viernes, 20 de junio de 2014

Na primeira dividida

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Fui fazer o exame de varredor do Congresso, eu moro no fim de Planaltina, me viro, meu, daí que o exame era às duas da tarde mas às nove da manhã eu tava na área. Esta é a minha grande oportunidade. É trabalho certo, varrer, cara, só varrer. Com a direita e o toco é um abraço. O velho Souza do Riacho Fundo me deu a letra, falou com um cara importante, um que vai pegar michês no Riacho 2, me indicou pra ele. Fui meio sem jeito, não gosto de pedir bexiga, mas o Souzão disse que se eu não comer outro come. Nada de frescura com o cara, ele falava do emprego.

Passou, que sufoco, agora tou aqui, sentado na frente do casebre, enquanto a mulher mexe com alegria na panela de feijão, eu com um liso de branca de dois dedos daqueles de mão aberta do mindinho ao polegar, bebendo, eu mereço, ela sabe. Eliete volta e meia sorri feliz, chamando, não quer que eu fique na chuva, com um sinal digo deixa eu, morena, e lembro, lembro de mais esta.


Salário de 7 paus. Por 7 paus eu varria até a mãe deles. Éramos oito os candidatos, para quatro vagas, alguns dos caras sorriam, com jeito de estou aprovado. Uns bundinhas.

A única pergunta foi o que eu achava da Copa, do futebol. Por aí. Saquei, eles pensavam em entender a minha vida, a vida da Eliete, do Maicon e da Xuxita, todos da Silva, minha família, pelos meus sentimentos de futebol. Eu, hein?

Me deram papel e caneta. Escrever eu sei mais ou menos bem, só me falta o braço esquerdo que perdi aos dezessete anos, o hospital recusou, mas o tenho até o cotovelo. Respirei fundo, e caprichei nos garranchos. Odiei os caras que me olharam daquele jeito e seguiam olhando.

Sou do tempo em que não se xingava no ouvido o adversário: "Comi tua mãe, seu viado". Isso fazem rindo, as famílias deles rirão no findi, durante o churrasco entre atletas de clubes amigos, rivais, como falou um sabão da globo outro dia. Sabe o que o fulano me disse?, e riem. Nem andava feito gazela de agarramento na grande área. Nada disso, nada de papo nem agarramento, se gosta de pegar em homem, meu caro, nada contra, mas errou de lugar e de homem, vá pegar no pau de quem quiser, aqui viemos jogar futebol.

Muito menos amizade de milhão, esse o grande problema, enquanto o povo passa fome, acham que não sei?, os carinhas ganham milhão por mês. Viram gazelas em campo, afinal são amoitados com os cartolas no roubo, o centroavante amiguinho amanhã será companheiro do clube que pagar mais pelo nada que faz, a não ser agarramento, umas putas. Putas de milhão, meu.

Não mesmo. Não era assim que eu queria. O senhor vai entender.

Na primeira dividida, lá no meio de campo, longe da área, ele ia parar no Japão, para saber que aqui não, violão. Aí tu diz, sem gritar mas para ele e seus companheiros de ataque e todo seu time ouvirem bem: na próxima vai ser pior. O juiz também ouve, e daí? Mas sem raiva, na boa. E ele que tente pra ver. Se tentar, aí já viu, sem perder a cabeça, mas ele sai de maca por acidente. Quem sabe, sabe, não há tevê que perceba. Brutamontes e amiguinhos de findi não sabem.

E ele que se cuide, se entrar corrido, pode levar um balãozinho de costas, para desmoralizar.

Ao fim da partida, seu, o bem-bom deles vem te cumprimentar: vocês venceram, muito se deve a ti. Quer trocar camisinhas. Você tira a sua, dá de presente ao fã, e diz: homem não tou fazendo, a tua entrega para a maninha, diz que eu mandei pra ela.

Zagueiro que se preza empurra os companheiros do meio e da frente pelo exemplo, naquela de eles pensarem: se o cara está se matando lá atrás, até apelando, a gente também precisa se mexer, mostrar a que viemos. Algo assim.


O Brasil vai se fuder nesta Copa.

Não sei se eu e muitos colegas, se tivéssemos um começo certo, comida, apoio, roupas de jogo, aprendizado, poderíamos ter sido grandes atletas. Não sei. Só sei que assim... melhor não ter sido.

Isto é o que eu penso sobre futebol. 

Obrigado.

Entreguei a prova. Sabia que estava reprovado, os outros caras eram capachos de políticos, só vieram fazer fita.

Vou embora pra casa, tirar esta roupa apertada do irmão da Eliete, e vou mentir de novo pra ela e pras crianças que deu tudo certo. Na parada de ônibus me despeço dos outros otários sem políticos, abraço, mano, se faltar rango pinte lá em casa, a gente se ajeita. E começa a chover, o ônibus não vem, um protesto trancou tudo lá na saída, me diz um cara de radinho. Tomara que  os carinhas que protestam pelo menos matem alguém da repressão, duvido.

Pra mim chega. Vou pegar aqueles caras do Congresso, sozinho, mano a mano, um por um, sem pai nem político pra ajudar, antes que a comida termine. Vou cortá-los ao meio. Já que não posso mais jogar, vou pra dividida de outro jeito.

Duas horas depois chego em casa, ensopado e rindo para a Eliete. Beijo ela na boca, corresponde com saliva quente, adocicada, pastosa de tesão, a nega é assim, se beijar na boca se molha, depois diz ai, homem, todo molhado, se esquiva contente, se fazendo, dou gargalhada, abraço minhas crianças com felicidade, Papai chegou, passou no exame.

Aí vim aqui pra fora, na chuva, olhar pra eles.

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