Tanto o Peco inticou comigo, que o meu pai não tinha cavalos, que por consequência eu não era de nada, que fiquei pensando na minha cabecinha que ele estava me chamando de pé-de-chinelo. Ele ria e continuava zombando. O meu pai tinha só galos de briga.
O Peco andava num cavalão enorme, lindo, do seu Borja, seu pai. Nunca vi cavalo mais alto, até hoje, lindo, eu olhava daqui de baixo aquela maravilha.
Dormi noites com aquilo, um bicho me mordendo, ora me chamar de pé-de-chinelo - que nunca chamou, era o modo de tratar que dizia. Eu era, se o assunto fosse dinheiro, mas essas coisas não se diz, sem saber o valor de dentro do outro ser humano. Coisa de criança.
Um dia, de tardezinha, defronte ao clube União Operária, em frente ao canto do estádio do Esporte Clube Palmeirense, o Peco falou de novo. Aí estourei: eu tenho uma égua que ganha do teu cavalo. Pronto, a desgraça estava feita. Eu não tinha égua coisa nenhuma, tinha galos brancos, prateados e vermelhos, mas só enchi os tubos, encheu, chega. Ele foi para casa buscar o cavalo, atamos a corrida na rua detrás do Palmeirense, onde morava o seu Nelinho, que eu muito admirava, lateral-esquerdo do Palmeirense que um dia vi sair ensanguentado de campo, erguido por homens apressados, antes que morresse.
Eu não sabia o que fazer, e agora? Vergonha não posso passar. E nos meus oito anos de idade desci a rua nervoso, indeciso. Criei coragem e entrei sorrateiro no pátio do tio, lá embaixo, enviesado à casa do seu Chiquito, grande domador, aqui ao lado da mãe do Russo e da Sara, e roubei a égua do tio João Fagundes.
A égua era o amor do tio, ligeira como nenhuma. Abri a cocheira, passei a mão nela, carinho no pescoço, uma mulherzona de assustar, mas ela veio, belíssima.
Saí com ela devagarinho, eu de a pé, sem camisa, descalço, só de calção, puxando leve, ninguém viu. Para não dizer que ela estava nua, tinha um buçal leve, tirinhas, que lhe cobria acima do nariz. Lá dentro, em cima, na casa, a tia trabalhava com uma loja de roupas e costuras, morri de medo que alguém saísse às escadas do fundo. Apertei o passo.
Ninguém viu.
Afastamo-nos, a égua e eu, e lá adiante montei nela. Em pelo. Peguei devagar as rédeas do buçal, e saímos a trote, dançando pela rua de chão batido, a linda e o ladrãozinho.
Quanto cheguei em frente à casa do mudinho Doracílio, que no futuro seria meu grande amigo, na quina de cá do Palmeirense, o Peco chegou com aquela lindeza de cavalo. Encilhado. Enfrenado. A corrida seria curta, até a esquina do União Operária, uns cem metros.
Emparelhamos e ele largou, se vamo!
Lá no União Operária a meninada na rua, esperando.
Vi o lindo cavalão sair disparado. E nós aqui parados, ela e eu. Soltei as rédeas e gritei, e inventei de cutucá-la com o garrão, dos dois lados ao mesmo tempo, peguei nuns nervos e saímos voando. A égua era louca. Segurei-me em suas crinas. Meu Deus, recordei que alguém falou que deitado vai melhor, para não cair, e me deitei feito índio, pernas encolhidas, me firmando com os joelhos.
A égua não corria, voava.
Em frente à casa do seu Nelinho olhei o cavalão e o Peco, ao passar por eles, eu cuidando para não cair, achei que ia morrer a qualquer momento.
E aí a memória apaga. Não recordo se caí, acho que não, se chegamos na frente, ela e eu, ou não. Estou certo apenas de que os velhos não me xingaram forte demais depois, disso eu lembraria. Forte foi, mas não me bateram. Nunca, nem em sonhos, não eram loucos de me ensinar uma coisa e fazer outra. Eram homens de bem. O moleque fez arte, pensaram, disseram não faz de novo e tal, mas no fundo gostaram.
De mim e do Peco, este outro ladrão de cavalos. Coisa de criança.
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