Porto Alegre, 24 de junho de 2014.
Prezada amiga Haidée
Prezada amiga Haidée
Camarada
gateira, escrevo para mandar e pedir notícias, os anos vão passando e a gente vai esquecendo uns dos outros. Aqui família bem, minhas gurias me abandonaram, de casa, né, posto que foram tocar em frente as suas vidas. Pai sofre, ainda bem que são muitas, sempre aparece uma que outra para levar um papo de dois minutos.
Veja só o que me aconteceu. Tudo começou com um sonho de algo que nunca tinha lembrado: eu com 12 anos, subindo a rua da Vila Nova, lá na cidade da qual fugi, assoviando, as pessoas colocavam cadeiras na rua, na calçada, noites de luar, verão. Passar por eles me dava um frio, nunca olhei para os lados. Nove da noite, ao passar tangueando ouvi de um velho, com murmúrios de aprovação das velhas, todos com mais de 20 anos, ou 22: "Olha como o guri assovia bem, La Cumparsita, flauteado...".
"E com floreios", disse uma velha de 19 de quem reconheci a voz, era minha parente longe. Joguei a cabeça mais para cima, para trás, grudei os olhos nas estrelas lá em cima, em desafio ao mundo, e segui caminhando, sem poder impedir meus ouvidos de gato. Ninguém me gostava naquela cidade, embora eu desse a vida por eles na hora do pega, se preciso fosse um dia, meus concidadãos, tudo por dinheiros que eu não tinha e porque eu era teimoso, e assoviei mais lindo ainda, agora com Sabor a Mi.
Depois piorou.
De tão nervoso e abalado esta noite consegui dormir apenas três horas, das onze às duas. Despertei com um pesadelo terrível, eu ensopado de sangue em meio a animais num ambiente branco, meta a esfaquear um sujeito. Saltei da cama e passei a procurar a minha adaga no quartinho de bugigangas. Encontrei-a devidamente embrulhada num pano, mais um saco de plástico por fora. Depois passei a remoer vingança. Deu-se o seguinte.
"E com floreios", disse uma velha de 19 de quem reconheci a voz, era minha parente longe. Joguei a cabeça mais para cima, para trás, grudei os olhos nas estrelas lá em cima, em desafio ao mundo, e segui caminhando, sem poder impedir meus ouvidos de gato. Ninguém me gostava naquela cidade, embora eu desse a vida por eles na hora do pega, se preciso fosse um dia, meus concidadãos, tudo por dinheiros que eu não tinha e porque eu era teimoso, e assoviei mais lindo ainda, agora com Sabor a Mi.
Depois piorou.
De tão nervoso e abalado esta noite consegui dormir apenas três horas, das onze às duas. Despertei com um pesadelo terrível, eu ensopado de sangue em meio a animais num ambiente branco, meta a esfaquear um sujeito. Saltei da cama e passei a procurar a minha adaga no quartinho de bugigangas. Encontrei-a devidamente embrulhada num pano, mais um saco de plástico por fora. Depois passei a remoer vingança. Deu-se o seguinte.
Ontem
levei o Gatolino e o Louco de Fome ao médico de gato, minha estréia nessa área,
porque ambos estavam com umas bolinhas na parte superior do corpo.
Sabe
o cara de 60 anos, que parece 80, que quer parecer ter 30? Sabe jogador de
baralho de carpetas de vigésima categoria, aquele que deixa a unha do mindinho
crescer para marcar cartas? Sabe um babão que tenta ares de dançarino de tango,
com o colete molhado de baba? Sabe o cara que em vez de prestar atenção no felino
fica olhando para o traseiro das mulheres com gatos nos braços?
Pois
é: o elemento era isso e mais um pouco, com aquela vozinha de taquara rachada.
Fui ao consultório desarmado, nem me lembro mais de arma de fogo, sei que entreguei
toda a artilharia à campanha do desarmamento, pelo que já estou há tempos
arrependido. Quer dizer, entreguei todas as armas menos uma, nunca se sabe o
futuro, fiquei com um 38 especial, mas o escondi tão bem que esqueci onde e
nunca mais o achei, sei que está aqui em casa, se for preciso outro dia boto
tudo abaixo e o encontro, mas lá na hora pensei em pegar um ferro qualquer, um vaso, para
arrebentar a cabeça do filho da, vai, da mãe. Ou uma corda para enforcar o
miserável, ando com saudades de fazer um nó de forca, a última vez que fiz foi
quando me desgostei com certo deputado. Ai que raiva, vem cada pensamentinho...
Como
sou civilizado somente lhe chamei a atenção, falando alto, com delicadeza:
"Ô, seu bosta, vai fazer o serviço ou não? Posso voltar outro dia se está
tão ocupado em olhar as bundas e os seios das senhoras".
Ele me
mirou, pensou bem na resposta que daria, e veio com aquele risinho de hiena, se
fazendo de meu amigo para as senhoras pensarem que eu estava brincando. Foi para
já, receitou isto e aquilo. Considera-se esperto, para completar o perfil.
Depois
do “exame” que fez me tomou 130,00 por gatinho. 260 paus. No total, perdeu dez
minutos examinando os dois. O Gatolino não queria, fazia Fuuuuuu e fugia pro
meu lado, um fiasco, voava pelos cantos pedindo socorro, eu tive que pegá-lo,
bater um papo e tal, e segurá-lo enquanto o Mr. Hyde Cat fingia que o examinava,
o Gatolino odiou o nojentão. Ao final meteu-lhe a pata na cabeça,
arrancando-lhe a peruca, bem feito. Na sua vez, o Louco de Fome só fazia Huummmm
de brabo, segurei-o também para o bandido passar-lhe a sua mão de pintar
catacumbas.
Eu
numa eme que ando... Paguei. Talvez volte lá buscar o meu e matar o filho da,
vá lá, da mãe.
A
dois paus o quilo de média qualidade, média nada, boa, 260 dá 130 Kg de arroz.
Com 130 Kg eu como dois anos e picos. As madames me confirmaram que 130 por
consulta é o preço que vêm pagando ao criminoso.
Dos
dez minutos que ele gastou, uns 7 eu levei acalmando o Gatolino. Mais um ou
dois com o LF, de modo que, dando de barato, ele trabalhou um minuto, outro
para rabiscar a receita.
Antes
de pegar em armas, preciso me informar. Então me diga, querida amiga, quanto
estão roubando, digo, cobrando, aí em Florianópolis?
Aqui, neste ponto, hoje de manhã pretendia encerrar esta missiva, mas apenas a interrompi. Agora três da tarde. Parei porque me deu na veneta e pouco antes do
meio-dia resolvi telefonar para o vagabundo, me identifiquei e tal, e disse:
- Seguinte,
meu chapa: você me roubou, seu puto, ou me devolve a grana ou vou cometer um
veterinariocídio.
- O
quê? O senhor está me ameaçando?
-
Não, senhor, não estou ameaçando: estou prometendo.
-
Vou telefonar para a polícia!
-
Pra dizer o quê, malandro? Que eu telefonei para avisar que os gatinhos não sararam graças
a ti? Com isso não dá nada, o resto tu está inventando. Mas agora me deu mais
raiva. Poderei te pegar amanhã como daqui a um ano, durma com essa, mas que vou
te pegar, ah, eu vou. E quando te pegar não estarei assoviando La Cumparsita nem Sabor a Mi.
- Como?!
Desliguei.
- Como?!
Desliguei.
Pois é, minha amiga, nada como a gente ser sincero com as pessoas, quem não se comunica, se trumbica, como dizia o velho palhaço. Há
pouco chegou um motoboy me trazendo um envelope com os 260. O homem foi honesto.
Mesmo
assim, mande me dizer quanto os picaretas estão cobrando aí, de repente passo a
levar o Gatolino e o LF passear em Floripa, em época de revisão médica, pode
sair mais em conta. Aproveitarei para visitá-la para tomarmos uns mates e colocarmos em dia as nossas conversas.
Saudades. Grande abraço.
Salito.
*
Li esse texto logo que te conheci. Fui ler novamente agora... não cheguei ao final. Emocionante. Parabéns, amigo. Besitos.
ResponderBorrarLi esse texto logo que te conheci. Fui ler novamente agora... não cheguei ao final. Emocionante. Parabéns, amigo. Besitos.
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