jueves, 30 de junio de 2011

Deus Lhe Pague

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O vídeo da postagem anterior, como sempre acontece quando vejo qualquer órgão de segurança em ação, me remeteu imediatamente para o mendigo de porta de igreja da peça teatral Deus Lhe Pague, obra-prima de Joracy Schafflor Camargo  (Rio de Janeiro, 18/10/1898 - 11/03/1973), jornalista, dramaturgo, cronista e professor, de 1932, até hoje encenada em todo o mundo. O primeiro grande ator a encarnar o mendigo foi o fantástico Procópio Ferreira (João Álvaro de Jesus Quental Ferreira, Rio de Janeiro, 8/7/1898 - 18/6/79), pai da Bibi, o Ator dos atores (na foto maior abaixo). O texto do Joracy foi levado às telas, imaginem, pela Argentina (Dios se lo pague, 1947, na última foto), aqui nada.

Aos amigos fuminhos, notem que a expressão "Só" (grifei em vermelho), à guisa de concordância, vem de longe.

Quanto ao vídeo, não me refiro à violência dos primatas, cuja bárbara ignorância causa espanto e repulsa, e por si só seria razão para que pegássemos em pedaços de pau e saíssemos à rua dar um fim nisso.

A culpa não é dos primatas. A culpa é dos chefes dos primatas. O poder político, mandalete de banqueiros, grandes ladrões de terras, "empreiteiros", globos da vida, et catrefa. Esses, razão por que eu daria tudo para crer em outro inferno, além deste paraíso feito inferno pela sua perversidade.

Remete para a famosa peça teatral pelo real significado dessas instituições.

Por que e a quem servem? 



DEUS LHE PAGUE
1ª parte.


Mendigo - Deus lhe pague.

(Olha para dentro da igreja, para os lados, para então, ajeitar melhor os jornais, a "bengala" e o chapéu, tomando posição cômoda e definitiva pra o "trabalho"... - Em seguida, entra Outro Mendigo - mesma idade, mesmos farrapos, mas de aparência pior, porque revela um grande abatimento físico. É mesmo esquálido e faminto - O Mendigo, distraidamente, à passagem do Outro, estende-lhe o chapéu:)

Mendigo - Ah! (Risonho) Desculpe... Não tinha reparado que o senhor é colega...

Outro - Ainda não fiz nada hoje, velhinho. Tenho cigarros. Aceita um?

Mendigo - São bons?

Outro - Hoje, até as pontas que consegui apanhar são de cigarros ordinários! (Tira do bolso uma latinha cheia de pontas de cigarros, abre e oferece).

Mendigo - Muito obrigado. Não fumo cigarros ordinários. Quer um charuto? (Tira-o do bolso).

Outro (Aceitando, espantado) - Olá!

Mendigo - É Havana! Tenho muitos! Custam 10$000 cada um.

Outro - Aceito, porque nunca tive jeito para roubar.

Mendigo - Nem eu.

Outro - Não foram roubados?

Mendigo - Foram comprados. Ainda não sou ladrão...

Outro - Desculpe. É que...

Mendigo - Não é preciso pedir desculpas. Não sou ladrão, mas podia sê-lo. É um direito que me assiste.

Outro - (Sentando-se na escada) - Acha?

Mendigo - Acho, mas sempre preferi trabalhar. Como trabalhar nem sempre é possível, resolvi pedir esmola, antes que fosse obrigado a roubar. Pedir dá menos trabalho.

Outro (Alarmado) - E é por isso que o senhor pede?

Mendigo - . O senhor conhece a história do mundo?

Outro - Não.

Mendigo - Antigamente, tudo era de todos. Ninguém era dono da terra e a água não pertencia a ninguém. Hoje, cada espaço de terra tem um dono e cada nascente de água pertence a alguém. Quem foi que deu?

Outro - Eu não fui...

Mendigo - Não foi ninguém. Os espertalhões, no princípio do mundo, apropriaram-se das coisas e inventaram a Justiça e a Polícia...

Outro - Pra que?

Mendigo - Para prender e processar os que vieram depois. Hoje, quem se apropriar das coisas, é processado pelo crime de apropriação indébita. Por que? Porque eles resolveram que as coisas pertencessem a eles...

Outro - Mas quem foi que deu?

Mendigo - Ninguém. Pergunte ao dono de uma faixa de terra na Avenida Atlântica se ele sabe explicar por que razão aquela faixa é dele...

Outro - Ora! É fácil. Ele dirá que comprou ao antigo dono.

Mendigo - E o antigo dono?

Outro - Comprou de outro.

Mendigo - E este outro?

Outro - Do primeiro dono.

Mendigo - E o primeiro dono, comprou de quem?

Outro - De ninguém. Tomou conta.

Mendigo - Com que direito?

Outro - Isso é que eu não sei.

Mendigo - Sem direito nenhum. Naquele tempo não havia leis. Depois que um pequeno grupo dividiu tudo entre si, é que se fizeram os Códigos. Então, passou a ser crime... para os outros, o que para eles era uma coisa natural...

Outro - Mas os que primeiro tomaram conta das terras eram fortes e podiam garantir a posse contra os fracos.

Mendigo - Isso era antigamente. Hoje os chamados donos não são fortes e continuam na posse do que não lhes pertence.

Outro - Garantidos pela polícia, pelas classes armadas...

Mendigo - Sim. Garantidos pelos que também não são donos de nada, mas que foram convencidos de que devem fazer respeitar uma divisão na qual não foram aquinhoados.

Outro - E o senhor pretende reformar o mundo?

Mendigo - Tinha pensado nisso, mas depois compreendi que a humanidade não precisa do meu sacrifício.

Outro - Por que?

Mendigo - Porque o número de infelizes avoluma-se assustadoramente...

Outro (Sorrindo) - E foi por isso que desistiu de reformar o mundo?

Mendigo - Foi. Abandonei a sociedade e resolvi pedir-lhe o que me pertence. Exigir é impertinência; pedir é um direito universalmente reconhecido. Dá prazer a quem se pede, não causa inveja. O senhor já reparou que ninguém é contra mendigo? Por que será? Porque o mendigo é o homem que desistiu de lutar contra os outros.

Outro - Os homens não precisam de nós...

Mendigo - Precisam, senhor... Como é o seu nome?

Outro - Barata.

Mendigo - Precisam, mas não dependem; e é por isso que nos olham com ternura.

Outro - Ora!... Quem é que precisa de um mendigo?

Mendigo - Todos! Eles precisam muito mais de nós, do que nós deles. O mendigo é, neste momento, uma necessidade social. Quando eles dizem: "Quem dá aos pobres, empresta a Deus", confessam que não dão aos pobres, mas emprestam a Deus... Não há generosidade na esmola: há interesse. Os pecadores dão, para aliviar seus pecados; os sofredores, para merecer as graças de Deus. Além disso, é com a miséria de um níquel que eles adiam a revolta dos miseráveis.

Outro - Mas quando agradecem a Deus, revelam o sentimento de gratidão.

Mendigo - Não há gratidão. Só agradece a Deus quem tem medo de perder a felicidade. Se os homens tivessem certeza de que seriam sempre felizes, Deus deixaria de existir, porque só existe no pensamento dos infelizes e dos temerosos da infelicidade. Quem dá esmola pensa que está comprando a felicidade, e os mendigos, para eles, são os únicos vendedores desse bem supremo.

Outro (Desanimado) - A felicidade é tão barata...

Mendigo - Engana-se. É caríssima. Barata é a ilusão. Com um tostãozinho, compra-se a melhor ilusão da vida, porque quando a gente diz: "Deus lhe pague...", o esmoler pensa que no dia seguinte vai tirar cem contos na loteria... Coitados! São tão ingênuos... Se dar esmola, um mísero tostão, à saída de um "cabaret", onde se gastaram milhares de tostões em vícios e corrupções, redimisse pecados e comprasse a felicidade, o mundo seria um paraíso! O sacrifício é que redime. Esmola não é sacrifício! É sobra. É resto. É a alegria de quem dá porque não precisa pedir.

Outro - O senhor é contra a esmola?

Mendigo - Sou a meu favor e contra os outros. A sociedade exige que eu peça. Eu peço. E foi pedindo que me vinguei dela.

Outro - Como assim?!

Mendigo - Porque, obrigado a pedir, fui obrigado a enriquecer!

Outro (em segredo) - O senhor é rico?!

Mendigo - Riquíssimo! Não tive outro remédio...

Outro - Há de me explicar como foi obrigado a ficar rico.

Mendigo - A sociedade é muito defeituosa, meu velho. Pela lógica, o mendigo deveria ser sempre pobre. Pelo menos, enquanto fosse mendigo. Entretanto, pobres, realmente pobres, são os ricos. Pobres de espírito, pobres de tranqüilidade, de fraternidade, e, às vezes, até de dinheiro!

Outro - Não estou entendendo nada...

(Um Senhor que entrara na igreja sai, visivelmente preocupado, agitado, indeciso. Outro estende-lhe a mão:) - Uma esmolinha pelo amor de Deus!... (O Senhor não dá).

Mendigo (Estendendo-lhe o chapéu) - Favoreça, em nome de Deus, a um pobre que tem fome!... (O Senhor dá e sai agitadíssimo - O Outro irrita-se)

Mendigo - Conhece esse sujeito?

Outro - Não.

Mendigo - É o Vieira de Castro, presidente do consórcio das fábricas de tecidos. Milionário. Tanto quando eu! Observou a aflição desse homem, procurando igrejas a esta hora da noite? Sabe o que significa um momento de contrição religiosa de um milionário?

Outro - Não.

Mendigo - Egoísmo. Luta entre eles! Miséria!... Pior do que a nossa!

Outro - Do que a minha?!...

Mendigo - Sim, porque a minha faria inveja ao homem mais rico do mundo... A minha miséria é a miséria mais confortável que há.

Outro - Mas não me explicou ainda como foi obrigado a fazer fortuna.

Mendigo - Pedindo e guardando. Fui obrigado a guardar, porque a sociedade me impedia de gastar. Esta roupa, que recebi como esmola, visto-a há 25 anos. Substituí-la por uma nova, seria desmoralizar a minha profissão.,. Logo, fui obrigado a economizar, pelo menos, o valor de dois ternos por ano... cinqüenta ternos. Vinte e cinco contos!

Outro - A 500$000 cada um?

Mendigo - É quanto me custam agora... Obrigado a comer os restos de comida que os outros me davam, calculo a minha economia, por baixo, em 6$000 diários... sem gorjetas.

Outro (Fazendo cálculos) - Cento e oitenta por mês...2 vezes nada, nada; 2 vezes 8, 16; 1 vez 1, 1; 6, 11 e vai, 2. Dois contos cento e sessenta por ano...

Mendigo - Em 25...

Outro - (Novos cálculos balbuciando e contando pelos dedos) ... Mais de 50 contos.

Mendigo - Acrescente agora outras despesas, como cinemas, teatros, esportes e certos luxos que me pareceram inconvenientes para um mendigo, e compreenderá como pode um mendigo enriquecer e um rico empobrecer.

Outro - Tem razão.

Mendigo - Nós vivemos acumulando as sobras da sociedade. E a sociedade pensa que as sobras não fazem falta... É a ilusão do lucro, porque não há lucro. O que há é uma necessidade menor no momento em que o dinheiro é maior. Quando a necessidade aumenta, o que era lucro passa a ser prejuízo. Se o senhor não tiver necessidade de comprar um automóvel, não sentirá falta do dinheiro que ele custa. Se o senhor não tiver nenhuma necessidade, o dinheiro que tiver no bolso será lucro. É sobra. Pouco se lhe dá deitá-la de fora. E nós, os mendigos, somos a lata de lixo da humanidade.

Outro - Mas o senhor é rico mesmo?

Mendigo - Sou. Mas não tenho culpa nenhuma disso...

Outro - E pretende continuar esmolando?

Mendigo - Até o fim da vida. Não me dá trabalho nenhum... Não pago imposto, não estou sujeito a incêndio nem a falência...

Outro - Mas, se vivesse dos rendimentos, também não precisaria trabalhar. Por que não emprega o seu dinheiro na indústria, no comércio ou na lavoura?

Mendigo - Para que, se não tenho necessidade de arriscar o meu capital?!

Outro - Em compensação, ganharia muito mais.

Mendigo - Puro engano. O lucro maior não é a maior quantidade de dinheiro que sobra. No comércio ou na indústria, quem ganha mais precisa gastar mais. No meu caso, dá-se o contrário: quanto mais ganhar, menos preciso e devo gastar, para ganhar mais e mais. E depois, o que faço não é ganhar; é cobrar o que a sociedade me deve. E cobro humildemente, suavemente, em prestações módicas.

Outro - Quanto lhe deve a sociedade?

Mendigo - Tanto quanto deveria caber a mim, se houvesse uma divisão "camarada".

Outro - Comigo essa gente tem sido muito caloteira...

Mendigo - É que o senhor não sabe corar... Como é que o senhor pede esmola?

Outro - Como todos: "Uma esmola pelo amor de Deus!"

Mendigo - Isso é passadismo!... Ninguém mais ouve esse pedido. Deus é uma palavra sem expressão. Quando se diz "Ai meu Deus" - é como se estivesse dizendo: "Ora bolas!". O senhor nunca ouviu um ateu dizer: "Graças a Deus sou ateu"?

Outro - Já.

Mendigo - Pois então? Hoje, poucos compreendem o valor dessa expressão. Fale em fome. Fome é mais impressionante. Há mais de 30.000.000 de famintos no mundo! Mas fale em fome, sempre onde não haja pão ou comida.

Outro - Para quê?

Mendigo - Para que eles lhe dêem dinheiro. O senhor, com certeza, tem mendigado a domicílio...

Outro - Realmente, sempre vivi percorrendo casas de família.

Mendigo - É um mal. Quem mendiga a domicílio não faz carreira. Só dão pratos de comida e restos de pão. Adote o meu sistema. Especializei-me em transeuntes e portas de igrejas em dia de missa de defunto rico. Leia os jornais. Pelos anúncios, calculo a féria do dia.
(....)

4 comentarios:

  1. Que ótimo isso, não conhecia! Vou tentar achar o filme. Bjss!

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  2. Ah, é a Ju, agora só consigo comentar anônima (o que aliás pode ser mais conveniente, heheeh).

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  3. Betsabé, sabes que és dona de nuestros corazones. Um recado teu é uma dádiva. Besos. Salito.

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  4. Se alguém souber como faço para conseguir uma cópia desse filme, por favor entre em contato. demetriomoraisdemedeiros@yahoo.com.br

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