sábado, 19 de octubre de 2013

Éramos assim

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Hoje falei ao Carlos Valle (Salve, Palmeira das Missões) de uma cena que presenciei quando menino. Mas esqueci de dizer algo muito importante, que me marcou para sempre.

Como sabe o País inteiro, GRENAL aqui é guerra, a tremura que dá, as mortes do coração, sai da frente, é de chorar. 

Falo de antes, agora não sei. 

Ouvi falar de gangues de bandidos sustentados por bandidos que dirigem os clubes, em São Paulo e outras localidades, mas não sei.

Em dia de grenal os institutos de cardiologia ficavam atentos, prontos, todos presentes, nada de folga, todo mundo dobrando serviço, os hospitais se reforçavam com voluntários...

Veterinários se escalavam, ajudando, advogados tiravam o pulso das pessoas, todo mundo virava atendente, só havia duas tribos: os que estavam no estádio e os "médicos". 

Eu entendia um tiquinho de galos de briga, daí que cuidei de muitos gremistas e colorados, bico torto, hein, meu? Essa pegou na orelha, de pua, mas dá nada. Babaca, cair na quina, andou bebendo, falta de laço. Além do pessoal lá dentro, os bares do entorno superlotavam. Porém coisinhas de bebedeira, poucos. 

Os que morriam mesmo era do coração. Cem por grenal, por baixo. Se não morriam na hora, morriam em casa, aí as estatísticas não registravam.

Na época a turma não ganhava 600 mil por mês nem saía se beijando com o adversário nas terríveis derrotas, na carinha do povo, os atletas não eram vagabundos, respeitavam o torcedor, tudo pelos ensinamentos dos dirigentes, que também não eram.

Mas nesse dia não fui voluntário de galos de briga, nesse grenal eu fui como torcedor. Como perceberão os amigos, eu tinha 20 anos e era solteiro, sonhador. Melhor 21.

Não somente em Porto Alegre os nervos ficavam à flor da pele, e sim no estado do Rio Grande do Sul inteiro, e repercutia nos gaúchos da Bahia, do Ceará (Salve Praia do Futuro), da Amazônia, do Paraná (saudades), de Montevideo, do Rio de Janeiro (salve Jacarepaguá, salve Leme), do topo do Himalaia e nos pirados que moravam em Vênus (estes todos colorados).

Se o espetacular Grêmio entrasse em campo com os reservas, uma desfaçatez, o medo aumentava mais nas hostes coloradas, imagine, perder para os reservas. Se o Inter fizesse essa besteira, tremia o pavilhão em preto, o azul sumia junto com a alegria.

Eu vi Bibiano Pontes, quarto-zagueiro do Inter, fazer um gol contra naquele Grenal, isto foi o que contei ao Carlos, numa atrasada na catega que encobriu o grande Gainete, que havia saído do gol para buscar.

Golaço, de chapa de pé direito, com perfeito destino aos braços do alemão (italiano? Amanhã vejo) que se vestia de preto. Como saiu, só viu ela passar por cima, estatelado...

Acontece. 

Era uma bela noite em Porto Alegre. O Beira-Rio congelou, "eles" gritavam, festa na casa do adversário. As torcidas eram meio a meio ou quase, um lado vermelho, outro azul.

(Será que era o Carlos Gainete?, tudo se mistura, acho que não, era 1973 ou 4 ou 5?, por aí)

No finzinho do jogo Bibiano Pontes, o maninho do grande Daison Pontes de Passo Fundo (Daison era o melhor zagueiro-central do Brasil, na catega e, se enfeiou a cena, é campeonato, bola para o mato, mas era meio brabo, daí que quando foi para o Flamengo meteu o braço num sem-vergonha, enfiou a cara dele na cerca... e, deixa para lá, parece que o sujeito era o técnico, disso os cariocas da plim-plim esquecem de falar, como aqui, em suas memórias de parcialidade), subiu para a área tricolor num escanteio, gesto desesperado, sonhando em recuperar o gol contra. Bateram, ele voou e fez de cabeça, pega!, adeus, empatando o jogo!

O estádio virou um inferno vermelho, o urro se ouviu lá no topo daquele Himalaia, mas...

No embalo correu a comemorar tentando abrir os braços, só tentou, não andou cinco passos e desmaiou na linha de fundo, de emoção. Meu Deus, morreu.

O que esqueci de falar ao Carlos, antes escrevi Sérgio (Xexéu, Padilha, Ronaldo, Tide, Zanchi, uma gremistaiada... até Fernando Conceição se listrou, puxa, não tem ninguém que ame o Peñarol aí?), é que naqueles segundos cruciais, horas, pois nesse momento um minuto são horas de pavor, entre os médicos correrem e chegarem até o moço para tentar reanimá-lo, um silêncio sepulcral se instalou em Porto Alegre. E se espalhou pelo mundo e além deste mundo.

Cabia cem mil pessoas no Beira-Rio, havia a "coréia", tempos em que os pobres que construíram o estádio podiam ir, a um pila por cabeça no intervalo, assistir em pé no fosso, com ardor.

O estádio inteiro congelou. Porém o que mais me chamou a atenção, eu de camisa vermelha atrás da goleira que um dia viria a ser a do relógio, coração aos saltos, não foi o silêncio em Vênus. 

Foi o silêncio na imensa torcida do co-irmão, Grêmio Futebol Porto Alegrense. Um silêncio ansioso, de respeito. 


Somente quando Bibiano ganhou éter no nariz, levantou-se indeciso, tentando se apoiar nos camaradas, e logo caminhou, meio cambaleando, estava bem, é que "eles", corações aliviados, voltaram ao normal.

Recomeçaram a nos chamar de filhos da puta.



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