sábado, 15 de diciembre de 2012

Noturno

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É madrugada alta em Porto Alegre. O murmúrio cerrado e envolvente da chuva foi trocado pelo som de água derramada. Chove a cântaros, apesar do frio. Chego à janela e vejo que a cidade dorme imersa em um mar cinzento, insensível à escuridão molhada. A estrela matutina é a lâmpada esquecida no prédio lá adiante, bruxuleando ao sabor das ondas.
 
E lá vem você, como sempre, dizer-me coisas que eu já sei: que esta é mais uma noite de perseguir tristezas antigas, de escrever cartas que agora não têm destino, de ser o fragilizado bobo que você não gosta. Tintim.
 
Arranho na abertura e Zubin Mehta aciona a Filarmônica de Los Angeles com a Quinta de Mahler. Acendo outro cigarro. Isto mesmo: sei que deveria usar o automático após ingerir meio vidro de uísque, que ainda não comprei o CD, que a estas horas é provável que os vizinhos - existem mesmo? - detestem a música e o volume. Não se faça de desentendido, é preciso: a Quinta tem quedas que vão ao limite do inaudível, macias, verdes, índigo céu, noites de cristais, uma mulher sem passado e futuro  aparentes, uma mulher que não existe...
 
Ora, o que é isso? Sobre isso já discutimos noites e noites, repito: como eu deve haver muita gente que prefere não sair. Além disso sabe que houve época em que tentei. Cansei de entrar em belos bares, sentar a um canto, beber uma dúzia de manhatans e vir embora sem que ninguém puxasse assunto. Convencido, eu? Não mesmo, de uma mesa à outra a distância é idêntica. O quê?! Ligar para uma massagista telefônica? Está doido?
 
Pois confesso que também tentei. Veio uma pobre moça esfrangalhada, coloquei música francesa para criar clima e, enquanto eu servia o primeiro drinque, ela perguntou se não tinha música sertaneja. Desisti, a poesia é algo assim como comprar um quilo de carne no açougue. Não, não é desprezo pela pessoa, é pura amargura. Elitista, eu? Ah, não enche. Sei, em breve farei quarenta anos, e daí? Devo mudar os gostos, ser o que nunca fui? Que nada, isto é apenas o começo.
 
Amanhã ou depois alguém toca a campainha por engano, abro e topo com ela, a alma gêmea, sorridente. Será um instante sublime. Ela, enlevada, vai perguntar-se: "Quem será esse simpático que a sós bebe, ouvindo Mozart nesta luminosa noite?". Ah, ah, ah, gostou do simpático, hein? Claro que é bobagem minha. E chega de intrometer-se, hoje não vou admitir, nisto você é um estranho. Hoje preciso de um companheiro para dividir meus gritos.
 
Primeiro vou experimentar a imagem que alguém gostou em um dos meus contos: um peixe gordo subindo e descendo quente, querendo escapar pela garganta, pela boca, ferido e preso lá dentro. Depois os jundiás entrelaçados em correntes, corpos negros tentando subir e sendo forçados a descer pelo engolir em seco, pelo respirar fundo, neve na fronte lívida. Mais tarde, vou controlar-me para não telefonar para o Rio de Janeiro. Antes de qualquer coisa preciso averiguar o estoque de uísque. Ao amanhecer estarei incorporado aos novelos que sobem do meu cigarro, vendo as fantasmagorias etílicas dançarem embaladas pelo leimotiv de Piazzolla.
 
Pela manhã quiçá reflita sobre meus longos invernos, recordando vivências banais, nem alegrias esfuziantes nem dores inesquecíveis, para descontrair. Não vou lembrar da vontade de saltar pela janela. E assim levarei o dia, passando a limpo o que valeu e o que não valeu. Não tema, você estará junto, não permitirá que algo de mau brote do fundo da minha revolta, da minha fraca natureza.
 
Segunda-feira, qual um risco de luz em direção ao desconhecido, ou um barco jogando neste infinito de vida e morte, é certo que vou prosseguir, procurando amores e sortes, mais lúcido, mais forte.
 
Mas hoje, nesta fria madrugada de julho em que rememoro o dia que alguém partiu, eu, dono de mim, resolvi sair do sério. Portanto, estranho que vive em mim, evite criticar-me.
 
Talvez na semana que vem eu deixe de beber e fumar.
 
 
copyright©1995
 
  
 
  

3 comentarios:

  1. Ei, intelectual solitário, gosto dos seus escritos. A inspiração parece brotar do uísque, da saudade, de achados e perdidos. E, em tudo, a presença ausente de alguém. Ou talvez, tenha sido a chuva, de madrugada. Esquece a alma gêmea,amigo. Quem sabe lhe sirva uma prima de segundo grau? Abç

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  2. Eheheh, muito grato pelas boas palavras, Tânia Ladiva. E onde estaria essa prima de segundo-grau? Abracinhos.

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