.
Por Luiz Werneck Vianna, no Estadão
"Era no tempo do rei" - com essa frase mágica Manuel Antônio de Almeida
inicia seu romance Memórias de um Sargento de Milícias, cativando prontamente o
leitor para conhecer as desventuras do seu herói, Leonardo Pataca, e outros
personagens típicos da vida popular das primeiras décadas do século 19, como
milicianos, meirinhos, barbeiros, ciganos, mulheres de má vida. Toda uma galeria
de homens comuns treinados nas artes de uma difícil sobrevivência sem perder o
gosto pelas festas e pela convivência bem-humorada entre eles.
O motivo dessa alusão à obra tão celebrada não se prende, contudo, ao
protagonista da narrativa, mas a uma simples coadjuvante, dona Maria, mulher de
meia-idade, gorda, mas bem afeiçoada, compadecida dos pobres, a quem atendia com
os recursos que lhe sobravam naquele meio de escassez, e que nutria uma paixão
sem remédio pelas demandas judiciais. Movida por esse sentimento que dominava a
sua vida, saía de uma demanda para entrar em outra, conhecedora de leis e de
regulamentos, provavelmente dominando a dialética incerta dos esotéricos
embargos infringentes, embora fosse certo ser versada nas Ordenações Manuelinas.
Os processos e as demandas judiciais intermináveis animavam a sua vida, como
hoje parecem dominar a nossa.
Com efeito, somente por peripécias do nosso código genético cultural pode ter
aflorado, assim, de repente, a informação desse gosto pelas manhas e pelos
jargões dos leguleios, típicos do decadentismo ibérico, que nos manteve, numa
tarde de quarta-feira, aferrados à TV durante duas horas e meia - tempo bem mais
longo que o de uma partida de futebol, com o qual folgamos - para ouvirmos as
razões do decano do Supremo Tribunal Federal (STF) a fim de admitir os embargos
infringentes reclamados pelos réus (da Ação Penal 470, conhecida como mensalão).
A hermenêutica do decano cobriu leis atuais e de antanho, jurisprudências,
regimentos, não lhe faltando revelar as motivações implícitas do que jazia
oculto nas lacunas da manifestação da vontade do legislador, vazios desejados
por ele ou meramente fortuitos - quem há de saber?
Dona Maria perdeu essa sessão do Desembargo do Paço, que lhe faria delícia,
pois ali se reverenciava o objeto do seu culto, um processo interminável com
vãos e desvãos, hirto em sua integridade de coisa em si, apartado do mundo,
cerrado na sua lógica interna alheia aos profanos e manipulado por sacerdotes
convictos dos seus atos litúrgicos. Deveras, dignos de admiração nossos vínculos
com a Ibéria profunda, ainda presente nas nossas instituições e nas narrativas
que nos chegam delas, tais como os que foram expostos pela TV diante de grande
audiência, que não arredou pé e a tudo assistiu bestificada, no julgamento da
admissibilidade dos embargos infringentes.
O público era o mesmo que há poucos meses, nas jornadas de junho, aderiu com
entusiasmo, nas ruas, aos protestos da juventude em favor de direitos, de maior
participação na vida pública e por transparência nas ações do Estado. Mas entre
os dois episódios há um mundo a separá-los, quando de um dos lados das margens
até se ouvem declarações, com dicção forte, de que não se devem considerar as
vozes que ecoam do outro.
De fato, em matéria penal, o garantismo nos procedimentos judiciais, como se
diz em jargão, protege a todos e se constitui num valor a ser defendido, com a
óbvia ressalva de que ele não se pode prestar a formalismos e a chinesices que
desservem à justiça e penalizam a sociedade. Sem ponderação razoável, esse
meritório princípio pode tornar-se uma política de alto risco na administração
da justiça.
Por outro lado, tenha-se presente que a Constituição que aí está, prestes a
comemorar 25 anos de bons serviços ao País, foi concebida para ter uma natureza
de obra aberta, admitindo sua filiação à corrente doutrinária do
constitucionalismo democrático. Sob essa inspiração, recriou o nosso Direito e
suas instituições no sentido de que fossem capazes de acolher a voz das ruas,
quer no exercício do controle de constitucionalidade das leis, nas ações civis
públicas, quer nos inúmeros conselhos que criou com o intuito de incorporar os
cidadãos na gestão de matérias afetas ao interesse público.
Ao longo desse período de implementação, pela ação da jurisprudência e de
doutrinadores, fomos deixando de lado práticas que nos vinham do cediço iberismo
que forjou nosso Estado, em particular no Direito Administrativo, no qual
dominava inconteste o princípio da discricionariedade do Poder Executivo.
Sobretudo, afirmou-se nesses anos a primazia do paradigma do direito público,
destronando antiga hegemonia do Código Civil. Na esteira desses novos processos,
passamos a conhecer uma nítida convergência do nosso sistema de civil law com o
de common law, que, aliás, transcorre em escala universal.
Doutrinadores influentes, como Luís Roberto Barroso, dedicam páginas
simpáticas a políticas judiciais consequencialistas e à obra do notável filósofo
do Direito Ronald Dworkin, que nos deixou recentemente e concebeu o Direito sob
o modelo de integridade. Muito além de ouvir as ruas, às quais o hoje ministro
Barroso é refratário, Dworkin recomendava, a fim de assegurar uma narrativa
coerente e progressiva do Direito, que se ouvissem as vozes da história da sua
comunidade, às quais o ministro também foi surdo, para que elas se fizessem
presentes nas decisões judiciais, em particular nos casos difíceis - a Ação
Penal 470 é um caso difícil.
O pleno do STF em sua composição original, ao julgar a Ação Penal 470, abriu
com coragem o baú dos ossos da nossa História, remota e presente; a dos embargos
infringentes nos devolve aos alfarrábios da dona Maria das páginas de Manuel
Antônio de Almeida. Resta ver os próximos capítulos e como se comportam as ruas
buliçosas do Leonardo Pataca.
.
No hay comentarios.:
Publicar un comentario