi a última imagem que vi antes de me atirar do nono andar, do número 180 da Barão de Campinas. Uma queda rápida na ansiedade de descobrir quem eu era. E eu não era a mesma pessoa que olhou para baixo e teve fé ao não acreditar. Pisei no nada sabendo que aquele vácuo não me sustentaria. No dia anterior, numa esquina, uma moçoila, de saias curtas e barriga saliente fez-me um convite à diversão; as suas costas uma escadaria encardida. Um homem vestido de mulher, tão desencontrado quanto eu naquela vida.

Parei. Havia prazos que não poderia cumprir, não estava pronta; amores que não poderia amar, não estava pronta. Na vida, eu era uma prostituta sem malícia que não poderia sobreviver.

Fechei os olhos, estava no coração de São Paulo, com suas ruas que levavam a canto algum. Sentia batidas pulsarem em minhas têmporas e inundarem meus ouvidos. Tum-tum, tum-tum, tum-tum, Srvam, bibi-bibi. Uma pomba parou perto da janela, nos encaramos por alguns instantes, não nos reconhecemos. Cansada ela se lançou ao ar alçando vôo para longe. Não muito. Várias outras apareceram e seguiram o mesmo caminho.

Algo acontecia dentro de mim que não sabia explicar. Era uma mutação que horas me envelhecia e horas me punha insana. Não cria mais no que via, podia passar através de portas, mas esse encontro doía. Doía porque me modificava e porque não queria me misturar à madeira da porta, madeira morta. Queria passar através dela.

Lá embaixo os carros continuavam a enviar sangue ao coração de São Paulo numa música sem ritmo que entontecia.

Lá na frente, meu marido caminhava de um lado ao outro. Passos de um homem que mergulharia com maestria num novo corpo, descobrindo com sutileza outros prazeres, avançando e conhecendo.

O que me tortura é o bálsamo de meu coração. Meu marido não é mais o que foi; a criança ingênua que dormiu em meus braços, que chorou sobre meu corpo não existe mais. Morreu quando meu sofrimento me renasceu.

Lá atrás, deitamos numa cama de areia e o céu nos presenteou com estrelas que caiam. Um pedido!

- Alguém com quem eu possa sentar e olhar a linha do horizonte.

É possível tocar um coração fragmentado. Minha alma foi banhada com lágrimas pontiagudas que se perderam num instante que eu não poderia alcançar. Era longe, tempo de terra seca que não quer ver o mar contido num olhar, aquele primeiro que nos uniu.

Marejou, meu corpo inteiro marejou. Quem rachou o céu que nos protegia? Sim foi amor, agora posso ver na pontinha do rastro do cometa que nos transformou.


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* Síndia Santos é jornalista e escritora e vice-versa. Catarinense ao brotar, mas se houvesse um lugar chamado Humano eu diria que é humanista, que o é acima de tudo, cavouca até sangrar as mãos e o coração e tudo para que seja aqui na Terra esse sonhado lugar, hoje radicada no Rio de Janeiro. Alma do blog "Fiandeira" e "louca", que é como nosotros sem predicados chamamos os iluminados de atar com estrelas inquietas rodando na alma, essas meninas cintilantes não param e me confundem. O conto dispensa comentários, 


Síndia tem muitos nomes mas tuaregue não é, é minha amiga de longe e logo estará explodindo com livro na praça. Saúde, Síndia! Amada! Sou teu fã.

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