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Por João Bosco Rabello
Deputados do chamado baixo clero atribuem-se uma espécie de imunidade contra os efeitos eleitorais negativos decorrentes de um comportamento fora dos padrões do que se possa considerar ético e, mesmo, legal. Alguns proclamam, com ares de orgulho, que pouco se importam com a opinião pública.
Acreditam que seus eleitores os avaliam pelos recursos que canalizam para seus estados e municípios e os benefícios que geram. A partir daí, restringem a ação parlamentar à coleta de verbas e dedicam o tempo restante a negócios que possam ser feitos com a influência do mandato.
Tornam-se, assim, “vereadores federais”, despachantes de interesses ou mesmo lobistas – isentos de qualquer ônus inerente à função pública que exercem.
É esse contingente que produz resultados como o da absolvição parlamentar do deputado Natan Donadon, tentando emprestar algum toque de soberania ao escândalo, roubando à Constituição o conceito que preserva os representantes do Legislativo de manobras espúrias contra o mandato, para aviltá-lo em prol de causa inconfessável, porém sabida: o fortalecimento do corporativismo travestido de independência dos poderes.
Mas esse contingente sempre existiu, nos bons e maus momentos do Legislativo, e, apesar da supremacia numérica, nunca prevaleceu como força autônoma na condução do processo político, como vem acontecendo na última década. Faziam lá suas peripécias, praticavam o fisiologismo pessoal, mas sempre por baixo dos panos, sobrevivendo como figuras menores no Parlamento.
Não ousavam diante de lideranças expressivas como Ulysses Guimarães e Tancredo Neves, para ficar nos dois exemplos mais notórios de um passado recente em que a política estava associada à discussão dos rumos nacionais. E se curvavam ao patrimônio intelectual e jurídico de cardeais formadores de uma elite política que efetivamente orientava as ações do Congresso.
A Constituinte de 88, possivelmente, é o divisor de águas entre esse passado e o ciclo que se inicia a partir do governo Sarney, desembocando na gestão Collor, da qual se auto-excluíram os quadros qualificados remanescentes da fase de redemocratização do país.
Com a ajuda, é verdade, de um presidente que pagou com o impeachment a indiferença em relação a um Congresso que ainda abrigava porcentual razoável de bons políticos.
Fosse hoje, vale o parêntese, é de se perguntar se aconteceria o impeachment, dado o grau de periculosidade do Congresso, refletida na estatística que registra 2/3 de seus componentes com processos judiciais que começam a sair do baú do Supremo Tribunal Federal. O que explica a votação pró-Donadon, provável estertor de um corporativismo enfraquecido pela informação em rede, que rompe a lógica da imunidade eleitoral em que se escondia o baixo clero.
A votação unânime, sem uma abstenção sequer, pelo fim do voto secreto, dá à preservação do mandato de Natan Donadon um desenho de teste: a Câmara voltou a flertar com a indiferença depois de ensaiar uma agenda positiva e recuou diante da ampla rejeição da sociedade.
Já se preocupa, pois, o baixo clero, com a opinião pública que até ontem ironizava.
No entanto, o placar de 452 a zero, é demonstrativo do chamado “efeito pendular”, ou “gangorra”, assim chamado por aplicar tratamentos opostos a uma mesma matéria ,em curto espaço de tempo, para atender a pressão da opinião pública por mudanças que signifiquem um basta aos desmandos.
Saiu-se da absolvição de Donadon para o fim do voto secreto em qualquer circunstância, na tentativa de redimir a instituição do escândalo que protagonizou ao criar a figura do deputado-presidiário. A segunda decisão, extraída com apoio compulsório do mesmo baixo clero autor da primeira, é agora contestada pelas lideranças principais do Congresso – que longe de ser uma elite política é, antes, o baixo clero de ontem, com as exceções que confirmam a regra.
Projeta-se uma nova rodada em torno do tema, a partir da chegada ao Senado da matéria aprovada ontem extinguindo o voto secreto. Não são poucos os parlamentares dispostos a revisar o projeto, restringindo o voto aberto a cassações e o mantendo secreto para casos de vetos presidenciais e indicações de juízes de tribunais superiores, entre outros .
Argumentam estes, que o voto aberto para casos de interesse político do governo, retira do parlamentar a blindagem contra retaliações do Executivo federal, comprometendo sua autonomia e, por extensão, o interesse do eleitor que lhe conferiu o mandato.
Pelo raciocínio, no caso de um juiz, de cargo vitalício, o voto aberto contra, derrotado, pode entronizar no Poder Judiciário um inimigo definitivo com poder de eventualmente julgá-lo amanhã.
É provável, portanto, que a votação de ontem se configure uma ressaca moral ainda por ser revista para limitar seu raio de alcance. O que mantém o Legislativo num comportamento errático, populista, sem qualquer programação e, menos ainda, sentido de missão pública.
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Salito
ResponderBorrarMuito bom esse artigo, ótima escolha, retrata as negociações mafiosas da Câmara dos últimos tempos ...