viernes, 21 de enero de 2011

O último tango em Hollywood

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O filme "Scent of a Woman" (Perfume de Mulher) norte-americano é de 1992, um água com açúcar fantasiado com pseudos implicações psicológicas, adaptação do original italiano "Profumo di Donna", de 1974, este melhorzinho.

Com os costumeiros zilhões gastos em propaganda, a alma do negócio, fez muito sucesso junto ao distinto público, então com boa vontade e em respeito direi que é de sétima categoria, ahn, nona, em escala até dez.

Mas deu-me o que pensar: por que diabos meteram o tango "Por una cabeza" (Gardel/Le Pera) na fita?

O tango é muito bonito, porém não tem nenhuma conexão com a lenda do ex-milico cego do abacaxi.

Recordemos a adaptação ianque: o tal milico planeja se matar por sentir-se culpado pela morte de um soldado, colega de terrorismo, mas como não é assim tão bobinho, antes resolve cair na gandaia, divertir-se, sorrir, eta vida boa, viva!

O sentimento de culpa?, entendo: certa vez derramei meia de conhaque em cima de uma plantinha, sem querer, e matei-a. De outra vez levantei a voz 0,01 decibelímetro com um amigo querido. Entendo o sentimento de culpa. Pero suicídio é matéria grave demais. Ninguém planeja uma coisa dessas e sai a meter o pé na jaca. 

Não me convenceu, decididamente. Bobagem do roteirista de Óliúdi para hacer la cabeza de las colonias, incluindo a colônia do Brazil, cumprindo ordens do Pentágono. Mais uma bobagem, entre as centenas que mandam todos os dias. Política de dominação, como sempre, bandeira e farda. Pelo retrospecto isto não deveria, mas ainda me espanta a desfaçatez com que aplicam rústicas inverossimilhanças, insultando a inteligência dos escravos, eu junto.

Bem, na estória tem um soldado do império morto, o soldado, não o império, muito lamentável... das centenas de milhares de crianças vietnamitas, para ficar com as vítimas de apenas uma de suas sangrentas estrepolias pelo mundo, nem um pio? Em homenagem a elas o camarada saiu festejar em restaurantes caríssimos, dirigir bólidos e se pendurar em mulherões?

O fanfarrão (sei tudo, guri) é vivido por Al Pacino (excelente profissional, faz bem o que treinou a vida inteira, grande ator, talentoso, e é isso que importa nos artistas, o que é como ser humano não se sabe nem interessa), que fez horrores por baixo dos panos para levar aquele Óscar para os piores cegos, os que não querem ver. Bem, essa é outra estória.

Em razão da dancinha do gorila cego, com uma mulherzinha que parecia a sua neta, subitamente o velho tango, clássico, tornou-se um sucesso maior do que quando foi gravado por Gardel. O "puder" da máquina é conhecido.

"Por una cabeza" fala de um apostador viciado em corridas de cavalos, obviamente deprimido por perder os tubos numa carreira, por una cabeza, num dia em que está com uma bruta dor de cotovelo por causa de uma pinguancha mui vagaba e maleva, como ele, possivelmente com o agravante de ter sido contemplado com um sombrero de vaca, naqueles anos de boemia duvidosa.

Hoje poucos argentinos sabem o significado de "la via", no verso: "... cuando estés bién en la via, sin rumbo, desesperao", do Discepolín (Yira, yira), mas sabemos que "la via" era um beco sem saída atrás do hipódromo viejo, lá no fundão, no escuro, longe, onde os loucos iam se matar depois de perderem tudo em patas de cavalos. Mas aqueles pobres homens, que se embriagavam antes do tiro fatal na cabeça, não eram em nada assemelhados ao covarde americano do filme. 

Discépolo cuidou para não colocar na última estrofe, pois era um homem de amor, e pegaria mal, mas colocou antes: "Qué importa perderme, mil veces la vida, para qué vivir". Pou!

Nada a ver, certamente os "autores", os que escrevinharam o besteirol, nem sonham com essa parte, desconhecida, hoje, de grande parte dos próprios argentinos. Como eu sei? Ora.

Um clássico, por retratar certo momento da história e da boemia de Buenos Aires, os sentimentos da classe sofrida, um retrato daquele tempo, de boêmios sexualmente agressivos, corajosos, ao som lamentoso do tango-milonga, mescla de canyengue, sincopado en doble compás, a morir. 

Pensando bem, até que o patrunfo Alfredo James Pacino (NY, 25/04/1940)  leva jeito para encarnar o chifrudo na telona, vai de graça a idéia (sim, prefiro idéia com o agudo, brilha como pensamento fértil).

Nunca entendi o porquê desse tango, especificamente, ser escolhido pela grande indústria cinematográfica para o milionário besteirol. Para o bailado com a garota, destacando a "sensibilidade" da referida e do gorilão, melhor seria o pegajoso, para uns, lindo, para outros, "O Barquinho" (Menescal/Bôscoli).

Se o filme mostrasse em flashback o lado obscuro de suas guerras, do seu guerreiro deprimido, a trilha sonora de Apocalypse Now, "Die Walküre", do Wagner, cairia como uma luva.

Até que um dia, ah, um dia... enquanto olhava no tabuleiro de xadrez uma Inglesa Simétrica que pendia para o lado das brancas de Carlito Dulcemano Yanés, ele reclamou da indústria do uísque, não eram mais as mesmas, o preço era o mesmo mas a qualidade havia caído. Eu mirava a arena, pensando em me jogar de bispos para cima dele, e num repente a palavra "indústria" estourou na minha cabeza. Indústria... Indústria cinematográfica.

O maldito substrato material. É produção em série, linha de produção, nada a ver com arte. Além de fazer a cabeça visa lucro, muito lucro. Fazem o possível e o impossível para cortar custos. E com esse pensamento fui atrás de uma explicação.

Bingo!

"Por una cabeza" já não tinha direito autoral a ser pago, havia caído no domínio público em 1985, quando se completaram 50 anos da morte dos autores. Mais alguns aninhos para o processo de partilha, e em 1990 estava na mão. De graça.

O grande uruguayo Carlos Gardel e o paulista Alfredo Le Pera, como todos sabemos, tragédia que abalou o hemisfério, morreram juntos numa queda de avião em Medellín num Dia de São João, em 24 de junho de 1935. Compañeros hasta la muerte.

Depois, passei a refletir: pero, e se quisessem mesmo um tango naquela patranha? Para sugerir amor, solidão, tristeza, sofrimento, havia tantos tangos disponíveis... Bem, melhor não pensar mais nisso, arte não se produz em indústria.

Mudando de conversa (onde foi que ficou...), vai um tango para Maurício Tapajós, onde quer que esteja, e Hermínio Bello de Carvalho.


Um tango plangente, a vida desfilando nua em rotação 78, um dos mais belos de todos os tempos, que encantou e ainda encanta o planeta. 


Uno, de 1943, de Enrique Santos Discépolo (letra) e Mariano Mores (música).

Como todos sabem, Discepolín morreu em 1951, porém Marianito Mores, para felicidade de todos quantos amam música de qualidade, está vivíssimo e feliz em Buenos Ayres, prestes a comemorar 93 veranos.

Se quiserem colocar essa maravilha em filmes, Mariano Alberto Martínez  está pronto para as negociações.

Canta ele, Roberto "El Polaco" Goieneche, com a Orquestra Típica de  Anibal "Pichuco" Troilo (Anibal Carmelo Troilo, Buenos Aires, 11/07/1914 - 18/05/1975).

A plantinha (Comigo Ninguém Pode) renasceu, milagrosamente, após uma semana, e nunca mais lhe derramei nada além de água. 

O meu amigo recuperei no mesmo dia: levantei a voz às duas da manhã e às nove eu estava sentado no muro em frente à sua moradia, para me desculpar. Ele saiu às onze e caiu para trás ao me ver, dizendo que já sabia, não precisava, seu bobo. Caí de joelhos igual e pedi. Quase ficou de mal comigo por me ver assim nervoso. Saímos tomar um chope às onze da manhã de um sábado, depois de ele certificar-se de que eu estava desarmado, pois entrou numa de que eu queria matar o Delfim Netto por algo que eu teria visto. Bobagem dele, se fosse sair matando pelo que vi, aquele senhor seria um dos menores. Bons tempos. Saudades, Patinho.




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A obra pictórica é da artista rosarigasina Patricia Vidour.

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