sábado, 21 de junio de 2014

La Nave del Olvido (1)

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Só lembro que estava barbudo de seis meses, unhas compridas nas mãos e nos pés, quebravam, doíam, e sujo, sujo, sujo. Fezes grudadas na grossa camisola marrom, por baixo nu, com feridas causadas pela sujeira, me ardiam as partes íntimas. Antes disso somente um vago semblante de mulher, uma espada, colocava o corpo na frente para defendê-la, e a seguir coberto de sangue. Névoa, lembrança fugidia, passava e me enlouquecia, onde está? Não voltava.

Viva na mente apenas a última cena, esta sim: eu já dentro do enorme barco, com mais uns duzentos entre homens e mulheres, no leme um louco que berrava palavras incompreensíveis, era um dialeto do lado esquerdo da Grécia, um estrangeiro. Vi de longe, a uns cem metros no cais, quando Michel chegou gritando, atirou-se sobre os soldados com raiva, não façam isso. 


Já tinham feito. Ouvi seus gritos enquanto o espancavam, gritava meu nome. Fomos navegando mar adentro, sem comida, sem água, com aquele homem dirigindo, ele robusto, descomunal, espumando pela boca, urrando. Dei-me de que eu estava na temível nau dos insensatos.


Sete dias depois os que não morreram ou gemiam se contorcendo, por beber água salgada, começaram a beber o sangue uns dos outros. Luta feroz, ninguém tinha arma. Pedaços de pau, alguns ferros arrancados da embarcação, unhas e dentes. Quando ameaçavam vir para o meu lado viam as lascas pontudas que improvisei, uma em cada mão, e então iam para os mais fracos. E comeram os velhos e velhas, mulheres, logo ninguém se entendia mais, precisei me defender, eu abatia e logo muitos caíam em cima, comendo os corpos, suas bocas vermelhas de sangue e o olhar de desvario. 


Eu mirei o grandalhão do leme, que já tinha matado três pelo sangue. Fiquei com raiva ao ver como comeu uma moça franzina. Lábios tórridos, resolvi beber o sangue dele, se fosse preciso, ali já perturbado com tudo aquilo, sem saber de onde vim, quem era Michel, para onde íamos. Deus fugiu.


Quando não pude mais, vendo o bacanal de carnes e sangue, perdi a cabeça, alucinado saí do meu canto e o peguei por trás, metendo-lhe uma lasca de um barril seco na nuca, peguei bem, com a corrida e violência a ponta saiu no céu da boca. Ao abatê-lo e morder o seu pescoço com fúria é que me dei conta de onde estávamos. 

La Nave del Olvido. O risco me feriu o cérebro, explodiu, fiquei estatelado por um instante, parei, mas no desespero logo segui mordendo a sua jugular com mais força, com sede e fome, chupando o sangue que saía aos borbotões, queria comer seus olhos, sua bunda, tudo. No primeiro dia o sangue bastou. Todos morreram. Eu não, eu comi peitos, pernas, pedaços, restos. Quando não tinha mais nada, comi panos, madeira. E o mundo se acabou.


Deitado na proa da nave, naquele fedor, alguém me levantou pelas costas, para me fazer sentar. Levantou um esqueleto moribundo. Abri os olhos, tonto, mole, tornei a desmaiar. Senti água no rosto e agredi a quem não via, com últimas forças vindas não sei de onde, água, água, água. Seguraram-me com força, me imobilizaram, e me deram água aos poucos, agora eu urrava como aquele, mais água.




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