viernes, 11 de diciembre de 2015

Santo de casa

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Há mais de vinte anos certa noite, que eu não tinha me tocado mas não era mais noite, e sim lusco-fusco do amanhecer, acordei o escritor, ativista do bem e outros bichos Gilberto Kieling às seis da manhã, ele havia se mudado de Porto Alegre para uma cidade de colonização alemã no noroeste do Rio Grande do Sul.

Eu ligando do baixo do Alto da Bronze em Porto Alegre, de noite atravessada de escrevinhação e há dois dias numa água de vinho tinto desgracida. Quem atendeu foi a mulher dele, voz de sono:

- Alô...
- Boa noite, minha senhora, gostaria de falar com o Gilberto.
- Ã, bom dia... o Gilberto está dormindo.
- Por gentileza, se possível queira acordá-lo, é importante, sobre um conto que ele escreveu.

O que faz a bebida.

Eu nunca tinha visto o Gilberto Kieling na vida e até hoje não deu no acaso de conhecê-lo pessoalmente. O número do telefone devo ter obtido na CRT, a telefônica estatal gaúcha à época, eu tinha alguma mulher por lá, isso antes de um viado lalau entregá-la para os estranjas, não a mulher, a telefônica, na maior picaretagem já vista no.... mania de mudar de assunto.

O cara dormindo mas ouviu algum zunzum e se mexeu de lá:

- Quem é (não lembro o nome da senhora), a esta hora?
- Alguém que quer falar contigo...

La veio ele, também com a voz ainda firmando do sono.

- Pois não, quem fala?

- Boa noite, eu me chamo (dei-llhe meu nome completo), o senhor não me conhece, só estou ligando para esclarecer uma coisa, com todo o respeito.

Eu com voz amistosa, identificado, ele não desligou na minha cara.

- Pois não, pode falar, já que estou acordado agora...

- Seguinte, prezado Gilberto: o seu conto A Criação (clique, publicado no blog em junho de 2012, duas décadas depois, com expressa autorização do autor) era meu. Claro que tu não me plagiou, até porque o tema vem de milênios...

Silenciou completamente o outro lado da linha, sem querer consegui a sua total atenção.

O conto trata de inveja, de pequenez em uma pequena comunidade. O reconhecimento, se vier, virá de longe, nunca dos seus amados, salvo se o nego vier de certa "elite", tipo o filho do prefeito. Um tema terrível.

Prossegui:

... vem de milênios mas eu tinha a mesma metáfora que tu usou: uma embarcação. Eu escrevi diferente, claro, outro modo de dizer a mesma coisa, outras palavras, sinônimos, outras vírgulas, outros pontos, mas lá estava ela, a embarcação. De onde é que tu tirou a minha ideia, homem, amei o teu conto, como falei eu diria de outra forma, mas rasguei o meu que estava pela metade e eu sabia o fim, tu disse antes.

Silêncio na linha. Uns dois minutos e o Gilberto falou:

- Se tu estava escrevendo sobre isso, com essa metáfora, tu sabe a razão de dentro de mim, basta olhar para dentro de ti mesmo.

Acabou ali a conversa, ali me flagrei que eu estava bêbedo.

Amenidades, muito obrigado, a gente se vê um dia, siga escrevendo rapaz, não desista, tu é bom, muito obrigado Gilberto. Abração. Abração.

Lembrei disso devido a uma ligação que recebi hoje às nove da manhã, o moço não estava bêbado para ligar ao amanhecer.

A propósito do conto "Fodido, mas contente", do meu livro Um Amor em Porto Alegre (Ed. AGE, 2015, capa e ilustrações do cartunista Nani e quarta capa de Carmen Medeiros).

Outro tema, mas o rapaz dolorido com este mundo dos infernos, me disse tu chegou antes, a metáfora era minha, a revolta, até o bailado de golpes, plantas e tacos de flamenco, de onde o senhor tirou isso?

Respondi o mesmo que o Gilberto havia me dito tantos anos atrás.

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