viernes, 29 de noviembre de 2013

Boêmio sem amor. Que Vicente Celestino me desculpe...

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Três da matina em Porto Alegre. Chego em casa e na frente do prédio a gatona Black Bloc (isso admiro nela, além de toda aquela beleza envolta em preto brilhante, daquele seu jeito de rainha, educada, simpática, terna, ai meu Deus: ela é de chegada, na hora do pega não quer nem saber, e odeia banqueiros, como eu) me diz, vozinha provocante, olhos negros luzindo, rosto aberto, sincero: “Chegando cedo, vizinho, e sozinho...”.

Arriada. Respondo gudi naiti, gurias, e emendo que chego sozinho, dona, porque acabei de dizer ao garçom que eu quero que ela morra, o sujeito deve estar pensando que pirei, e sigo andando até a entrada, mas contando, um, dois, vôo até vinte milhões, até passar a vontade de dizer a ela Entremos juntos, querida, quero te mostrar a minha coleção de discos, sei que ela gosta de blues, iria desmaiar ao ver a negada de Saint Louis que tenho. Nada de magrela, essa é de parar o trânsito, coxuda, uns peitos..., ai meu Deus, mas sabe como é, vizinhança não mesmo, daqui a pouco o apê fica visado e perco a privacidade, imagine uma vizinha e parentalhas cubando, anotando, fotografando, tuas entradas e saídas, com quem veio e quem saiu, horários e tudo. Eu, hein. Ou pior: de repente arranjo uma aliança, para depois andar todo bobo alegre com uma argola no dedo anular esquerdo. Deixo isso para o seu vizinho, mero seu-vizinho mas que anda com cara de pai-de-todos por causa da grana desviada. Eu, hein?

Hoje à noite o amigo Ronaldo Giacometti lembrou de Vicente Celestino e saio à caça do meu elepê, pensando que as globos passam tanta porcaria enlatada dos terroristas americanos, e aquele filme, que fim levou? O disco eu tenho, vinilzão antigo.

Se a Blacbloca trintona, ou quarentona?, como diz Luciano: quarentã, que parece trintã, daqui a pouco ouvir O Ébrio vai pensar que eu pirei. Deixe que pense.

Tiro a droga dos sapatos e meias, o terno preto, atiro longe a gravata, ah..., outra coisa. Camisa regata do Peñarol, bermuda azul e chinelos de dedo. Ô vida boa, só me falta mulher, uma que não fique aporrinhando, cobrando, outro dia há de aparecer, eu hein, não saio à procura pelos bares porque sei que é bobagem, isso não acontece, espero sim que o inesperado me faça uma surpresa, como disse o Johnny Alf, algo natural, só assim para valer a vida. Espero, tenho tempo.

Puta que pariu! Achei!, depois de meia hora folheando capas, não sei quem vem aqui e deixa tudo em desordem, é a Nana Caymmi dentro do Scarlatti, o Emílio descapado, a Luciana Souza dentro do Jamelão, o Jamelão dentro do Nelson Gonçalves, que foi visitar o Nei Lisboa, que não tava em casa e deixou em seu lugar o Lucho Gatica, que cedeu sua moradia para a Elizeth Cardoso, a Elizeth que emprestou a casa para o Telmo de Lima Freitas, que cedeu seu rancho para o Adoniran Barbosa, o Roberto Ribeiro e a Clara Nunes espremidos dentro do Mozart, que está desaparecido com suas concertantes, não me surpreende, esse é louco de atar. A Libertad Lamarque se mudou para o Nat King Cole, adiante o João Nogueira reclama que assim não dá, ele e mais cinco apertados num álbum de jazz, um deles o Luiz Melodia, que exclama que loucura, isto parece a cabine 103 do hospício do Engenho de Dentro, a seguir ouço um choro de menina e vejo a casinha da Nilze Carvalho abandonada, isso não se faz, o Zeca é outro que tomou chá de sumiço, deve estar sorvendo uma gelada no bar da esquina, o seu Cartola deu uma saidinha junto com a Jovelina, encontro a Lia de Itamaracá aborrecida num disco que não é meu, o Arthur Moreira Lima emputeceu e meteu o pé na estrada, uma confusão danada, o Lúcio Cardim se instalou na residência do Lupicínio, bem, esses se entendem, mas o cara que mexe nos meus discos parece que bebe, só falta ter-me arrebentado a agulha, a última. Encontrei um maço de cigarros com o Aldir Blanc, de uma marca que eu fumava, ah, Vida Noturna, depois vou botar. Miro a imensidão de discos que não cheguei a folhear, achei logo o seu Vicente, só meia hora, e imagino o trabalhão que terei para organizar, uma semana, por baixo.

Não quebrou a agulha, não. Vicente inicia recitando toda a felicidade do mundo, vida boa, amigos, mulher: Nasci artista, fui cantor, ainda pequeno levaram-me para uma escola de canto. O meu nome, pouco a pouco, foi crescendo, crescendo....

Logo está dizendo alto "Já fui feliz e recebido com nobreza até, nadava em ouro e tinha alcova de cetim, a cada passo um grande amigo em que depunha fé, e nos parentes, confiava sim", a velha do apartamento de baixo bate com o cabo da vassoura no teto, acho que gostou da minha escolha musical, me empolgo, e chego à sacada com um copão de uísque na mão, o vozeirão do cantor me segue, inundando a Cidade Baixa, bah, me emociono ao pensar que alegro as pessoas, e vou espiar a mulher de preto lá embaixo, me fazendo que é por acaso. Preciso me organizar, amanhã arrumo os discos, pois algo me diz que esculhambei mais do que já estava.

Devolvo o aceno da Blacbloca que segue na entrada do edifício, de lero com umas Blacbloquinhas. Ela abre um enorme sorriso e lá de baixo exclama: “Pirou, boêmio lindão?”. As pequenas riem risinhos curtinhos.

Arriada, ora lindão, com esta cara. Pirei, sim, linda é a tua bundinha, me aguarde, penso, e abano de novo, começo a achar que não tem nada de mal tomar uma bebidinha e trocar uma idéia com a moça, somos "de maior", e assunto teríamos, pois outro dia, quando me viu passar de camisa com o 3 nas costas, listrada em amarelo e preto verticais, ela sorriu e disse que sempre amou o Peñarol, desde menina. Ai meu Deus. Volto para dentro, agora com um calorão no peito.

Será que as alianças estão caras? Essas joalherias são um assalto, mas faz tanto tempo a última vez, talvez hoje não seja tanto assim, na época eu que ganhava muito pouco, é isso. A música do seu Vicente deixa a gente indeciso, vai que. Que nada, não quero nem saber, azar, ele que me desculpe, para mim há de dar tudo certo. Quando eu for à joalheria no caminho comprarei um capuz. 

Corro novamente à sacada, ela me olha e com as mãos sinalizo que estou descendo, ela ergue os braços ao céu, em direção à sacada, com o corpo dizendo, reclamando, pedindo, Vem, seu bobo, há meses te namoro! Ai meu Deus. Desço assoviando o samba do João, cabeça posta na letra do Aldir, "...mas hoje eu estou de bem comigo, e isto é difícil...".

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