Por Síndia Santos
Não pude chorar, não se tratava de culpa. Meu marido saiu. A casa permaneceu num silêncio de angústia. Estagnei fixa a olhar pela sacada. Buscava algum desespero e só encontrava sinalizações duras. Estava feito. A casa nova, os móveis, as brigas, nada me segurara, todos me compeliram.
Quis amar e amei. Não importava muito em quais braços, desde que fossem os braços certos. Minha fé precisava de liturgia para se manter viva, criei um santo para venerar. Um santo que não fazia milagres porque estes eram de minha responsabilidade. E meu milagre seria separar-me. O divórcio; uma instituição tão antiga quanto o próprio matrimônio, a dissolução de laços social, cultural e jurídico. Babilônios, celtas, astecas, gregos, romanos, todos puderam recorrer à separação. Mas quem podia sedar os seus efeitos.
A flor de narciso quem sabe? Aquele do mito, que ao ver sua imagem refletida num lago, se lança numa busca desesperada pelo outro, e ao emergir descobre que não era o outro, mas sim, ele mesmo o objeto de seus sentimentos. Narciso mergulha e morre.
Parei no alto do penhasco marrom e cor de abóbora do meu sonho e me lancei ao mar, olhei para o significado daqueles nove anos. Não foi fácil conceber que estar junto doía porque em algum instante deixei de só ser. Em que momento essa massa sem formas, de regras e negligências me abocanhou?, não sei. Meu amante era um reencontro, o mergulho no outro para emergir em mim, uma forma de não aceitar o fim.
Nove anos e o fim.
Éramos tão crianças… Todos os romeus e julietas estão fadados a morrer por não saberem assistir ao próprio crescimento, fazendo pactos para se manterem estreitos. Tanto amor num só olhar e agora o fim. Onde foi parar aquele tempo onde o mundo eram dois corpos a serem descobertos? Tanto amor e fim. Uma intenção simples de querer bem e fim. Onde está o amor agora, minha angústia? Atolado na avareza de nosso amadurecimento?
Era o fim e eu tentava velar meus mortos. O telefonema revelou-me o óbito. Velar os mortos. Sentei-me e espremi algumas lágrimas; não dos olhos, porque esses não eram a sua morada. As lágrimas vinham do estômago que se contraia num nó só.
Há uma fronteira que nenhuma mulher pode cruzar. A transpus para deixar de ser menina, do contrário ainda seria uma porção de carne, músculos e ossos, vazios, restritos. Fui além, decidi que merecia viver.
Pela primeira vez, vi-me por dentro num espelho. Confessei a mim desejos que condenava; condenei-me. Daquele instante em diante, seria eu mesma.
Em busca de mim rejeitei todos os valores que me foram apresentados. Dignidade, decência, moral, orgulho, todos se apequenavam diante da fome voraz por vida.
Distraída feito voyeur escondendo-se do mundo, percebi-me. Havia me acostumado a fingir não ver, percebi-me de surpresa, feito uma figura num quadro que retribui o olhar. Assustei-me, caí, mas mantive o comportamento daqueles que vêem o mundo como um faz de conta. Fiz de conta que era imaginação e aceitei a brincadeira. Não havia como me machucar; enganava-me.
A porta bateu. Meu marido estava de volta. Malas; havia malas em suas mãos. O guarda-roupa foi aberto e peça por peça foi encerrada dentro daqueles caixões. Depois, milhares de fantasmas em forma de blusas penduradas em cabides se espremeram no banco traseiro do carro; no porta-malas, livros, papel pintado travestido de uma sabedoria que não explicava aquele momento.
Algo se rompia dentro do peito, uma hemorragia ganhava formas invisíveis.
- A partir de agora, quero esquecer que você existe. Não me cumprimenta, não me pergunta, não fala comigo. Você consegue entender isso? Você deixou de existir.
Era o contrário, minha existência estava ali, latejando. “Só aquele que se mantém integralmente pode, a longo prazo, permanecer objeto do amor, porque só ele é capaz de simbolizar para o outro a vida, de ser percebido como uma força vital”, cantava em meus ouvidos Lou Andréas-Salomé.
- Dez meses, ficamos dez meses juntos. Apaixonei-me.
Meu marido sorriu, riso cético, assustador. Arrepios transpassaram meu corpo.
- Eu sei, a esposa dele me ligava com freqüência. Não acreditei. Você com um amante?! Não…
Ele riu de novo, eu chorei. Era o meu julgamento e a sentença me definia: eu era uma farsa, uma peça burlesca que não mostrou a que veio em nove anos. Custava-me crer que ele tinha razão.
Nove anos que me levaram a cama de outro, várias camas, camas estranhas, quartos estranhos, tempo estranho, homem estranho. Tempo vertical que não pedia mais de um segundo para transformar a proximidade em imersão. Homem estranho, eternamente próximo, um amante, reflexo de mim. Eu tinha um amante e gemi de prazer em seus braços e suei e amei e gozei inúmeras vezes, gozo do desconhecido, gozo de possibilidades.
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