jueves, 23 de junio de 2011

O Último Rango

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O dia amanheceu gris em Porto Alegre. Semana curta, não trabalhei. Esperando cair do céu, quem sabe.

Com  Miquirina a tiracolo, imito o programa dominical e saio cedinho dar umas voltas, andando pelo Menino Deus, pelo Centro e pela Cidade Baixa. Via sacra pelos butecos da manhã, levar um lero com a turma que vem de noite atravessada, e rever os ex-notívagos mandados pela mulher que aproveitam a ida ao armazém para tomar umas e outras.

Afora a decisão entre  o Santos e meu Peñarol, que foi o acontecimento da semana (acabamos sendo roubados e covardemente agredidos), o assunto foi um só: que diabos (epa) é isso de Corpus Christi? Do Beco do Oitavo ao Bar do Nito, passando pelo Boteco do Moacir, ninguém sabia.

Os barnabés que frequentam o Bar do Beto ontem tinham a resposta na ponta da língua: "Eeeeeeba!, é dia que não precisamos trabalhar, e vai ter feriadão, vamos matar a sexta!". E seguiu-se a cantoria em uníssono: "Vamos matar a sexta, vamos matar a sexta... larará-larára". Obviamente que a resposta não satisfez.

Encontramos o venerável cachacista João da Noite no Botequim do Terguino às dez e meia da manhã, em mesa na calçada, acompanhado de dois músicos e respectivas aves noturnas de batom carmim e olhos borrados à lápis. Arrastamos cadeiras.

João todo contentão, com um tapete colorido às costas, aperitivando. Preparava o espírito para amarrar uma alemoa às três da tarde no Largo dos Palmares, na festa e procissão dos católicos. Os crentes deverão reunir umas cem pessoas, e o João ainda vai sequestrar uma... tem dó.

Perguntado a respeito pelo Gustavo Moscão, da mesa ao lado, João não se fez de rogado, mas, como sempre, derramando aos poucos a sua erudição, cheio de rodeios: "Nos Estados Unidos, paiseco que Salito tanto ama, não tem feriado, salvo na cidade de Corpus Christi, no Texas".

E fez silêncio. Mais um trago. Aproveitei para dizer que em Nova Delhi a turma não quis nem saber, tocam firme a segunda rodada do Torneio Internacional AAI de xadrez, promovido pelo Ministério da Defesa (!), no caso pelo órgão responsável pelos seus aeroportos, que, ao que parece, diferentemente do nosso, desvia dinheiro para causas nobres. Salvo Miquirina, que já sabia, ninguém se interessou pela minha conversa.

Um dos músicos descobriu a América, diz que até as moscas sabem que Corpus Christi significa Corpo de Cristo. As mulheres vibram com tamanha perspicácia. O Moscão olha vivamente para o cara.


Após outro golpe no trago, lacrimejando João estala a língua e segue: "Já em Toledo, na Espanha, é comemoração para ninguém botar defeito, as ruas apinhadas de gente, muito vinho, muita alegria, olé!". E sorri como se estivesse lá no meio do burburinho.

"No Oriente os bem informados sabem no máximo que é feriado ocidental, isto é, sabem tanto quanto a maioria dos ocidentais. De fato, meus amigos, em alguns, somente alguns, países ocidentais é feriado, e na Alemanha...".

Terguino, que havia largado bebidas na mesa e parado para ouvir, troveja: "Deixa de frescura, João, conta logo o que é o negócio".

Miquirina Segundo não deixa: "Em Angola não é feriado, mas muitos festejam".

João: "Negada mal-agradecida. Em Portugal é feriadaço. Muito vinho. Em algumas localidades ainda saem com carros alegóricos, fantasias de diabo, muito profano, é foda... É fado!". E ri.

Perco o interesse pela lenga-lenga e peço um merengue ao Terguino, losninha dupla. João segue dando a volta ao mundo por mais meia hora. Miquirina e eu passamos a traçar planos para dar um susto em Mr. F. Febraban na semana que vem, dependemos de Carlito Yanés para definir hora e local.

Mais uma cobrança e finalmente João se dá por achado: "Ora, Moscão, é uma festa inventada no século 13..., se não me engano começou lá por 1264, quando um tal de Urbano, que na verdade se chamava Pantaleão e era o Papa dos caras, pouco antes de bater os cascos, o bandido, bolou o lance para realçar a hóstia como de fato o verdadeiro Corpo de Cristo".

(João toma outro gole do seu trago) 

"Na verdade o que o Pantaleão queria mesmo era uma nova Cruzada no Oriente, mas os guerreiros estavam com ressaca de sangue e não lhe deram ouvidos. Ninguém deu a mínima para o decreto do Papão sobre a festa, também, mas aos poucos foi pegando, sabe como é, festa é festa, e de tanto repetirem... É isso, festa para confirmar que a hóstia, sem sombra de dúvida, é o corpo de Cristo. De lembrar que a hóstia, o disco bem redondo, representava o Sol no antigo Egito, o deus Osíris que se escondeu num grão de trigo e foi engolido pela  deusa Ceres, a Senhora Rainha do Céu, do que nasceu um lindo filho..., mas isto é outra história."

"Ao mesmo tempo é homenagem ao Último Rango, daquela vez em que Jesus e seus companheiros comeram bóia da boa e beberam todos os vinhos Periquita da época, que fogo...".

Mamma mia, esse João é mesmo um irreverente, mas o Moscão, fazendo jus ao apelido, ouve compenetrado. Os músicos e as respectivas estão nem aí para a conversa.

Nisso se mete o Paulo Bengala, da mesa detrás do João: "Mas pera aí, inventaram assim, do nada?...".

João dá mais um talho no merengue, depois sorve um copo de cerveja. Com ares de quem cansou do assunto, responde: "Exatamente, do nada. Bem, do nada não, dos imemoriais cultos pagãos. Isso é uma coisa de política, Paulinho, consolidação de poder pela apropriação de corações e mentes. Jesus Cristo... não tem nada a ver com o que os caras decidiram, como de resto não tem nada a ver com a Inquisição nem com coisa alguma que essa gente impôs, menos ainda com os pastores ladrões de hoje em dia, tudo 171".

Ao pronunciar o nome de Jesus Cristo, desta vez com ar grave João ergueu o copo e fez uma demorada reverência.

Curiosidade satisfeita, a turma começa a se desfazer. Hora de comprar o frango, se não a mulher vai reclamar, diz Moscão. Miquirina e eu precisamos nos mandar também.

Como último ato, mais uma rodada. João da Noite se levantando pede a todos que ergam os copos e exclama: "À Jesus!". Todos pulam das cadeiras e repetem com voz alta e forte: "À Jesus!".

Tintim.

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Obs. 1: Imagens da internet, pela ordem: 1) sem informações; 2) Festa em Toledo, Espanha; 3) Quadro "A Última Ceia", de Tintoretto, Veneza, 1592.
Obs. 2: No Brasil Corpus Christi só pode ser feriado municipal, como em Porto Alegre. Mas festa é festa, com lei ou sem lei, pára tudo. Há um projeto no Senado, de 2007, proposto por um palhaço catarinense de Rondônia, do PMDB, elevando a feriado nacional, como também à terça de Carnaval e a Sexta-feira Santa.  O elemento está sendo processado no STF por falsidade ideológica e desvio de recursos, que vai dar em nada, como sempre. Ele vai sempre à igreja.

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