domingo, 3 de abril de 2011

No fundo

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Quando eu era criança (e isso foi ontem, creiam), a gente só tinha rádio para ouvir. Claro que já havia televisão, mas na minha cidade no interior do Rio Grande do Sul nunca vi, embora hoje imagine que alguns devessem ter. Os políticos, por exemplo. Nós, os pobres de paris, mal sabíamos da existência dessa que logo seria a mais nova arma, com múltiplas utilidades. Nessa época, já fazia tempo que o Brasil tinha se vendido aos terroristas.

Uma beleza, à noite eu ficava horas ouvindo a El Mundo de Buenos Ayres, a Belgrano, a Tupy do Rio, a Rádio Mulher de São Paulo, a Guaíba de Porto Alegre, a que quisesse, até a BBC de Londres.

Era um rádio do tempo do Ariri de Gancho, de válvula, sei lá se não era herança da minha avó. Pelo rádio eu me transportava, ouvindo em baixo volume para não acordar os velhos e as meninas, até duas, três da manhã.

Por alguma inconfessável razão - tendo como fachada a mesma desculpa que não permite rádios comunitárias nas vilas das grandes cidades, impedindo o povo de se organizar para defender-se dos assaltos dos múmios, sejam estes os bancos, supermercados ou mesmo o estado - agora isso é impossível.

Com toda a inovação tecnológica, que certamente permite que se ouça as emissoras de Vênus, os belos aparelhos só pegam a rádio do município, que normalmente pertence a algum chefete político da região.

Obviamente,  esses chefetes, pessoas conscienciosas e obedientes à Constituição brasileira, não usam tal arma em seu benefício, os pobrezinhos se reelegem porque são amados pelo povo... Qualquer dia destes dou um tiro num.

Mas, remexendo o fundo da memória, me vejo lá sentado, inverno frio, enrolado num cobertor, ouvido colado no rádio, e o castelhano anunciando... Libertad Lamarque. Na Rádio Mulher, que era operada somente por mulheres, a linda voz da brasileira, ao anunciar um chileno de sucesso: "Y ahora, señores, Lucho - de los boleros - Gatica".

Para mim era tudo. Esquecia os problemas da casa, não me importava de ser discriminado pela roupa, até de não ter namorada, afinal que culpa tinha eu se as gurias não me convidavam para namorar? A minha vez ia chegar, e quando chegasse, seria alguém como eu... Agora eu queria mesmo era fazer um gol no Grêmio.

Hoje, mexendo na rede, achei um rádio. Muito mais moderno que o meu, mas serve. Preciso fugir daqui, amanhã penso nisso, em como contar pra mãe.
Trêmulo, ligo na El Mundo.







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