Bahrain, encruzilhada árabe
Protestos recomeçam, espalham-se pela capital e são reprimidos com lei marcial. Cumplicidade do Pentágono com o despotismo torna-se mais clara
Por Antonio Martins e Daniela Frabasile
Pescado do site Outras Palavras
A área diminuta (717 km², metade do município de São Paulo) e a população exígua (1,3 milhões de habitantes, como Porto Alegre) não evitaram que o reino de Bahrain se convertesse de novo, nos últimos dias, em ponto nevrálgico da grande revolta árabe, prestes a completar três meses. Novas manifestações populares desafiaram o rei Hamad. Além da Rotatória Pérola [Pearl Roundabout], no centro da capital, espalharam-se pelo bairro periférico de Sitra. Ao mesmo tempo, surgiram evidências de que o Pentágono age para interromper a revolução, de preferência fornecendo ainda mais armamento pesado às tiranias.
Ontem (16/3), o monarca declarou lei marcial e autorizou as tropas – inclusive estrangeiras – a usarem “todos os meios possíveis” para reprimir os manifestantes. Com apoio dos militares, a polícia atacou a Rotatória Pérola com bombas de gás lacrimogêneo e canhões de água. Havia cinco helicópteros circulando o local e ouviram-se tiros. Pelo menos dois manifestantes foram mortos e mais de 200 feridos. O governo afirma que também houve três vítimas fatais entre a polícia. Os militares foram encarregados de impor um toque de recolher das 16h às 4h da manhã.
A atual onda de protestos marca a reentrada do Bahrain na trilha do vendaval árabe. Em fevereiro, houve enormes manifestações pela democracia. A Rotatória Pérola transformou-se numa espécie de comuna popular, semelhante à da Praça Tahrir, no Cairo. Mas a mobilização foi interrompida em 18/2, quando, depois de promover uma jornada sangrenta de repressão, o governo acenou com negociações.
Quando ficou claro que o diálogo seria em vão, os protestos foram pouco a pouco retomados. Intensificaram-se no final da semana passada. Na semana passada, o rei Hamad avistou-se com o secretário de Defesa dos Estados Unidos, Robert Gates. Em seguida, apelou para militares estrangeiros. No domingo, a pedido da realeza, mil soldados dos países que compõem o Conselho de Cooperação do Golfo (GCC, em inglês) penetraram no território do Bahrein, para tentar conter a onda de protestos, retomados no final da semana passada depois de um mês de interrupção. A tropa estrangeira é constituída majoritariamente por sauditas.
O GCC reúne as seis monarquias do Golfo Pérsico próximas de Washington: Arábia Saudita, Kuait, Emirados Árabes, Qatar e Omã, além do Bahrain. Sua intervenção militar, na sequência da visita do chefe do Pentágono, voltou a indicar que os EUA estão agindo de modo intenso para frustrar a revolução árabe. Num texto publicado hoje, em Outras Palavras, o historiador e jornalista norte-americano Nick Turse expõe os meandros desta interferência. Ela sugere que o Pentágono está aproveitando as hesitações da Casa Branca para promover uma espécie de política externa paralela, francamente favorável aos ditadores.
Os laços militares entre Washington e as monarquias petroleiras são um fenômeno antigo, lembra Turse. O minúsculo Bahrain adquiriu nos EUA, nos últimos anos, dezenas de tanques, helicópteros, armas ligeiras e munição de todos os tipos. Só o volume de projéteis de fuzil calibre “.50” adquiridos, ironiza o jornalista, seria suficiente para matar quatro vezes cada cidadão bahrainiano…
Mas esta relação assumiu características peculiares nos últimos seis meses. O Departamento de Defesa passou a ver nas monarquias árabes endinheiradas solução para um problema que o atormenta: a provável crise nas empresas de armamentos norte-americanas, quando a Casa Branca for obrigada a reduzir gastos militares.
Apesar de contornada até o momento, esta redução é considerada inevitável, por grande parte dos analistas políticos. Sobre-endividada após dispender fortunas no socorro aos grandes conglomerados financeiros, Washington fez, este ano, cortes profundos no orçamentos dos serviços públicos. Não será possível sustentá-los sem reduzir também os imensos gastos militares. Para impedir que a indústria bélica norte-americana seja duramente afetada, o Pentágono, adotou duas iniciativas complementares.
A primeira é uma política insistente de lobby, que procura convencer grandes investidores institucionais a direcionar uma parte maior de seus fundos para a empresas de armamentos. A segunda é um esforço para que aliados dos Estados Unidos, hoje em condições financeiras mais tranquilas, multipliquem suas encomendas de armas – substituindo as compras que as Forças Armadas norte-americanas podem não ser capazes de manter. Uma destas gestões resultou, há meses, num contrato multibilionário. A Arábia Saudita adquiriu, junto à Boeing, Lockheed e outras mega-empresas, 60 bilhões de dólares em armas de alta tecnologia.
Para tal projeto, destaca Nick, a substituição das tiranias árabes por um conjunto de democracias comprometidas com a paz seria trágica. É muito conveniente manter no poder os tiranos aliados. Por isso, o Pentágono teria conseguido neutralizar o discurso já hesitante do presidente Obama. É sintomático que a própria retórica da Casa Branca sobre o Oriente Médio tenha involuído, nas últimas semanas: ao invés de frisar a importância de fazer valer “vontade popular”, ela agora enfatiza a “estabilidade”.
Os interesses políticos e econômicos de Washingon na região são múltiplos. Bahrain é a base da Quinta Frota, que patrulha o Golfo Pérsico e o Oceano Índico. É também, uma das portas de entrada para a Arábia Saudita, aliado fiel e maior produtor mundial de petróleo. Mas o ensaio de Nick Turse revela algo espantoso: na relação com o Oriente Médio, o Pentágono está, pouco a pouco se revelando “mais poderoso que os ideais democráticos norte-americanos; e mais poderoso até mesmo que o presidente dos Estados Unidos”…
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