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Por Marcelo Coelho
O major bateu na porta do
quarto do hotel. Quem abriu a porta - estamos em pleno regime militar - foi o
advogado Sobral Pinto.
Tenho ordens, disse o major, para levá-lo preso. O velho Sobral não se
intimidou. O senhor tem ordens de um general, disse ele. Entendo que um major
obedeça a um general. Mas - e o homenzinho se exaltou - eu é que não obedeço a
ordens suas!
"Preso coisíssima nenhuma!", explodiu o advogado. Ou melhor:
"prejo coijíssima nenhuma", terá dito, com as gengivas de quem já
tinha mais de 70 anos naquela época.
No comício das diretas da Candelária, em 1984, a mesma vozinha trêmula recitou
para centenas de milhares o primeiro artigo da Constituição: "Todo poder
emana do povo e em xeu nome xerá ejercido". Sobral Pinto estava com 90
anos.
Um documentário sobre ele entrou em cartaz faz pouco tempo; o Espaço Itaú Frei
Caneca exibe-o num único horário, às 18h30.
Dirigido por Paula Fiuza, neta do jurista, o filme é uma oportuna homenagem a
um dos cidadãos mais corajosos e íntegros da história republicana. Íntegro
demais, talvez, para um documentário completo.
Bem que, no filme, tenta-se mostrar algo que contradiga a imagem do paladino
constitucional.
Era passional, desequilibrado, injusto até a medula quando ouvia no rádio um
jogo de futebol, contam os parentes. Não ia nunca aos estádios, contudo.
Católico das antigas, puniu-se até o fim da vida por ter tido um caso extraconjugal,
há muito sepultado, mas nunca esquecido.
Haveria aí bom material para uma obra de ficção: o advogado que luta pelos
clientes, que os tira da cadeia, que consegue absolvições, nunca perdoou a si
mesmo, nem foi totalmente libertado de suas culpas.
O assunto é abordado de passagem, entretanto, num filme que se concentra, para
uso das gerações mais novas, no exemplo incontestável de coerência civil que
foi a vida de Sobral Pinto.
Faltam imagens, claro, de épocas mais remotas. Quase só vemos o velhinho de
chapéu preto e guarda-chuva. Há fotos, contudo, da atuação de Sobral Pinto
quando foi defender Luís Carlos Prestes, encarcerado pela ditadura Vargas.
Como se sabe, o advogado, já com seus 50 anos, invocou a recém-criada Lei de
Proteção aos Animais para garantir condições mais dignas ao líder comunista.
Talvez tivessem, os dois, algo em comum.
É verdade que Prestes, seguindo a linha do partido, passou a apoiar Getúlio
logo em seguida. Podia ser uma contradição do ponto de vista pessoal, coisa
praticamente desumana quando se pensa que Getúlio mandou a mulher de Prestes,
grávida de sua filha, para morrer num campo de concentração nazista.
Seja como for, estava em jogo uma mesma firmeza de propósitos, uma mesma
teimosia, um mesmo sacrifício que, no caso de Prestes, nos horroriza, mas no
caso de Sobral Pinto causa admiração. A longevidade desses dois gêmeos, desses
dois opostos, talvez se explique um pouco por aí.
Durante a ditadura militar, observa com razão o historiador José Murilo de
Carvalho, era provavelmente mais fácil fechar o Congresso do que prender Sobral
Pinto. A fragilidade, assim como a velhice, tem suas compensações, e podemos
sempre esperar que, em alguns casos, até a truculência tenha seus limites.
Foi o que permitiu, por exemplo, que alguns advogados conseguissem vitórias,
obviamente reduzidas, até mesmo em momentos de furiosa repressão militar.
Adversários do regime eram presos sem nenhuma ordem judicial, levados sabe-se
lá para onde, e submetidos à tortura.
Juridicamente, aquilo era mais um sequestro do que uma detenção. O mecanismo do
habeas corpus teve de passar praticamente por uma pirueta interpretativa, pelo
que conta um advogado ouvido no filme. Em vez de ser um recurso para libertar o
preso, foi usado para que, ao menos, os familiares pudessem localizá-lo - e
para que o regime admitisse, oficialmente, tê-lo agarrado sem nenhuma
formalidade legal.
Tratava-se, numa palavra, de baderna, feita por militares em nome da ordem e da
luta contra a subversão. Memorável, a esse respeito, a frase de outro jurista,
acho que Pontes de Miranda, que se recusava a comentar o AI-5, por uma razão
bem simples: "o Ato Institucional número 5 não existe".
A beleza, a coragem, o sentido da profissão de advogado saem fortalecidos de
"Sobral - O Homem que Não Tinha Preço". O filme vem a calhar hoje em
dia.
Durante as ditaduras, há advogados que são verdadeiros heróis. Num regime
democrático, quando o lado acusador muitas vezes tem mais razão, o advogado não
conta com tanta simpatia.
Ganha mais dos seus clientes, mas paga um preço mais alto. Parece obstáculo, e
muitas vezes é, a uma justa punição. Não importa; sem a sua presença, ninguém
poderia dizer que a punição foi justa de fato.
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Lojinha Nani. Conheça ou confira as novidades!
Hace 4 meses.
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