Em espanhol saio com as brancas: 1.
P4R, P4R 2. P4BR, PxP 3. B4B, D5T+ 4. R1B, P4CD 5. BxPC, C3BR 6. C3BR, D3T 7.
P3D, C4T. Já perdeu, esta foi de amador. 8. C4T, D4C 9. C5B, P3BD 10. T1CR! Te
peguei, filho da puta, ... PXB 11. P4CR, C3BR 12. P4TR... Encurralei o bandido.
... D3C 13. P5T, C4C. Diabos, estou repetindo a Imortal. Se eu tomar o partido
das negras na jogada 19 a coisa pode mudar de figura, no fim acaba dando
empate. Não fosse a bobagem do sétimo lance. Assumo as negras, Kieseritzki que
me desculpe: 19. ... D7C!
O outro tabuleiro, o outro, o outro,
arrá, senhor Kasparov, cedendo o empate, apertado de tempo, não é, meu?
(...)
É madrugada e chove, chove, chove, em
Porto Alegre. Ando excitado, vi uma mulher na vidraça embaçada. Meu amigo,
passo a contar coisas do meu dia a dia, não todas, talvez os antigos sonhos que
povoam meus dias e minhas noites, talvez cenas que hoje revejo com os olhos
arregalados. Aconteceram mesmo? Estou vivendo em vão? Não sei. Ouça-me.
Quando entrei no armazém do lado,
pela enésima vez eles pararam de falar. Novamente o silêncio gelado, de
provocação. De soslaio percebi o ruivo barbudo me indicar aos outros com o
queixo, troçando. Como sempre, fingi não notar e pedi a comida e a bebida que
preciso, estendendo o rol que o funcionário conhece. Enquanto o homem descia as
garrafas de conhaque da parede, olhei para fora, absorto.
Aves de rapina! Se o animal tenta
fugir ficam torcendo para que morra, querem que desista da fuga, que volte a
habitar o cemitério de vivos ao qual pertencem. Aguento porque não gosto de
supermercados. Raramente acontece de algum desavisado continuar falando, quando
isso ocorre os meus ouvidos captam comentários esparsos, sobre futebol,
política, amor e morte, mas apenas fragmentos: procuro me concentrar nos
mantimentos que compro. Com eles, as palavras que uso, em geral, são
monossílabos, "Obrigado", "Sim", "Não",
"Desculpe". Um dia rugi um "Me deixa". É o suficiente para
mantê-los afastados por enquanto. Sinto no ar a revolta contida, pronta a
derramar, sei da inveja que corrói seus corações. Esperam que o
"diferente" cometa um deslize. Mas sou controlado, meu amigo.
(...)
Marion,
Não gosto não é a expressão certa:
você odeia supermercados, o luxo, o supérfluo e, admita, os donos. A insanidade
de pretender desembarcar desta nave nojenta requer muito cuidado, com a turba
sufocada. Você tem razão, a corja de dirigentes nunca ligou para gente como
nós, perdidos que somos na multidão de robôs. Com intrometidos comuns não
precisaram sequer gastar uma bala, bastou uma ordem para que nos relegassem ao
esquecimento.
Por falar nisso, lembre-se de que você não é mais primário. Onde
já se viu chamar juiz de safado, capitalista de corrupto, senador de sonegador
(observe que rima), em plena ditadura militar! Seu palhaço, a grande máfia não
liga a mínima se você existe. Esqueça isso. O perigo real, físico, vem das
sarjetas, dos lobos famintos que espreitam a sua solidão. A sua inconformidade
os ofende. Muito cuidado.
(...)
Este conhaque parece água. Qualquer
dia destes, quando as equações se revelarem, vou comprar um vidro estrangeiro
para comemorar. Ahahahahah...
Eu sei que é covardia / cinco contra um não acontece / liberdade / liberdaaaaade / ainda que tardiaaaaaaaaaa.
Eu sei e superei / isso é tudo lo que quieren de mi / ao deste bolero plagiado, um sopro... loirinha tesuda, sem fiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiim.
Eu canto bem, eu canto bem, eu canto bem! Ahahahahahahahahah...
(...)
Escastelado neste décimo andar,
bailando no Lumiére de Piazzolla, reflito se não é o caso de adquirir uma arma.
A ti confesso: tenho medo. Creio ser uma boa idéia, outro dia planejo como
chegar nos arsenais do câmbio negro. Por ora preciso obter cigarros negros,
cansei de fumo em rolo, aqui só temos rubios.
Ah, hoje à tarde encontrei de novo a
loira boazuda no elevador. Só nós dois subindo. Parece que continua com medo de
mim. Antes apanhei a correspondência na caixa, vi que ela espantou-se ao me ver
recebendo cartas. Certa vez colei o ouvido a sua porta e a ouvi falar ao velho:
"Esse aí da frente é um pobre coitado, não tem ninguém no mundo".
Só
podia ser a meu respeito, é minha vizinha de frente. Isto porque vão muitos
anos desde que evaporei. Sumi. Não ouço rádio, não leio jornais, não vou ao
cinema, enfim, desliguei. De televisão jamais gostei, nunca tive. Não sei nem
quero saber o que se passa no mundo. Durante estes anos por duas ou três vezes
fui assaltado por uma terrível vontade de retornar. Passou.
Tintim. 1. P4R, P4AD; 2.C3AR, P3D...
Desta vez eu o pego.
(...)
Marion
Estou muito aflito com essa repentina
insegurança. Suportou até agora, não pode soçobrar. É loucura, meu caro, pensar
em voltar a ler as opiniões sobre economia expendidas pelos Chacais (o Delfim
ainda está vivo, e é camarada da esquerda...), ou a saber das versões que sobrepujam
os fatos, ou das caixinhas de sonegação (ahahah), esta é boa. Lembra?, elegiam
com o imposto sonegado, mais o dinheiro roubado, depois roubavam e sonegavam
mais. Lembra do assassinato em massa promovido por fluticolores redes
televisivas? Lembra que as pessoas de mediana cultura desconheciam tudo, à
exceção do vil metal? Pois então sente-se para ver o que direi: agora piorou!
Hoje minha carta será mais longa. Que
tal discutir o seguinte:
Você já chegou realmente a sentir
satisfação com algo que tenha feito, a não ser o prazer dos sentidos? Que
saudade é essa? De ter que adquirir conhecimentos que vão se perder no primeiro
acidente de automóvel ou na primeira parada cardíaca? De vestir-se como os
outros, à americanês, para não ser segregado? De ter que comer as mesmas
comidas na mesma hora que todos? De cumprir horários para proporcionar maior
gozo a um tubarão? Saudade de ser compelido, primitivamente, a crer em deuses,
para encher os bolsos de alguns ou amenizar o medo de outros? De ter de se
casar e criar filhos, de construir um futuro imaginário, para que mais tarde os
filhos se matem pelos seus bens durante o velório, enquanto a companheira dá a
bunda para outro qualquer como se nunca tivesse conhecido o sempre lembrado?
Sente falta das regras de bom comportamento,
de moral, de ética, que não são observadas por quem as apregoa e exalta?
Esqueceu que a organização da turba foi inventada por seres que representam
tudo aquilo que nós, humanos, temos de pior, pelo triste substrato material?
Quer viver mentindo aos outros e a si mesmo, admite ser mais um indivíduo
vulgar, mesquinho, hipócrita e canalha? Quer pertencer a um grupelho que aspira
chegar ao poder como meio de justificar a selvageria, depois tornando-se igual?
Quer voltar a ver possíveis Chopins, Beethovens, Piazzollas, pensadores,
talentos, morrendo de fome pelas vilas de miséria pelo simples motivo de terem
nascido do lado errado? Quer dizer que você é pequeno assim, covarde assim?
Não, você não é. Você e eu somos livres. Acho mesmo bom que compre uma arma.
Sugiro uma metralhadora curta e algumas granadas, não se preocupe por não saber
manuseá-las, você é foda, energético, aprende usando. Só não se suicide, não dê
esse gosto.
(...)
43. P8C=C++. Ganhei, ganhei, ganhei!
Liiiiiiiiiiivreeeeee, nasci como a brisa... Eu bebo de manhã! Eu bebo de manhã!
O conhaque é meu e faço o que quiser, derramo na bunda, não é da conta de
ninguém. De ninguém!
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